Ana Maria Costa:
A luta do movimento sanitário pelo direito universal à saúde recebeu duros golpes nos últimos meses.
Primeiro, o esforço realizado para que a União aumentasse seu aporte para 10% da Receita Bruta foi derrotado no Congresso, mediante forte pressão do governo federal.
O texto da regulamentação da EC 29 que foi aprovado tem o mérito do disciplinamento dos gastos nas ações de saúde, mas também decepcionou ao consagrar o problema da concentração de responsabilidades nos Estados e municípios sem o correspondente apoio financeiro federal.
Em seguida, veio o corte no Orçamento da União de R$55 bilhões e a maior redução foi para a saúde, totalizando R$5,4 bilhões. O SUS perde muito,
especialmente porque os recursos que tinha antes já eram insuficientes para um sistema de saúde para 200 milhões de habitantes. Passa de R$ 77,5 bilhões de reais aprovados, para apenas R$ 72,1 bilhões designados pelo Governo.
O corte afeta a expectativa de prioridade para a saúde prometida no discurso do Governo e no anseio da população. Entretanto, esta iniciativa agrada os credores satisfeitos com o superávit primário, mostrando as reais prioridades políticas em saciar o mercado financeiro. O quantitativo definido para o pagamento da dívida mobiliza um valor acima dos gastos previstos pela União com Educação e Saúde.
Nessa perspectiva, urge a retomada do debate sobre a dimensão do compromisso da União com o SUS. A dotação orçamentária é diretamente proporcional ao grau de prioridade de uma política pública. O SUS tem recebido muito pouco do Governo, sob qualquer parâmetro comparativo que seja usado.
A universalidade com qualidade definida pela Constituição Federal é uma hipocrisia mediante o parco financiamento agravado pelo crescimento do fluxo de recursos públicos para o setor privado, sob todas as formas e modalidades, incluindo as isenções fiscais das contribuições da classe média e a concessão de seguro privado para os funcionários públicos.
Para a efetivação do direito universal à saúde é preciso reconhecer a situação cada dia mais dramática do SUS. Outra vez reaparecem tentativas de maquiar a falta de recursos com a falaciosa argumentação da precariedade da gestão. Como resposta, ganha fôlego a incorporação no setor público dos mecanismos provenientes do gerencialismo e da “governança” muito mais próximos dos interesses e lógicas do setor privado.
Quem atua na linha de frente do SUS, bem como a população que cotidianamente sofre suas agruras nas dificuldades do acesso aos serviços, sabe que não é bem assim. O governo precisa ser informado de que nenhuma investida tecnológica na gestão do sistema compensará o impacto negativo desse corte orçamentário.
O Brasil tem sido alvo de um projeto de desenvolvimento focado no capital financeiro, no mercado e na sociedade para o consumo. Os direitos sociais nesse contexto são secundarizados. A sucessão de crises do capital financeiro internacional empurra o país que não hesita ao sacrifício das políticas e dos direitos sociais.
O projeto societário, que fomentou a Constituição Brasileira baseado na democracia e na solidariedade como base para os Direitos Sociais, naufraga nesse contexto perverso e já apresenta seqüelas de difícil reversão. A população trabalhadora já não deposita nenhuma expectativa sobre o SUS e negocia nos seus dissídios por planos privados de saúde.
A financeirização e mercadorização do setor saúde banalizam a vida e desqualificam a atenção e o cuidado. Os governantes estimulam o povo à busca dos serviços privados, dando o próprio exemplo quando recorrem aos grandes hospitais do mercado para tratamento de seus problemas de saúde. Instituiu-se o salve-se quem puder. O tecido social se rompe e acirram as desigualdades e a injustiça social.
Dezenas de parlamentares receberam apoio financeiro do mercado privado da saúde para se eleger. A correlação das forças políticas na sociedade não é favorável ao desenvolvimento pautado na justiça e nos direitos sociais, imprescindível para reverter a situação atual do SUS, um sistema de saúde de baixa qualidade, destinado aos mais pobres, ou seja, aos que não podem pagar os planos privados de saúde.
O CEBES, como entidade integrante do Movimento Sanitário, manifesta grande preocupação. A Política, resgatada como prática de preservação e defesa dos interesses públicos, coletivos, talvez seja o caminho possível para mudanças de rumos. Para isso é preciso reforçar a consciência crítica e a mobilização da sociedade para o deslocamento da correlação atual das forças políticas e acabar com a farsa da prioridade para a saúde. Por um SUS universal e com qualidade.
Ana Maria Costa, médica, doutora em Ciências da Saúde, é presidente do Cebes (Centro Brasileiro de Estudos em Saúde)
Viomundo
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