quinta-feira, 4 de maio de 2017

Os valores da nova classe trabalhadora

Marcio Pochmann


A emergência de uma nova classe trabalhadora é permeada por especificidades nem sempre bem observadas, como revela a mais recente pesquisa da Fundação Perseu Abramo sobre a periferia de São Paulo.

No passado, a formação da classe trabalhadora industrial brasileira também havia sido demarcada por singularidades, sobretudo se comparada à europeia. Em geral, a transição da servidão para a condição de operário industrial significou regressão social, acompanhada de estranhamento e polarização, com revoltas e a construção do novo sindicalismo europeu.



No Brasil saído do trabalho forçado em 1888, a mão de obra que servia à escravidão foi substituída pela imigração branca proveniente de vários países. A exclusão aberta à população trabalhadora brasileira prevaleceu até a década de 1930, quando a lei dos 2/3 obrigou as empresas instaladas no país a contratar mão de obra nacional.



Nesse sentido, os brasileiros que saíram do campo para constituir a classe urbana foram exemplos de certa mobilidade ascensional.



Diante do predomínio de micro e pequenas empresas até a instalação do Plano de Metas de Juscelino Kubitschek, a percepção e os valores dos trabalhadores industriais a respeito do conflito capital-trabalho eram contidos, sendo a elevação do custo de vida nas grandes cidades o principal tema de greves.



Sem a negociação coletiva, dominava a cultura do dissídio protagonizada pela Justiça do Trabalho. Mas com a presença crescente das grandes empresas, na segunda metade da década de 1950, o conflito capital-trabalho se instalou imediatamente, embora fosse abandonado por força do autoritarismo da ditadura militar.



Somente na segunda metade dos anos 1970, com o processo de abertura democrática, tal debate voltou a ganhar maior relevância.



No final do século 20, com a desindustrialização instalada e o avanço dos serviços, uma nova classe trabalhadora passou a manifestar percepções e valores diversos.



O salto na condição de miserabilidade desprovida de cultura prévia do emprego regular e remuneração estável prevaleceu como ascensão social para grande parcela dos empregados de serviços que encontrou ocupação no período de 2003 a 2014.



Deve-se levar em conta também que tanto o predomínio de micro e pequenas empresas no setor de serviços como as técnicas mais subjetivas de gestão tendem a subverter a lógica da relação capital-trabalho.

Não parece aceitável, assim, a mera comparação entre trabalhadores industriais e os do setor de serviços.



Estes últimos parecem possuir características específicas: defendem o empreendedorismo, mas apoiam intervenções do Estado; defendem a moralidade tradicional, mas estão atentos às liberdades individuais; percebem sua ascensão como fruto do esforço individual, mas sabem que precisam contar frequentemente com alguma rede de solidariedade e laços fraternos.



Estão dispostos a encontrar sua sociabilidade pelo consumo, sobretudo o de bens duráveis como eletrodomésticos e eletroeletrônicos.



A ascensão pelo trabalho e o sucesso pelo mérito combinam-se com os valores mais coletivistas relacionados à atuação do Estado e à ampliação da inclusão social.



Esse novo caldo exigirá renovações tanto na forma quanto no conteúdo das políticas públicas.



MARCIO POCHMANN é professor do Instituto de Economia da Unicamp e presidente da Fundação Perseu Abramo



Folha

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