Michel Zaidan Filho,
“O esquecimento é uma forma de reificação. A memória, de libertação”
Jorge Semprum
O tema da memória e da rememoração (anamnese) passou a ter importância no mundo moderno a partir da perda da dimensão social e coletiva da memória. A divisão social do trabalho e o aparecimento de um tipo de sociabilidade anômala, egoísta e desenraizada socialmente. É a temática da alienação e reificação típicas do capitalismo tardio ou administrado, onde os indivíduos não se reconhecem na organização e nem mantém entre si qualquer laço ou relação humana.
Essa questão ganhou força com o conceito de “memória coletiva”, do suíço Maurice Halbwacks, e de “memória involuntária”, de Walter Benjamin a partir da influencia da crítica de Marx ao capitalismo, da psicanálise de Freud e da mística judaica.
Segundo Benjamin, a memória coletiva está associada à vida comunitária da época do artesanato, onde ainda não havia uma grande divisão social do trabalho. Mestres e artesãos conviviam fraternalmente, sem distinção de classe, estamento ou casta. Essa vida comunitária conduzia a um compartilhamento de situações, lembranças, emoções, ajudando a forjar uma memória coletiva – um depósito de lembranças comuns – responsável pela produção de identidade social. Vem daí o conceito de “experiência” (efarhung) como o sustentáculo de uma memória social, responsável pelo sentimento de pertencimento de cada um a uma mesma cultura, ou coletividade.
Com o advento da modernidade urbano-industrial e a rígida e impessoal divisão social do trabalho, rompem-se aqueles laços; a vida comunitária e o processo de individualização das pessoas, produz-se uma fragmentação da vida social e um impacto da formação da memória coletiva, que é substituída por uma memória individual, sem conteúdos de uma vida compartilhada (valores, normas, símbolos, crenças, etc.) e sua substituição pelo sentimento de solidão e individualismo. O pertencimento social das pessoas agora é caracterizado pelo lugar que elas ocupam na estrutura de classes e na estratificação social determinada pelas relações econômicas. O dinheiro e o valor troca é a mediação universal entre os indivíduos, não mais a memória coletiva e a experiência. Temos agora a vivência (elerbinis) que é um fragmento desconectado do todo da existência social.
A problemática da perda da memória, substituída pela consciência (para-choque que amortece o efeito traumático da vida cotidiana) transforma os indivíduos em átomos que giram sem comunicação uns com outros. São autômatos ou andróides desmemoriados.
A solução (terapêutica) benjaminiana seria o resgate ou a recuperação dessa memória coletiva (onde estão depositados os indícios de outra vida, de uma outra sociabilidade, de lembranças fundamentais), libertando as pessoas da alienação, do esquecimento e da dominação social. A proposta é tanto de ordem micro como macrossocial. A libertação microsocial se dá através da anamnese e da cura, pela lembrança e a fala. A libertação macrossocial é da ordem da ideologia e da política e se confunde com a revolução.
Salvar o passado é resgatá-lo do esquecimento e reatualizá-lo através das lutas sociais. É transtemporalizá-lo, realizando hoje as utopias e projetos das gerações passadas, para que o seu sacrifício não fique impune ou seja em vão.
Aplicar essa Filosofia da História ao resgate da memória dos oprimidos, em nossa sociedade nos obriga a compreender que “nem os mortos estão seguros, se os vencedores de ontem continuarem a vencer, pelo silêncio e a impotência” a que foram destinados os vencidos. Por isso, a reinstauração dessa memória tem de ser a partir de uma ordem de luta, não de festa ou confraternização. Relembrar é salvar do esquecimento e do olvido as lutas antigas, os ideais e sonhos de nossos antepassados. E essa tarefa é do presente, dos indivíduos do presente, da vida presente.
Por Michel Zaidan Filho, filósofo, historiador, cientista político, professor da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD/UFPE.
Blog Síntese
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