quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Sombra de uma nota só


Jacques Gruman

No Brasil, a esquerda fracassou tragicamente na produção de veículos de comunicação de massa com grande capilaridade social.

Watson andava intrigado. “Não consigo entender. Você conhece todos os tipos de terra do império britânico, é capaz de identificar resíduos quase moleculares de sangue em superfícies rugosas, armas nunca foram grande mistério. No entanto, desconhece fatos banais, como, por exemplo, o de que a Terra gira em torno do Sol, e não o contrário. Como é que pode uma coisa dessas ?”. O amigo Sherlock Holmes não se perturbou. “Elementar, meu caro Watson. Imagine o porão de uma casa. Se você entulhá-lo com todo tipo de objeto, sem critério, depois de um tempo o lugar vai estar um caos. Caso precise encontrar um deles, no mínimo perderá um tempo enorme. Meu cérebro é como um porão que só abasteço com informações relevantes para as minhas investigações. Localizo-as sem demora. Pouco me importa o movimento das estrelas !”.

Esse diálogo, construído por Arthur Conan Doyle para seus mais célebres personagens, é a mais perfeita defesa da hiperespecialização que conheço. O homem vocacionado para um único foco, desligado das múltiplas cores e texturas do mundo. O exato oposto do projeto de Marx, que vislumbrava, na sociedade comunista, um homem aberto a experiências, ferreiro e artista plástico, matemático e escritor, agricultor e engenheiro, músico e marceneiro. Com as necessidades materiais garantidas, não teria razão para especializar-se. A vida, tal como antecipada pelo Fourier dos falanstérios, fluiria mais leve e criativa.

Jornalista não sou, mas vou me intrometer nesta área, para a qual não recebi formação especializada. Não estou nem aí para os antecedentes sherlockianos. Sou empurrado a isso por um desconforto que me persegue faz tempo. A gota d’água foi uma pequena crônica do Ruy Castro, que divulguei semana passada. Ruy, mineiro que se encantou pelo Rio, é dos meus cronistas prediletos. No texto que citei, O sobradinho do vovô, ele registra uma situação absurda (a transformação da casa onde morou o avô da presidente Dilma Roussef em patrimônio histórico; o prédio, em Uberaba, não tem qualquer peculiaridade arquitetônica ou importância histórica) e, com fina ironia, compara o claro ato de puxassaquismo com o abandono de inúmeras construções históricas e/ou de importância cultural. Cita o caso dos magníficos prédios da UFRJ na Praia Vermelha, no Rio, que estão literalmente caindo aos pedaços. Eu completaria mencionando a Biblioteca Nacional, negligenciada entra governo sai governo, e incontáveis museus aqui no balneário onde moro. Todos tristes monumentos ao descaso com que se trata a cultura em nosso país, não importa a coloração de quem ocupa o Planalto. Pois bem, bastou uma crítica elegante ao MinC para desabarem, sobre o Ruy e, por tabela, sobre mim, as trovoadas impiedosas de petistas fanáticos, que enxergam conspirações embaixo de todas as camas. Teve gente que chegou a insinuar que o cronista deve estar senil. Claro, apontar erros da administração petista só pode ser sintoma de doença neurológica ... Esta intolerância de setores da esquerda atinge volume paroxístico quando o tema é imprensa. Vamos, pois, ao debate.

Ninguém ignora que os meios de comunicação estão fortemente oligopolizados, aqui e em grande parte do mundo. Como em qualquer negócio no capitalismo, tendem, em escala crescente, à concentração e à centralização.

Cidadãos Kane controlam a mídia tradicional e avançam rapidamente sobre os novos formatos informativos. Alguma novidade nisso ? Nenhuma. A luta de classes não acontece apenas em unidades de produção material direta. A produção do imaginário garante os valores ideológicos que permitem a continuidade do modo de produção e é espaço fértil para os embates entre a classe dominante e os dominados. No Brasil, a chamada grande imprensa sempre foi conservadora, ou seja, sempre vocalizou os interesses hegemônicos da classe dominante. Em momentos críticos, como no golpe de 64, foi abertamente golpista. Quem não se lembra, na minha geração, dos editoriais Basta ! e Fora !, do Correio da Manhã, exortando à deposição de Jango ? Aqui faço um corte, que introduz minhas diferenças com os setores que ligam, mecanicamente, conservadorismo a golpismo. Essa equação está errada. Nem todo conservador é golpista, e disso a História está repleta de exemplos. Fico apenas num. O advogado Sobral Pinto, que defendeu Prestes durante o Estado Novo, jamais foi progressista. Não obstante, isso não o tornou um golpista.

Conheço gente que fica histérica quando ouve referências ao Globo, à Folha de São Paulo, à Veja e ao Estadão. Citar notícias ou articulistas destes jornais virou crime de lesa-humanidade, imprescritível. Parece aquele trecho da peça Galileu Galilei, de Brecht, onde o astrônomo entrega uma luneta para o rei e pede que ele a use. Se o fizesse, poderia constatar a legitimidade dos argumentos galileanos. O rei hesita e larga a luneta. Não vi e não gostei. Claro que não me refiro à tropa de choque da direita, que usa generosos espaços para ofender, agredir, difamar, desqualificar. Rodrigo Constantino, Reinaldo Azevedo (que a própria ombudsman da Folha chamou de “rotweiler”) e Olavo de Carvalho não se oferecem para dialogar. Ocorre que os jornais são organismos complexos, que têm uma linha editorial desde sempre conservadora, mas com aberturas importantes para textos que fogem dessa coluna vertebral. Enquanto teve saúde, Leandro Konder escreveu regularmente n’O Globo. Aloysio Biondi, meu guru para assuntos econômicos, foi, durante anos, colaborador da Folha de São Paulo. Jânio de Freitas, Ricardo Melo, Luiz Fernando Veríssimo, Arthur Xexeo, José Miguel Wisnik, Clóvis Rossi e tantos outros não podem ser acusados de reacionários, golpistas ou mentirosos patológicos. Ignorar sua contribuição para o muitas vezes rarefeito ambiente político e cultural brasileiro não passa de sectarismo, inaceitável para as melhores tradições da esquerda. Tradições que apontam para a polêmica, o debate, o crescimento intelectual mergulhado nas diferenças.

No Brasil, a esquerda fracassou tragicamente na produção de veículos de comunicação de massa com grande capilaridade social. Não me refiro a emissoras de rádio e TV chapa branca, burocráticas, oficialóides, desinteressantes. Dessas temos aos montes, sempre com resultados pífios de audiência, sem nenhuma reverberação política ou cultural. Permanecem como guetos e daí não sairão. Enquanto perdurar essa situação, o caminho estará aberto para o domínio dos oligopólios conservadores, que certamente lutarão para garantir seus privilégios (em nome da “democracia”). Fazem o seu papel. Quem não faz é a esquerda, montada em concepções arcaicas de comunicação e, com lamentável frequência, manietada pela renúncia à educação política das massas.

Meu neto anda com medo de sangue. Dá para entender. Ele sofreu um acidente e se feriu perto do olho. Sangrou uma barbaridade. A gente vai amaciando, mostrando que aquilo não acontece a toda hora. O medo é superável com conversa e paciência. Quando se fecha a porteira ao embate das ideias, criam-se assombrações, que, no limite, congelam e infantilizam. Ler a mídia conservadora não me torna um conservador. Posso separar o joio do trigo e as divergências com o que leio fortalecem minha capacidade argumentativa.

Carta Maior

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