segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

A questão ideológica do Brasil contemporâneo



Embora já surrada, a questão do "fim das ideologias", assim como do "fim da história", reaparecem de tempos em tempos, abertamente ou de forma subliminar.

Francisco Fonseca

Embora já surrada, a questão do “fim das ideologias”, assim como do “fim da história”, reaparecem de tempos em tempos, abertamente ou de forma subliminar. Trata-se de uma questão internacional, mas com contornos específicos no Brasil.

Há, de certa forma, uma espécie de “ideologia da não ideologia”, isto é, a tentativa permanente, aguçada em períodos pré-eleitorais e eleitorais, dos setores liberais e conservadores desqualificarem, por estratégias diversas, os pressupostos, objetivos e formas de atuação dos grupos à esquerda.

Mesmo que os aspectos concretos quanto à forma de atuar dos grupos sociais – à esquerda, ao centro e à direita no espectro – dependa de um conjunto de circunstâncias históricas, tais como o contexto internacional, a correlação de forças numa dada sociedade, o grau de organização e mobilização das forças sociais, o papel das instituições políticas, os padrões do modelo de acumulação, entre outras variáveis, há elementos essencialmente definidores do significado de esquerda e direita.

Vejamos, de forma panorâmica e sem a pretensão de esgotar suas características, alguns desses elementos essenciais quanto à atualidade da esquerda.

Primariamente, diz respeito ao tema da igualdade: política e social. O pensamento à esquerda – concretizado em governos – tem como objetivo central a diminuição das desigualdades e, num plano de longo prazo, sua eliminação. Em termos da agenda governamental, esse pressuposto implica: ampliação do gasto social (medido em relação ao PIB); busca pela universalização de direitos, mas contemporaneamente combinada com focalização aos grupos mais vulneráveis; descrença no “mercado livre”, panaceia vendida pelo liberalismo, uma vez que se apoia o direcionamento dos agentes econômicos, e sobretudo o reconhecimento das assimetrias entre os detentores do capital e da força de trabalho, reconhecimento que se transforma em políticas de apoio aos trabalhadores via políticas públicas; apoio às formas de participação popular, como conferências nacionais, audiências públicas, entre diversas outras; como decorrência, o estímulo ao chamado “controle social”, em que cidadãos organizados em suas comunidades são partícipes ativos dos processos de implementação e monitoramento de políticas públicas, caso do exitoso Programa Bolsa Família; a questão crucial da aceitação dos conflitos como legítimos, cuja consequência é a negociação e não a repressão policial. Por fim, do ponto de vista das relações internacionais, a busca por autonomia perante as potências mundiais e suas instituições, em que o tema da soberania ganha relevo, e conduz, claramente, a uma visão de mundo à esquerda, em clara contraposição com a chamada direita, tradicionalmente associada às potências hegemônicas.

Em claríssimo contraste, quais são os pressupostos da direita?

Seu pressuposto fundamental é a ordem, resultante da rejeição e aversão aos conflitos, sobretudo de classe, que permanecem revestidos majoritariamente como “conflito distributivo”. Daí o discurso clássico da direita ter na violência do Estado, por meio do “endurecimento das penas”, da brutalidade policial, da “criminalização” dos movimentos sociais, entre tantas outras formas, uma de suas características marcantes. Tal violência, destituída de controles democráticos, volta-se à proteção da propriedade e à “harmonia entre as classes” (mesmo que se negue sua existência).

Afinal, o pressuposto do pensamento liberal/conservador é justamente a “ideologia do mérito”, revestida de “meritocracia”, em que os indivíduos – independentemente de suas condições coletivas históricas – devem competir, sobressaindo-se os “melhores”. Daí o clássico mote do jornal O Estado de S. Paulo, de certa forma compartilhado por toda a grande mídia, de que as elites são constituídas pelos “melhores e mais capazes, venham de onde vierem”. Do ponto de vista internacional, a aceitação da “ordem mundial” tal como dada e ao papel subalterno conferido ao Brasil pela “divisão internacional do trabalho” fez e faz parte do conservadorismo liberal encarnado na perspectiva da direita.

Keynes, mesmo não sendo um intelectual de esquerda, já havia chamado a atenção, num profético artigo publicado em 1926, intitulado “The end of laissez faire”, a respeito dos efeitos nocivos da competição sem regras e da falácia da “mão invisível do mercado”, ambientes em que a ideologia do mérito prospera. Trata-se de pressupostos intrínsecos ao pensamento conservador e liberal, que conflui vigorosamente à direita no espectro.

Albert Hirschman, num primoroso livro sobre o pensamento conservador e liberal – encarnado na direita não nazista –, intitulado a “Retórica da Intransigência: perversidade, futilidade, ameaça” (publicado no Brasil pela Cia. das Lestras em 1992), demonstra detalhadamente os argumentos esgrimidos ao longo de dois séculos contrários à introdução dos direitos civis, políticos e sociais no mundo ocidental. São fortemente reativos em sua ânsia por garantir privilégios.

No Brasil não tem sido diferente, embora nossa direita, sobretudo no século XX, tenha se caracterizado pela adesão a golpes “clássicos”, e também aos “brancos” (mais sutis), respectivamente o golpismo civil/militar até 1964, e toda forma de casuísmo anti-institucional: emenda da reeleição em plena regra que a proibia, populismo cambial, “engavetadores gerais” da República etc.

Mais ainda, no marcante momento da Assembleia Constituinte de 1986/87, um sem-número de críticas ácidas, na perspectiva analisada por Hirschman, foram desferidas contra a “Constituição Cidadã”. Analisei detalhadamente tais críticas em meu livro “O Consenso Forjado – a grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil” (Editora Hucitec, 2005), e pude observar quão conservadora, em plena redemocratização, fora a direita reunida em torno do “Centrão”.

Em outras palavras, essencialmente falando, como sugerido por Norberto Bobbio, há diferenças cruciais entre esquerda e direita, ideologias – ou doutrinas, termo mais correto, pois indica um corpus conceitual e valorativo sistêmico – que continuam vivas e antagônicas, cujos efeitos governamentais sob seu comando são sentidos na vida dos cidadãos comuns, notadamente os pobres.

No Brasil, embora as grandes coalizões partidárias, resultantes, por seu turno, do financiamento privado legal e ilegal das campanhas e da lógica privatista do sistema político brasileiro, embaralhem e turvem a posição de ambas as ideologias, isso não significa que sua vigência seja menor. Ao contrário.

As contradições nos Governos Lula e Dilma expressam justamente os efeitos nefastos de um sistema político fundamentalmente protetor das elites, cujas reformas sociais são sempre incrementais e marginais, como tenho escrito em diversos artigos neste Portal. Em outras palavras, uma verdadeira “inversão de prioridades” (orçamento, crédito, infraestrutura, gastos sociais, dívida pública, universalização de direitos, transparência e participação popular/controle social etc), capaz de “radicalizar a democracia”, é travada em razão da grande aliança conservadora: de classes, que se expressa no sistema político.

A sensação de “geleia geral” do sistema partidário, e mesmo a desilusão perante o Partido dos Trabalhadores de amplas parcelas da sociedade brasileira não destituem o legado – reconhecido sistematicamente nas urnas – de que a obra do pensamento à esquerda está presente nos Governos Lula e Dilma. Apesar de suas imensas contradições e da ausência de um Projeto de sociedade e nação desses governos, os pressupostos de esquerda claramente estiveram e estão presentes, a ponto de as candidaturas oposicionistas dos grandes partidos patinarem em busca de um discurso capaz de se sobrepor aos notáveis avanços sociais, políticos e institucionais vivenciados pela sociedade brasileira.

A questão das concessões de serviços públicos, as parcerias público/privado, a contratualização de setores da gestão pública e o papel dos agentes privados nos sistemas universais de direitos sociais não são suficientes para derrogar os avanços sociais existentes justamente por ter havido pressupostos e objetivos de esquerda. Trata-se, além do mais, de estratégias e táticas articuladas ao momento histórico que, embora possam ser derrogadas, não denotam intrinsecamente traição aos pressupostos de esquerda. Afinal, a diminuição da desigualdade, a ampliação do gasto social e dos direitos sociais universais, assim como da participação popular, vicejaram vigorosamente, alterando em vários sentidos os legados perversos, e convivem contraditoriamente com políticas conservadoras (forma e conteúdo).

O grande desafio é ampliar e aprofundar a democracia política e social no país, invertendo e revertendo prioridades, o que, contudo, somente será realizado por uma política de esquerda, o que implica o “fim do pacto conservador de classes”. Embora o momento eleitoral não se preste a isso, uma vez que as regras estão dadas, as jornadas de junho demonstraram que é possível “ir além” – forma e conteúdo. Para tanto, novas e outras formas de fazer política precisam ser inventadas e reformadas, cujo centro – à luz dos pressupostos de esquerda – é a participação popular, o controle social e a transparência, dado que capazes de inverter/reverter prioridades e que representam justamente os anátemas da direita!


(*) O cientista político Francisco Fonseca, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), é professor da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP).


Carta Maior

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