terça-feira, 17 de dezembro de 2013

República e Democracia: o que ainda podemos aprender com Robespierre


Não parece ser um exagero dizer que algumas das ideias de Robespierre tem mais trânsito hoje, em termos práticos, na América Latina do que na Europa. Lá como aqui, porém, a República segue sendo uma tarefa inconclusa.

O Brasil, como se sabe, é uma República. Mas o que significa exatamente isso? Até que ponto a ideia de República está impregnada como um valor na sociedade brasileira? Neste final de ano em que assistimos manifestações massivas nas ruas de várias cidades do país pedindo, entre outras coisas, uma política de melhor qualidade, talvez seja bom refletir um pouco sobre esse conceito.

Falar sobre os pressupostos conceituais da ideia de República é uma tarefa gigantesca que, obviamente, não será esgotada neste artigo. Mas dizer que ela é gigantesca não implica dizer, de modo algum, que é desnecessária e mesmo secundária. Pelo contrário. Considerando o atual estado de coisas no mundo, parece ser um trabalho urgente. O avanço de interesses privados sobre interesses públicos é uma enfermidade social que se agravou substancialmente nas últimas décadas.

A ideia mesma de “coisa pública”, definidora da palavra “república” sofreu um processo de banalização e diluição de significado. Para que mesmo é que serve uma república? Em que consiste essa invenção humana? Pois é disso que se trata: de uma criação humana que deu origem a uma forma de governo mais adequada à vida em sociedade.

Há várias maneiras possíveis de introduzir esse tema. Uma delas é deixar falar aquele que é um dos fundadores da concepção moderna de república: Robespierre, o líder dos jacobinos na Revolução Francesa, personagem tão temida como pouco conhecida entre nós. Robespierre é um dos fundadores da república moderna em uma acepção muito precisa: além de ter pensado e escrito sobre o tema, ele foi protagonista central da Revolução Francesa, que implantou a república no coração da Europa a ferro, fogo e guilhotina.

O lema do republicanismo da Revolução Francesa – Liberdade, Igualdade e Fraternidade – permanece uma tarefa inconclusa. De lá para cá, a humanidade avançou um pouco nos dois primeiros termos. O terceiro permanece ainda um sonho distante.

A escolha por Robespierre é uma oportunidade para ouvirmos a própria voz de alguém que foi um protagonista central dessa criação. As palavras que leremos a seguir foram tecidas em meio à batalha da revolução. Isso traz algumas desvantagens, com certeza, como um excesso de belicismo e ufanismo em alguns momentos. Mas traz uma grande vantagem: nos permite ver, praticamente em carne viva, as motivações, objetivos e ideais que inspiraram os homens e mulheres que foram responsáveis por um dos momentos mais extraordinários da história da humanidade.

Qual a meta a que tendemos? – pergunta Robespierre. E responde:
“Ao usufruto pacífico da liberdade e da igualdade”

Visitemos o dia 5 de fevereiro de 1794, quando Robespierre apresentou à Convenção os princípios morais constitutivos do novo governo revolucionário francês, em um discurso intitulado “Sobre os princípios de moralidade política que devem guiar a Convenção nacional na administração interna da República”.

(Texto disponível no livro“Robespierre, Virtude e Terror”, textos selecionados e comentados por Jean Ducange, com apresentação de Slavoj Zizek; publicado no Brasil pela editora Jorge Zahar).

Qual a meta a que tendemos? – pergunta Robespierre. E responde:

“O usufruto pacífico da liberdade e da igualdade; o reinado dessa justiça eterna cujas leis foram gravadas, não sobre o mármore e a pedra, mas nos corações de todos os homens, mesmo naquele do escravo que as esquece e do tirano que as nega”.

E explicita o que seria esse “reinado de justiça eterna” (cabe observar que a palavra “pátria”, no contexto em questão, é usada por Robespierre praticamente como sinônimo de “república”):

“Queremos uma ordem de coisas em que todas as paixões baixas e cruéis sejam encarceradas, todas as paixões benéficas e generosas sejam despertas pelas leis; na qual a ambição seja o desejo de merecer a glória de servir à pátria; em que as distinções nasçam da própria igualdade; o cidadão seja submisso ao magistrado, o magistrado ao povo, e o povo à justiça; na qual a pátria assegure o bem estar de cada indivíduo, e cada indivíduo usufrua com orgulho da prosperidade e da glória da pátria; em que todas as almas cresçam pela comunicação contínua dos sentimentos republicanos e pela necessidade de merecer a estima de um grande povo; em que as artes sejam a decoração da liberdade que as enobrece, o comércio, a fonte da riqueza pública, e não somente a opulência monstruosa de algumas famílias”.

E que tipo de governo poderia realizar esses prodígios? – pergunta ainda o dirigente da Revolução Francesa. E responde:

“Unicamente o governo democrático ou republicano: essas duas palavras são sinônimas, apesar do abuso da linguagem vulgar; porque a aristocracia não é mais república que a monarquia. A democracia não é um Estado no qual o povo, continuamente reunido, regula ele mesmo todas as questões públicas; menos ainda aquele no qual cem mil frações do povo, por medidas isoladas, precipitadas e contraditórias, decidiriam a sorte de toda a sociedade: tal governo não existiu jamais e só poderia existir para levar o povo ao despotismo. A democracia é um Estado no qual o povo soberano, guiado por leis que são obra sua, faz por si mesmo tudo o que pode fazer bem, e por meio de delegados tudo o que não pode fazer ele mesmo”.

Para Robespierre, o princípio fundamental do governo democrático ou popular, como chama, é a virtude. E o que ele entende por virtude aqui? Ele fala da “virtude pública que permitiu tantos prodígios na Grécia e em Roma, e que deve produzi-los bem mais assombrosamente na França republicana; essa virtude que não é outra coisa além do amor pela pátria e suas leis”. Essa noção é vinculada intimamente ao conceito de igualdade. “Como a essência da república ou da democracia é a igualdade, segue-se que o amor pela pátria contém necessariamente o amor pela igualdade”.

A virtude republicana pressupõe também outro princípio fundamental, que é definidor do próprio conceito de república: a preferência do interesse público a todos os interesses particulares. E, prossegue Robespierre, “somente na democracia, o Estado é verdadeiramente a pátria de todos os indivíduos que a compõem e pode contar com tantos defensores interessados em sua causa quantos cidadãos existam. Eis a fonte de superioridade dos povos livres sobre todos os demais”. Com a revolução republicana, a França teria sido o “primeiro povo do mundo a estabelecer a verdadeira democracia, convocando todos os homens à igualdade e à plenitude dos direitos do cidadão”.

A partir dessas considerações, Robespierre extrai algumas consequências acerca da conduta pública republicana:

A primeira regra da conduta política deve ser relacionar todas as atividades à manutenção da igualdade e ao desenvolvimento da virtude. O primeiro cuidado do legislador deve ser fortalecer o princípio do governo. Tudo o que dirija as paixões do coração humano para o interesse público deve ser adotado e incentivado. Tudo o que concentre essas paixões no eu pessoal, e desperte o interesse pelas pequenas coisas e o desprezo pelas grandes, deve ser rejeitado e reprimido.

A virtude essencial da República, acrescenta, implica uma relação íntima entre povo e governo:

“A virtude republicana pode ser considerada em relação ao povo e em relação ao governo: ela é necessária em um e no outro. Quando o governo é privado dela, resta uma instância naquela do povo; mas quando o próprio povo está corrompido, a liberdade já se perdeu. (…) Aliás, seria possível dizer, num certo sentido, que, para amar a justiça e a igualdade, o povo não precisa uma grande virtude; basta que ame a si mesmo”.

E aqui aparece uma reflexão fundamental sobre o papel da lei, dos magistrados e dos representantes do povo para a efetivação da República:

“O magistrado está obrigado a imolar seu interesse ao interesse do povo, e o orgulho do poder à igualdade. É preciso que a lei fale com autoridade, em especial aquele de quem ela é o organismo. É preciso que o governo avalie a si mesmo para ter todas as suas partes em harmonia. Se existe um corpo representativo, uma autoridade primeira constituída pelo povo, cabe a ela vigiar e reprimir sem cessar todos os funcionários públicos. Mas quem a reprimirá, senão a própria virtude (…) É preciso, portanto, que o corpo representativo comece a submeter, em seu seio, todas as paixões particulares à paixão geral do bem público”.

A partir daí, Robespierre pretende extrair o que chama de “uma grande verdade”: “o caráter do governo popular é ser confiante no povo e severo consigo mesmo”.

Ellen Wood: o capitalismo tornou-se um sistema econômico e social que retira gradativamente mais e mais esferas da vida social do controle popular e democrático.

E o caráter próprio da República é a submissão dos interesses privados ao interesse público. Aqui aparece a maior ameaça que paira sobre a ideia de República na atualidade: o avanço dos interesses privados sobre o interesse público. Permitam-me um salto temporal brusco para destacar uma tese defendida no século XX pela cientista Ellen Wood, da Universidade York, de Toronto. Em seu livro “Democracia contra Capitalismo”, Wood sustenta que o capitalismo tornou-se um sistema econômico e social que retira gradativamente mais e mais esferas da vida social do controle popular e democrático.

Consolidado como sistema hegemônico, do ponto de vista político, econômico e social, ele impõe os princípios e constrangimentos próprios da lógica do capital. Tivemos, recentemente, um exemplo dramático da aplicação dessa lógica na Grécia, onde os mercados financeiros e seus organismos derrubaram um presidente eleito e nomearam um interventor em seu lugar. E não se ouviu em nenhum meio de comunicação a expressão golpe de Estado. Tudo foi apresentado como uma intervenção no sistema político grego para acalmar os mercados e evitar a instalação do caos no país. A “virtude” dos mercados tem o sinal oposto aquele proposto por Robespierre: ela se caracteriza pela submissão do interesse público aos interesses privados.

É por isso que, para Ellen Wood, o capitalismo, no seu estágio atual, é incompatível com a democracia e leva a uma progressiva corrosão da esfera pública e dos mais generosos e ricos ideais republicanos. A história recente mostra que um dos efeitos mais nefastos dessa lógica é a destruição dos espaços públicos democráticos. É a destruição da própria ideia de democracia, como espaço do interesse público. É a impregnação da política pela lógica individualista do mercado, pela lógica do balcão de negócios.

O que aconteceu na Grécia e segue acontecendo em outros países europeus atualiza os alertas feitos por Robespierre contra as principais ameaças que pairam sobre as ideias de República e da Democracia. O avanço do setor privado sobre a coisa pública, o interesse público é crescente, especialmente na Europa. Temos aí uma ironia histórica interessante. É justamente no berço da democracia e da concepção moderna de República que florescem as ameaças aos ideais que embalaram a Revolução Francesa.

Não parece ser um exagero dizer que algumas das ideias de Robespierre tem mais trânsito hoje, em termos práticos, na América Latina do que na Europa. Lá como aqui, porém, a República segue sendo uma tarefa, um espaço social a ser construído e ampliado. Especialmente o terceiro tripé da Revolução Francesa, a Fraternidade, ainda aguarda o dia que encontrará vida real nas políticas e nas condutas das nossas repúblicas.

Sul 21


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