Deputados ruralistas passaram, como tratores, por cima da Constituição e do Regimento Interno da Câmara, conduzindo o inquérito parlamentar de modo a silenciar vozes discordantes, e a realçar suas próprias vozes, repetindo o que sempre disseram. O único fato certo e determinado da investigação é que a Funai é um obstáculo a ser removido, no caminho que seguem para extinguir os direitos dos índios sobre as terras de ocupação tradicional.
A CPI fez o que não podia, e não fez o que devia.
Atribuiu-se poder de “indiciar” pessoas , e dirigiu ataques a procuradores da República, antropólogos, servidores públicos, indígenas, indigenistas. O objetivo é desqualificar as condutas dos que participam de processos de identificação de comunidades indígenas e quilombolas e de suas terras de ocupação tradicional, querendo equiparar tal luta à prática de crimes, e os que a lutam, a criminosos. A linguagem escolhida tem um caráter eminentemente político.
Os procuradores e procuradoras da República atuam em cumprimento a um mandato constitucional, de defender os direitos dos índios. Valem-se do inafastável saber da antropologia (manifestado na etnografia lançada nos laudos por antropólogos e antropólogas), que revela fatos e relações acolhidas pelo Direito. Contam com a extraordinária participação das comunidades indígenas e quilombolas, suas lideranças e organizações não-governamentais que lhes dão suporte, para conhecerem realidades não documentadas pelos órgãos do Estado.
A atuação dos procuradores e procuradoras da República em cada um dos casos referidos (grosseiramente deturpados na narrativa da CPI) é expressão coerente da atuação coordenada pela 6ª Câmara (Povos Indígenas e Populações Tradicionais) da PGR, e é projeção da opinião jurídica manifestada tanto pelo atual Procurador-Geral da República, quanto por seus antecessores, nos casos sob apreciação do Supremo Tribunal Federal.
A CPI dos deputados e deputadas, que formaram a maioria capaz de aprovar o Relatório (e silenciar as vozes dissonantes de seus pares), também se atribuiu o papel de instância de revisão da atuação institucional da Funai e do Incra. Desconsiderando os marcos legais existentes, que indicam como e quando processos de identificação de terras indígenas e territórios quilombolas podem ser contestados pela via administrativa pelos diretamente afetados, arvorou-se a prerrogativa de analisar, superficial e tendenciosamente, documentos e testemunhas, para fazer crer serem inválidos tais processos.
Desviou o olhar das inúmeras decisões do Supremo Tribunal Federal, que, há décadas, reconhecem aos índios os direitos sobre as terras de sua ocupação tradicional, em tal conceito se incluindo as terras das quais tenham sido esbulhados e impedidos de retornar, mas com as quais tenham mantido relações criativas de pertencimento e permanência.
Deliberadamente esqueceu que, desde janeiro de 1967, constitucionalmente terras indígenas são terras da União, e, portanto, não sujeitas a aquisição de qualquer modo, sendo nulos e inservíveis quaisquer atos de ocupação, posse ou domínio, titularizados por documentos ou não, por quem não é índio.
Não se insurgiu contra o não cumprimento, pela União, do dever de demarcar as terras indígenas, já previsto no Estatuto do Índio em 1973 (com prazo de 5 anos), e renovado no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias de 1988 (com igual prazo de 5 anos).
Embora reconheça que a Funai não tem recebido recursos financeiros e de pessoal necessários para o desempenho de sua missão, a solução que propõe para a questão indígena é previsível: subordinar a decisão técnica à vontade política do Ministério da Justiça, para que seja este a definir o que é e o que não é terra indígena.
A CPI não quer demarcar as terras indígenas ainda não demarcadas; quer revogar as demarcações reconhecidas recentes; quer que os ruralistas possam explorar as terras indígenas já demarcadas.
Aos que lutam pelo direito, resta a confiança na Justiça.
LUCIANO MARIZ MAIA
Coordenador da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF
Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais
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