quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Perigos e origens do refluxo das esquerdas


Milton Temer 

É indiscutível, para quem viveu o fim do autoritarismo sob tutela militar (porque outras formas de autoritarismo foram mantidas como sequelas da transição pelo alto na mudança de regime), que uma diferença fundamental se registra no cenário do embate político brasileiro entre as décadas de 80/90 e os dias atuais.


E esta diferença é, indiscutivelmente, o retrocesso brutal na capacidade de mobilização das esquerdas - política e social - manifestada naquele período. Foi ali, principalmente, que o pensamento e a afirmação de "um outro mundo é possível", ou da explicitação do objetivo estratégico do socialismo, ocupou corações e mentes de quem participava das lutas. Nas ruas, nas entidades da sociedade civil organizada, nas edições locais do Fórum Mundial Social, o que estava em jogo não era uma proposta “melhorista” do capitalismo. O que estava em jogo era a perspectiva de desconstrução do regime essencialmente perverso predador. O que estava em jogo era a necessidade de contestar uma globalização financeiro-especulativa profundamente degradante do ambiente existencial, com sua lógica da competitividade tentando se sobrepor ao sentido de necessária convivência solidária e fraterna entre povos como garantia de sobrevivência existencial da sociedade humana.

No Brasil, nem mesmo a vitória de Fernando Henrique Cardoso em 1994 foi capaz de frear essa tendência combativa. Pelo contrário. Foi justamente aí que se radicalizou o processo de mobilizações e ocupações de Brasília por grandes manifestações onde movimentos sociais - com destaque para o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra - e partidos da esquerda combativa não temiam em se afirmar até como revolucionários, consequentes com a afirmação de socialistas que guardavam em seus documentos programáticos. E tão fortes se mostraram tais mobilizações que, no final do mandarinato neoliberal, privatista, subalterno aos desígnios políticos e econômicos do grande capital internacional, o candidato dos maganos à sucessão presidencial se apresentava sob o bordão do "continuísmo sem continuidade", sabendo-se lá o que isso queira dizer para além de dissimular seu verdadeiro fundamento conservador.

É aí que se dá a tragédia. O início de uma era saída da imensa esperança de mudança que se transforma num período de imensas decepções e traições, programáticas e ideológicas. A era nascida da chegada de Lula ao Planalto. Quando tomamos conhecimento de que o até então líder inconteste e referencial de um partido onde muito se discutiu no embate reforma x revolução - onde Leandro Konder, Carlos Nelson Coutinho e este escrevinhador viveram amplos períodos de desconfiança como "reformistas”-, era na verdade uma "metamorfose ambulante" depois de garantir "nunca ter sido de esquerda".

E para que, tal transformismo?

Para consolidar o que seu próprio porta-voz de primeiro mandato, o insuspeito acadêmico André Singer, até hoje a ele ligado, definia como "pacto conservador de alta intensidade" conformado sob a astúcia de um "reformismo fraco". Ou seja; uma deliberada decisão de governar sem incomodar os de cima - pelo contrário, criando condições que nunca teriam tido antes para "lucrar tanto". Sob a garantia de uma política assistencial de baixo custo, acobertando práticas antissociais gritantes, como o ataque à Seguridade Social que os petistas haviam combatido no governo neoliberal anterior. Era o lulopragmatismo. Que vinha para estiolar os movimentos sociais mais populares, sobre os quais mantinha prestígio histórico, e imensa quantidade de gordura para queimar por conta de bolsas-família e cestas-básicas, e os da aristocracia operária a partir dos quais fincara seus alicerces de poder - os sindicalistas do ABC.

Mais ainda. Com sua reconhecida intuição política; com o simbolismo do "presidente-operário", neutralizava boa parte de uma intelectualidade de esquerda que tudo faria, na sequência, para evitar o "mal maior": o retorno dos tucanos ao poder. Funcionou enquanto durou a ilusão das commodities a preços tentadores no comércio externo. Funcionou porque a parte assistencial - onde se distribuía a 11 milhões de família, anualmente, o que somente os dois maiores bancos privados lucravam em apenas 9 meses destes mesmos períodos anuais - garantia realmente a ascensão de segmentos miseráveis à possibilidade de um consumo despolitizado que se garantia por generosa política de créditos. Nunca, também, linha branca e montadoras de automóveis tiveram tanta isenção tributária.

Mas castelo de areia não tem vida permanente. O que permitira a pantomima dos dois governos Lula se desmorona no estelionato eleitoral da reeleição de Dilma. A perplexidade se instala com o absurdo de ver a representante do governo, dito, popular-democrático, assumir na íntegra o programa antissocial do candidato da direita reacionária que havia derrotado nas vésperas. As consequências do estelionato eleitoral não se fizeram esperar. As pesquisas reduzem a pó o que havia sido a vitória do veto contra a candidatura da restauração conservadora, na medida em que o fora derrotado prevalecia como realidade conjuntural. E Dilma se atolou de forma comprometedora. Não ganhou nada, com sua traição, entre os que escolheram para se submeter, e jogou no lixo o apoio que havia recebido de forças até então dispersas da esquerda combativa, num segundo turno vencido por um "beiço de pulga".

Dava aí o ponto final na costura do processo transformista iniciado 12 anos antes. Commodities em queda por todo o mundo. Refluxo econômico nas potências capitalistas importadoras de nossa matéria prima. Descontrole geral sobre o fluxo da dívida. Caos e imprevisibilidade na previsibilidade de um até tsunami. Clima ideal, portanto, para o golpe armado pelos que não têm nenhuma divergência programática com seu governo, mas que com ela disputam o controle da chave do cofre que guarda o botim.

Onde vamos dar?

Difícil prever. Talvez, impossível. Vivemos aquelas fases históricas em que vaca não reconhece bezerro nos diversos campos da sociedade e das instituições republicanas. E onde a direita encontra ânimo para mobilizar seus trogloditas, nostálgicos de peito aberto e alto tom de voz, da ditadura.

Conclusão?

A crise da esquerda tem sua origem e razão, gerou-se, no transformismo imposto ao PT pela perspectiva do poder pelo poder em que o "Lulinha, paz e amor" se abraçou na sua opção pessoal. Pela traição ideológica e programática.

A saída?

A saída depende de que tipo de sociedade pretende quem faz a pergunta. Para nós da esquerda combativa, não há outra. Confluência de esforços, combate ideológico permanente onde movimentos espontâneos - como essa genial mobilização dos estudantes paulistas na ocupação de suas escolas -, e resistir ao golpe proposto pelos que defendem um impeachment que não resultará em nada além de mais do mesmo.

E Luta que Segue! Pois morrer no áspero é nossa sina.

Diário Liberdade


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