Vladimir Safatle
Na quarta-feira (16), o Brasil pôde assistir a mais um capítulo da regressão política que agora se expõe sem maiores disfarces. Um capítulo negro que revela com o que estamos de fato lidando.
Um grupo de 50 pessoas tomou de assalto o plenário do Congresso Nacional para vociferar palavras de ordem pedindo "intervenção militar" e "general aqui", enquanto se ouvia no plenário gritos de "viva, Moro". Do juiz em questão, diga-se de passagem, bastante afeito a declarações públicas, não se ouviu até agora repúdio algum ao uso de seu nome em cena tão macabra.
Um espetáculo de degradação desse nível não é gestado do dia para a noite. Esse é o preço pago pelo Brasil ser um país incapaz de encarar seu passado ditatorial, prender torturadores, exigir das forças armadas um mea-culpa pelo golpe contra a democracia, retirar o nome de membros da ditadura de suas praças e estradas, ensinar a seus jovens o desprezo por "intervenções militares".
A lei da história é implacável. Quem não elabora o passado será sempre assombrado por ele. Que algo dessa natureza ocorresse era só uma questão de tempo. O Brasil acreditou poder apresentar ao mundo uma conciliação sem trauma e sem "revanchismo".
Tudo o que conseguiu foi conservar todos os atores políticos envolvidos na ditadura no centro do poder, normalizando-os. Tudo o que conseguiu foi dar ao mundo a imagem de um país incapaz de acertar as contas com seus fantasmas do passado. A Comissão da Verdade, instaurada décadas depois do fim da ditadura, teve seu trabalho legado ao esquecimento.
Não nos enganemos. Essas pessoas que estão a vociferar por mais um golpe de Estado não estão "expressando uma opinião". Clamar por golpe militar não é uma opinião. É um crime, o pior de todos os crimes em uma democracia. Quem quer a causa quer os efeitos. Quem pede por golpe militar está a gritar por assassinato, tortura, ocultação de cadáver, censura, estupro, terrorismo de Estado.
Em qualquer democracia mais ou menos consolidada no mundo, o lugar dessas pessoas seria na cadeia, por sedição e incitação a crime.
Por isso, se ainda houver um mínimo de consciência de perigo neste país, o Congresso deve ser pressionado a aprovar uma lei que tipifique manifestação pública por golpe como crime contra a democracia passível de prisão. Essas pessoas não devem ser convencidas de sua posição equivocada, pois elas nunca serão convencidas de tanto.
É absurdo acreditar que alguém que chega a esse ponto está afeito a rever sua posição.
Eles devem simplesmente compreender que na democracia há proposições que não se dizem. Aquelas proposições enunciadas para reiterar violência (como as proposições racistas e preconceituosas) ou para clamar por um regime de violência (como uma ditadura) simplesmente não podem circular.
Uma sociedade que permite tal circulação cava sua própria cova.
Por outro lado, aqueles que colaboraram para esse espetáculo deveriam ser chamados à responsabilidade. Esses ditos "liberais" que ocuparam reiteradamente o espaço público para ridicularizar trabalhos de justiça de transição, que repetiam a teoria dos dois demônios (a ditadura teria sido um "excesso necessário" contra a luta armada), que sequer aceitavam o princípio liberal de direito de resistência contra a tirania são os responsáveis diretos pelo que acontece hoje.
No Brasil, não existem liberais. Quando necessário, eles apoiam golpes de Estado de todas as formas. Afinal, para quem trabalharam os "liberais" brasileiros como Simonsen, Roberto Campos e companhia? Alguém acha que seria diferente se houvesse um novo golpe de Estado?
Há anos alguns acreditavam que a democracia brasileira estava consolidada. Hoje, é claro que ela nunca passou de um acordo frágil e paralisado, fruto de uma redemocratização infinita que nunca se realizou. Não levar a sério os sintomas de uma regressão ainda maior será prova de mais um ato de irresponsabilidade.
Que a quarta-feira negra sirva ao menos para nos lembrar: nada morreu, tudo pode retornar.
Folha SP
Nenhum comentário:
Postar um comentário