domingo, 1 de maio de 2016
A comédia do poder
Luiz Zanin
Acho que todos nós estamos aturdidos com o espetáculo dos últimos tempos. Não há lobo faminto que se lance à presa com a voracidade com a qual políticos se atiram ao poder. É uma paixão, queiramos ou não.
Existe um provérbio napolitano, que cito em dialeto, pelo sabor: “‘O cummanna’ è meglio d’ ’o fottere”. Traduzido de maneira livre, bruta: “Mandar é melhor que foder”. Italianos de outras regiões falam “Comandare è tre volte meglio di scopare”. Três vezes melhor!
A graça, um tanto vulgar, concordo, é certeira em sua franqueza desabrida. Fala da sensualidade do poder. E sugere, no nível pulsional, o motivo pelo qual as pessoas se atiram à conquista do poder como feras insaciáveis.
Antes de condenar os políticos ao mais profundo círculo do inferno, convém examinarmos em nós mesmos essa pulsão.
Quem de nós já experimentou, mesmo que uma ínfima parcela de poder, e não sentiu uma estranha sensação de gozo?
Qualquer poderzinho serve. Pode ser o do presidente de uma associação de bairro, uma chefia de seção, a diretoria de um hospital. O poder está em toda parte. Está numa sala de aula, numa repartição pública, num hospital, na redação de um jornal, numa quadrilha de malfeitores. E sempre é cobiçado, pois significa a possibilidade de impor seus desejos aos outros.
O que dizer então do poder político, o grande poder, o poder para valer? Ser prefeito de uma grande cidade, governador de um Estado, presidente de uma nação. É o suprassumo do poder. O ápice de sua sensualidade.
O poder provoca essa descarga de libido. Essa febre. Daí os desatinos a que pode conduzir, porque se assemelha, em muito, a uma forma de loucura.
Tanto assim que, desde a antiguidade até hoje, a humanidade, sob a forma da arte, se ocupa do poder e dos seus desvios. Édipo e Antígona falam do poder, de sua busca, e seus desmandos e consequências. O maior de todos os dramaturgos, Shakespeare, não deixa de falar do poder quase o tempo todo. Hamlet e Macbeth evocam os crimes do poder. Rei Lear fala da problemática divisão do poder, quando é chegada a hora de passá-lo a outros.
Infindáveis são os filmes que tratam do poder. A começar pelo maior deles todos, Cidadão Kane, que não passa de um pungente estudo sobre a busca do poder e a solidão final de quem se entrega a ele. Terra em Transe é, entre outras coisas, um estudo sobre a tragédia política brasileira, num contexto de luta desenfreada pelo poder, como foi o golpe de 1964, matriz histórica da reflexão de Glauber em sua república imaginária.
Poderia ficar aqui citando indefinidamente. E até mesmo lembrar que não existe política sem essa luta pelo poder. Também é forçoso reconhecer que pode haver um lado benigno, quando se conquista o poder para, com ele, fazer coisas boas pela comunidade. Por isso, um pensador tão realista como Maquiavel, ao teorizar sobre a conquista e manutenção do poder, levava em conta a população. De um déspota, dizia que havia conquistado o poder, mas não a glória. São coisas diferentes. Há quem não hesite em desalojar um grupo do poder, por pura ambição, mesmo que seja à custa da destruição de um Estado. Podemos dizer que isso é legítimo?
De modo que a luta desenfreada pelo poder pode tanto destruir o sujeito que o conquista quanto o Estado pelo qual essa luta se trava. No caso, a vaidade, a droga pesada do poder, se sobrepõe ao interesse coletivo.
Gosto de um filme mais modesto, mas muito bonito, chamado entre nós de A Comédia do Poder, de Claude Chabrol. No original, L’Ivresse du Pouvoir, a embriaguez do poder. Nele, Isabelle Huppert faz a juíza obstinada em decifrar um caso de corrupção na alta esfera e tenta colocar a todos na cadeia. Aos poucos, percebe que não passa de um joguete em mãos mais poderosas ainda e que está atirando no lixo a própria vida num combate vão. Perto do final, resolve mandar tudo às favas e cuidar de si: “Qu’ils se démerdent!”, diz. Que se danem.
É mais ou menos o que temos vontade de dizer no Brasil de hoje: eles que se danem, para não falar pior. Acontece que não vivemos fora do mundo da política. E o que eles fazem, ou deixam de fazer, nos afeta de maneira direta.
Não temos o direito de lavar as mãos e fingir que não é com a gente.
Estadão
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