Nos últimos anos, prostituição foi equiparada a tráfico humano e ofício indesejável. Este erro brutal atinge, infelizmente, as feministas ortodoxas
Por Marília Moschkovich |
I. Porto Alegre, janeiro de 2002
Fórum Social Mundial. Eu devia ter uns quinze anos. Na vasta programação, uma oficina me chamou a atenção: um debate organizado pela “Liga Brasileira de Prostitutas” (se não me falha a memória, o nome era esse na época). Era novidade pra mim que as prostitutas se organizassem – eu que, menina de classe média, jamais havia conhecido prostituta alguma, claro. Quem seriam aqueles seres praticamente de outro mundo? Achando inconcebível a ideia de alguém se prostituir por escolha, resolvi ir à atividade para conhecer “de perto” as mazelas das pobres, coitadas e exploradas mulheres que eu escutava que eram tão oprimidas.
Foi um tapa na cara.
Escutando o que as debatedoras tinham a dizer, ficou claro para mim que o estereótipo que eu tinha dessas mulheres era uma grande bobagem, e uma bobagem extremamente estigmatizante. Em primeiro lugar, porque ele não dava conta da diversidade de contextos e situações vividos por elas. Quer dizer, ali na minha frente, microfone em punho, havia três debatedoras. A primeira era uma travesti, formada em Direito, advogada, com os documentos regularizados, mas que não conseguia trabalho na área. Por isso, mantinha a prostituição como principal fonte de renda. A segunda era uma mulher cisgênera, que havia trabalhado como empregada doméstica, preferindo mais tarde a prostituição. A terceira era também travesti, que desde sempre havia escolhido a prostituição como trabalho.
Estavam presentes ali características diversas que desconstruíam o mito perverso que confunde prostituição com tráfico de pessoas. Nenhuma delas havia sido traficada, e nenhuma delas tinha a prostituição como única escolha profissional. Ao longo da discussão, contaram suas histórias, mostrando que, em dado momento na vida, definiram que o ritmo de trabalho e a renda obtidas com a prostituição eram melhores do que dezenas de outras possibilidades – atendente de loja, caixa de supermercado, diarista, doméstica mensalista, garçonete e atendente de telemarketing eram algumas das profissões que contavam ter descartado. Foi ali que me caiu a ficha: desconsiderando que o trabalho das prostitutas é um serviço quase sempre (mas nem sempre) sexual, o que o diferenciava então de subempregos bem aceitos socialmente?
Corta. (e guardem a pergunta)
II. Paris, janeiro de 2010
O mandato do conservador Nicolas Sarkozy chegava a sua metade. Dentre as medidas retrógradas adotadas, o movimento feminista francês (em parte) esbravejava quando desembarquei no aeroporto Charles de Gaulle em férias, preparando-me para ingressar no mestrado. Havia poucos dias ou semanas as prostitutas haviam sido proibidas de trabalhar em público, procurando clientes nas ruas. A medida fez com que muitas trabalhadoras autônomas passassem a se submeter a regras de outrem (proprietários de casas, donos de apartamentos e motéis/hotéis, etc), tampouco regulamentadas no país.
Naquele mês, uma de minhas atividades favoritas era ir ao cinema. Passei em frente a uma portinha na boca da praça Saint Michel, e um cartaz anunciava em letras enormes o documentário “Travailleuses du sexe et fières de l’être” (algo como “Trabalhadoras do sexo, com orgulho”). Haveria um debate, após a exibição do documentário, com o documentarista e uma antropóloga. “Cadê as putas?”, pensei logo, “Elas não têm nada a dizer no debate?” – mas supus que estariam bem representadas no filme.
O filme… Ah, o filme.
Tentei encontrá-lo com legendas e não consegui. Para quem quiser arriscar o francês, fazer legendagem ou tentar legendas automáticas no youtube, o documentário completo pode ser acessado aqui. O filme faz um panorama da situação dos direitos trabalhistas de prostitutas e outras trabalhadoras e trabalhadores do sexo (alô, minha gente, o mercado do sexo é bem amplo, viu?) em diferentes países da Europa. Por meio das entrevistas, mostra o quanto a garantia de direitos básicos afeta a vida dessas mulheres. No debate em seguida, lá estavam elas, como eu, na plateia: desafiando o documentarista e a antropóloga que defendiam (!) a lei assinada por Sarkozy. Com feministas de diferentes grupos, deixavam claro que queriam que essa fosse uma escolha profissional como outra qualquer.
Algum tempo mais tarde assisti também o incrível 69 – Praça da Luz (veja aqui), documentário de Carolina Markowicz e Joana Galvão, sobre a vida de prostitutas que trabalham no centro de São Paulo. Quem assistir por último é a mulher do padre!
Corta de novo.
III. Quase-janeiro de 2014
O debate volta à tona. O PL 4211/2012 (clique para ler na íntegra), chamado de Lei Gabriela Leite, é defendido pelo deputado federal Jean Willys, por alguns grupos feministas e por prostitutas politicamente organizadas no Brasil. Ao mesmo tempo, é atacado por ativistas feministas mais ortodoxas e suas organizações (como a Marcha Mundial das Mulheres, ou a organização de mulheres da CUT). Embora esteja na crista da onda, o debate sobre essa lei específica começou tão logo ela surgiu. Em pouco mais de um ano já vimos militantes feministas atacando a proposta, outras divergindo da posição oficial do grupo ao qual pertenciam e defendendo o projeto, e eu dei meu pitaco aqui.
Para animar o debate corrente (que se acirra com a proximidade da Copa do Mundo, evento que além de movimentar bilhões no mercado do esporte também aquece o mercado do sexo), na semana passada o governo francês aprovou uma lei criminalizando os clientes de prostitutas. O presidente já não é Nicolas Sarkozy, ultra-conservador, mas um representante do Partido Socialista! A medida, porém, bem poderia ter sido assinada por Sarkô, dado o teor da proposta. Em vez de criminalizar a prostituição, o Estado criminaliza sua clientela, tornando a prostituição oficialmente parte de um “mercado negro”. A divisão em terras francesas está parecida com a nossa: de um lado setores ortodoxos da esquerda e do movimento feminista ignorando os movimentos organizados dessa parte da classe trabalhadora, e de outro as trabalhadoras do sexo organizadas politicamente e setores menos ortodoxos do feminismo e da esquerda.
Mas afinal de contas, como lidar com a questão da prostituição dentro do feminismo?
IV. Três questões fundamentais
Para começar esse debate – que já mencionei e retomarei aqui em breve – é preciso atenção a três pontos fundamentalíssimos. Não são os únicos três pontos importantes da discussão, e prometo abordar outros mais adiante (inclusive alguns ligados mais diretamente aos argumentos das feministas radicais e ortodoxas sobre o assunto, que estão sendo propositalmente deixados de lado aqui, por merecerem uma análise mais fina).
1. É preciso distinguir: prostituição não é tráfico de pessoas.
Parece uma coisa boba, mas não é. A prostituição é uma das atividades econômicas associadas ao tráfico de pessoas, em especial de mulheres, nos dias de hoje. No entanto, é preciso compreender que, sendo muito mais antiga do que o tráfico de pessoas, não é a prostituição que o causa. É o capitalismo. O capitalismo causa trabalho análogo ao escravo e tráfico de pessoas em dezenas de indústrias e mercados (o que dizer daquela sua roupinha linda comprada na Marisa ou na Zara?), e não apenas no mercado do sexo. Fazer uma associação direta e necessária entre prostituição e tráfico de pessoas é uma ilusão – ilusão essa que, inclusive, apaga a realidade do tráfico de pessoas em diversas outras atividades social e moralmente “mais aceitas”.
Durante o século XX, foi criado o mito do “tráfico de mulheres”. ”Mito”, aqui, não quer dizer que ele não exista — mas que os fatos são costumeiramente distorcidos, para reforçar a ideia de que as mulheres, se não fossem forçadas, jamais aceitariam ser prostitutas. Para quem duvida ou quer se informar melhor, dois bons artigos sobre isso estão aqui e aqui. Pra quem tiver tempo, recomendo ainda o ensaio de Emma Goldman sobre o assunto , assim como sua apresentação escrita pela Profª Margareth Rago , e o ensaio-comentário da antropóloga Gayle Rubin (“The trouble with trafficking”) [livro completo, em inglês] .
2. Todo cuidado é pouco com a arrogância militante e atitudes “colonizadoras”
Uma das atitudes mais estratégicas dos grupos conservadores que associam prostituição a tráfico de pessoas é, precisamente, não escutar a classe oprimida em questão. Quer dizer: quem sabe o que é melhor para as trabalhadoras do sexo? Elas mesmas, ou as militantes, padres e pastores iluminados moral e politicamente? Falei uma vez sobre “síndrome da militância arrogante“, que é mais ou menos isso. Consideramos as ideologias como verdades absolutas e nos esquecemos de ouvir quem importa. Afinal de contas, será que acharíamos aceitável que apenas homens definissem a legislação sobre o corpo das mulheres (como o aborto)? Acharíamos aceitável que apenas brancos discutissem e fechassem leis sobre cotas raciais, ignorando a existência do movimento negro? Então por que parece tranquilo, para tanta gente, que não-prostitutas definam os direitos trabalhistas das prostitutas, ignorando completamente seu movimento politicamente organizado e suas reivindicações?
No feminismo intersecional, chamamos essas atitudes de “colonizatórias” ou “colonizadoras”. Quer dizer: pessoas em situação de privilégio utilizam esse privilégio para destituírem o “outro”, desprivilegiado de agência. Agência é a capacidade – o poder – de agir, tomar decisões por si próprio, considerar os fatores e consequências envolvidos em seus próprios atos.
3. Em nossa sociedade, todo moralismo é machista.
Se considerarmos que a prostituição e o tráfico de pessoas são duas coisas distintas, fica realmente difícil entender por que a prostituição deveria ser proibida e fabricar e usar roupas, não (já que na realidade há associação entre tráfico de pessoas – especialmente mulheres – e confecções, em grandes cidades brasileiras). Eliane Brum escreveu lindamente sobre isso aqui e eu reforço a mesma posição: por que achamos que uma mulher adulta, consciente, dotada de agência, não pode escolher viver prestando serviços sexuais? Não vou nem entrar no mérito de questionar a prostituição como serviço exclusivamente sexual. Deixo isso para outra hora.
Há três grandes diferenças entre prostituição e confecção de roupas, agricultura e outras profissões também permeadas pelo tráfico de pessoas. A profissão não é regulamentada (o que torna suas trabalhadoras ainda mais vulneráveis, pois não possuem nenhuma ferramenta de proteção legal como outras categorias). O serviço está ligado, pelo menos em grande parte das vezes, à prática sexual. Disso decorre que, ao tratar o sexo como serviço pelo qual se pode pagar, a prostituição desafia uma crença moral muito forte — a de que sexo deve sempre ser feito por amor, afeto e tesão “espontâneos”.
Questões morais legítimas convertem-se em moralismo quando tenta-se utilizá-las como régua única, generalizadora e brutal sobre todas as realidades de todas as pessoas. É o que acontece quando uma militante feminista diz que a prostituição é necessariamente um mal, e que nenhuma mulher faria isso se não fosse forçada por condições econômicas ou pelo “patriarcado”. Na régua de valores dessas militantes o sexo não pode ser vendido (isso quando não trocam alhos com bugalhos e dizem que o que está sendo vendido é o corpo — uma grande mentira combatida pelos movimentos de trabalhadoras do sexo do mundo todo).
Somem a tudo isso a tal síndrome da militância arrogante – o assalto à agência dessas mulheres todas que trabalham no mercado do sexo – e, voilà, o estrago está feito. Temos então feministas que, em vez de defenderem a liberdade de as mulheres fazerem o que quiserem com os próprios corpos, defendem pautas que as proíbem de escolherem por si mesmas. Roubam-nas de sua agência. Fingem que não escutam. Invisibilizam. Ora, o raciocínio é o mesmo em relação ao aborto, minhas amigas: quem o pratica deve sofrer violências e ser abandonada pelo Estado, pelo simples fato de você estar decidida a não abortar?
Em 17 de dezembro, celebra-se o dia internacional de luta pelo fim da violência contra as trabalhadoras do sexo. Até lá, espero sinceramente que a discussão se aprofunde. Vamos trocar os discursos prontos pela informação, reflexão e debate. Acima de tudo, como sempre, meu melhor conselho para as que estamos do lado privilegiado da história (no caso, quem não trabalha no mercado do sexo) é: ouçamos.
PS.: o debate feminista sobre práticas sexuais (prostituição, BDSM, pornografia, etc) vai muito, muito longe e é delicioso; prometo voltar a ele em breve!
Outras Palavras
Por Marília Moschkovich |
I. Porto Alegre, janeiro de 2002
Fórum Social Mundial. Eu devia ter uns quinze anos. Na vasta programação, uma oficina me chamou a atenção: um debate organizado pela “Liga Brasileira de Prostitutas” (se não me falha a memória, o nome era esse na época). Era novidade pra mim que as prostitutas se organizassem – eu que, menina de classe média, jamais havia conhecido prostituta alguma, claro. Quem seriam aqueles seres praticamente de outro mundo? Achando inconcebível a ideia de alguém se prostituir por escolha, resolvi ir à atividade para conhecer “de perto” as mazelas das pobres, coitadas e exploradas mulheres que eu escutava que eram tão oprimidas.
Foi um tapa na cara.
Escutando o que as debatedoras tinham a dizer, ficou claro para mim que o estereótipo que eu tinha dessas mulheres era uma grande bobagem, e uma bobagem extremamente estigmatizante. Em primeiro lugar, porque ele não dava conta da diversidade de contextos e situações vividos por elas. Quer dizer, ali na minha frente, microfone em punho, havia três debatedoras. A primeira era uma travesti, formada em Direito, advogada, com os documentos regularizados, mas que não conseguia trabalho na área. Por isso, mantinha a prostituição como principal fonte de renda. A segunda era uma mulher cisgênera, que havia trabalhado como empregada doméstica, preferindo mais tarde a prostituição. A terceira era também travesti, que desde sempre havia escolhido a prostituição como trabalho.
Estavam presentes ali características diversas que desconstruíam o mito perverso que confunde prostituição com tráfico de pessoas. Nenhuma delas havia sido traficada, e nenhuma delas tinha a prostituição como única escolha profissional. Ao longo da discussão, contaram suas histórias, mostrando que, em dado momento na vida, definiram que o ritmo de trabalho e a renda obtidas com a prostituição eram melhores do que dezenas de outras possibilidades – atendente de loja, caixa de supermercado, diarista, doméstica mensalista, garçonete e atendente de telemarketing eram algumas das profissões que contavam ter descartado. Foi ali que me caiu a ficha: desconsiderando que o trabalho das prostitutas é um serviço quase sempre (mas nem sempre) sexual, o que o diferenciava então de subempregos bem aceitos socialmente?
Corta. (e guardem a pergunta)
II. Paris, janeiro de 2010
O mandato do conservador Nicolas Sarkozy chegava a sua metade. Dentre as medidas retrógradas adotadas, o movimento feminista francês (em parte) esbravejava quando desembarquei no aeroporto Charles de Gaulle em férias, preparando-me para ingressar no mestrado. Havia poucos dias ou semanas as prostitutas haviam sido proibidas de trabalhar em público, procurando clientes nas ruas. A medida fez com que muitas trabalhadoras autônomas passassem a se submeter a regras de outrem (proprietários de casas, donos de apartamentos e motéis/hotéis, etc), tampouco regulamentadas no país.
Naquele mês, uma de minhas atividades favoritas era ir ao cinema. Passei em frente a uma portinha na boca da praça Saint Michel, e um cartaz anunciava em letras enormes o documentário “Travailleuses du sexe et fières de l’être” (algo como “Trabalhadoras do sexo, com orgulho”). Haveria um debate, após a exibição do documentário, com o documentarista e uma antropóloga. “Cadê as putas?”, pensei logo, “Elas não têm nada a dizer no debate?” – mas supus que estariam bem representadas no filme.
O filme… Ah, o filme.
Tentei encontrá-lo com legendas e não consegui. Para quem quiser arriscar o francês, fazer legendagem ou tentar legendas automáticas no youtube, o documentário completo pode ser acessado aqui. O filme faz um panorama da situação dos direitos trabalhistas de prostitutas e outras trabalhadoras e trabalhadores do sexo (alô, minha gente, o mercado do sexo é bem amplo, viu?) em diferentes países da Europa. Por meio das entrevistas, mostra o quanto a garantia de direitos básicos afeta a vida dessas mulheres. No debate em seguida, lá estavam elas, como eu, na plateia: desafiando o documentarista e a antropóloga que defendiam (!) a lei assinada por Sarkozy. Com feministas de diferentes grupos, deixavam claro que queriam que essa fosse uma escolha profissional como outra qualquer.
Algum tempo mais tarde assisti também o incrível 69 – Praça da Luz (veja aqui), documentário de Carolina Markowicz e Joana Galvão, sobre a vida de prostitutas que trabalham no centro de São Paulo. Quem assistir por último é a mulher do padre!
Corta de novo.
III. Quase-janeiro de 2014
O debate volta à tona. O PL 4211/2012 (clique para ler na íntegra), chamado de Lei Gabriela Leite, é defendido pelo deputado federal Jean Willys, por alguns grupos feministas e por prostitutas politicamente organizadas no Brasil. Ao mesmo tempo, é atacado por ativistas feministas mais ortodoxas e suas organizações (como a Marcha Mundial das Mulheres, ou a organização de mulheres da CUT). Embora esteja na crista da onda, o debate sobre essa lei específica começou tão logo ela surgiu. Em pouco mais de um ano já vimos militantes feministas atacando a proposta, outras divergindo da posição oficial do grupo ao qual pertenciam e defendendo o projeto, e eu dei meu pitaco aqui.
Para animar o debate corrente (que se acirra com a proximidade da Copa do Mundo, evento que além de movimentar bilhões no mercado do esporte também aquece o mercado do sexo), na semana passada o governo francês aprovou uma lei criminalizando os clientes de prostitutas. O presidente já não é Nicolas Sarkozy, ultra-conservador, mas um representante do Partido Socialista! A medida, porém, bem poderia ter sido assinada por Sarkô, dado o teor da proposta. Em vez de criminalizar a prostituição, o Estado criminaliza sua clientela, tornando a prostituição oficialmente parte de um “mercado negro”. A divisão em terras francesas está parecida com a nossa: de um lado setores ortodoxos da esquerda e do movimento feminista ignorando os movimentos organizados dessa parte da classe trabalhadora, e de outro as trabalhadoras do sexo organizadas politicamente e setores menos ortodoxos do feminismo e da esquerda.
Mas afinal de contas, como lidar com a questão da prostituição dentro do feminismo?
IV. Três questões fundamentais
Para começar esse debate – que já mencionei e retomarei aqui em breve – é preciso atenção a três pontos fundamentalíssimos. Não são os únicos três pontos importantes da discussão, e prometo abordar outros mais adiante (inclusive alguns ligados mais diretamente aos argumentos das feministas radicais e ortodoxas sobre o assunto, que estão sendo propositalmente deixados de lado aqui, por merecerem uma análise mais fina).
1. É preciso distinguir: prostituição não é tráfico de pessoas.
Parece uma coisa boba, mas não é. A prostituição é uma das atividades econômicas associadas ao tráfico de pessoas, em especial de mulheres, nos dias de hoje. No entanto, é preciso compreender que, sendo muito mais antiga do que o tráfico de pessoas, não é a prostituição que o causa. É o capitalismo. O capitalismo causa trabalho análogo ao escravo e tráfico de pessoas em dezenas de indústrias e mercados (o que dizer daquela sua roupinha linda comprada na Marisa ou na Zara?), e não apenas no mercado do sexo. Fazer uma associação direta e necessária entre prostituição e tráfico de pessoas é uma ilusão – ilusão essa que, inclusive, apaga a realidade do tráfico de pessoas em diversas outras atividades social e moralmente “mais aceitas”.
Durante o século XX, foi criado o mito do “tráfico de mulheres”. ”Mito”, aqui, não quer dizer que ele não exista — mas que os fatos são costumeiramente distorcidos, para reforçar a ideia de que as mulheres, se não fossem forçadas, jamais aceitariam ser prostitutas. Para quem duvida ou quer se informar melhor, dois bons artigos sobre isso estão aqui e aqui. Pra quem tiver tempo, recomendo ainda o ensaio de Emma Goldman sobre o assunto , assim como sua apresentação escrita pela Profª Margareth Rago , e o ensaio-comentário da antropóloga Gayle Rubin (“The trouble with trafficking”) [livro completo, em inglês] .
2. Todo cuidado é pouco com a arrogância militante e atitudes “colonizadoras”
Uma das atitudes mais estratégicas dos grupos conservadores que associam prostituição a tráfico de pessoas é, precisamente, não escutar a classe oprimida em questão. Quer dizer: quem sabe o que é melhor para as trabalhadoras do sexo? Elas mesmas, ou as militantes, padres e pastores iluminados moral e politicamente? Falei uma vez sobre “síndrome da militância arrogante“, que é mais ou menos isso. Consideramos as ideologias como verdades absolutas e nos esquecemos de ouvir quem importa. Afinal de contas, será que acharíamos aceitável que apenas homens definissem a legislação sobre o corpo das mulheres (como o aborto)? Acharíamos aceitável que apenas brancos discutissem e fechassem leis sobre cotas raciais, ignorando a existência do movimento negro? Então por que parece tranquilo, para tanta gente, que não-prostitutas definam os direitos trabalhistas das prostitutas, ignorando completamente seu movimento politicamente organizado e suas reivindicações?
No feminismo intersecional, chamamos essas atitudes de “colonizatórias” ou “colonizadoras”. Quer dizer: pessoas em situação de privilégio utilizam esse privilégio para destituírem o “outro”, desprivilegiado de agência. Agência é a capacidade – o poder – de agir, tomar decisões por si próprio, considerar os fatores e consequências envolvidos em seus próprios atos.
3. Em nossa sociedade, todo moralismo é machista.
Se considerarmos que a prostituição e o tráfico de pessoas são duas coisas distintas, fica realmente difícil entender por que a prostituição deveria ser proibida e fabricar e usar roupas, não (já que na realidade há associação entre tráfico de pessoas – especialmente mulheres – e confecções, em grandes cidades brasileiras). Eliane Brum escreveu lindamente sobre isso aqui e eu reforço a mesma posição: por que achamos que uma mulher adulta, consciente, dotada de agência, não pode escolher viver prestando serviços sexuais? Não vou nem entrar no mérito de questionar a prostituição como serviço exclusivamente sexual. Deixo isso para outra hora.
Há três grandes diferenças entre prostituição e confecção de roupas, agricultura e outras profissões também permeadas pelo tráfico de pessoas. A profissão não é regulamentada (o que torna suas trabalhadoras ainda mais vulneráveis, pois não possuem nenhuma ferramenta de proteção legal como outras categorias). O serviço está ligado, pelo menos em grande parte das vezes, à prática sexual. Disso decorre que, ao tratar o sexo como serviço pelo qual se pode pagar, a prostituição desafia uma crença moral muito forte — a de que sexo deve sempre ser feito por amor, afeto e tesão “espontâneos”.
Questões morais legítimas convertem-se em moralismo quando tenta-se utilizá-las como régua única, generalizadora e brutal sobre todas as realidades de todas as pessoas. É o que acontece quando uma militante feminista diz que a prostituição é necessariamente um mal, e que nenhuma mulher faria isso se não fosse forçada por condições econômicas ou pelo “patriarcado”. Na régua de valores dessas militantes o sexo não pode ser vendido (isso quando não trocam alhos com bugalhos e dizem que o que está sendo vendido é o corpo — uma grande mentira combatida pelos movimentos de trabalhadoras do sexo do mundo todo).
Somem a tudo isso a tal síndrome da militância arrogante – o assalto à agência dessas mulheres todas que trabalham no mercado do sexo – e, voilà, o estrago está feito. Temos então feministas que, em vez de defenderem a liberdade de as mulheres fazerem o que quiserem com os próprios corpos, defendem pautas que as proíbem de escolherem por si mesmas. Roubam-nas de sua agência. Fingem que não escutam. Invisibilizam. Ora, o raciocínio é o mesmo em relação ao aborto, minhas amigas: quem o pratica deve sofrer violências e ser abandonada pelo Estado, pelo simples fato de você estar decidida a não abortar?
Em 17 de dezembro, celebra-se o dia internacional de luta pelo fim da violência contra as trabalhadoras do sexo. Até lá, espero sinceramente que a discussão se aprofunde. Vamos trocar os discursos prontos pela informação, reflexão e debate. Acima de tudo, como sempre, meu melhor conselho para as que estamos do lado privilegiado da história (no caso, quem não trabalha no mercado do sexo) é: ouçamos.
PS.: o debate feminista sobre práticas sexuais (prostituição, BDSM, pornografia, etc) vai muito, muito longe e é delicioso; prometo voltar a ele em breve!
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