Volta à pauta da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania o Projeto de Lei do Senado nº 280, de 2016. Relatado pelo senador Roberto Requião (PMDB-PR), o texto define os crimes de abuso cometidos pelas autoridades de todos os poderes constituídos no exercício de seus cargos.
Eivado de
controvérsias e permeado por debates de cunho corporativo, o projeto atrai a
oposição de membros do sistema de justiça, sobretudo Ministério Público e
juízes, que dizem enxergar no texto agressão à independência de suas ações e
tentativas de intimidação, com vistas a frear operações em curso.
Vivemos no
Brasil um momento em que o papel das instituições é colocado em xeque. No que
se refere à atuação dos órgãos do sistema de justiça, não são poucos e
irrelevantes os riscos que envolvem a chancela irrestrita e acrítica aos atos
praticados em desacordo com as leis e normas gerais que regulam a vida em
sociedade, dentro do regime democrático. Das buscas domiciliares realizadas
pela polícia militar independentemente de mandado, às conduções coercitivas
feitas por ordem judicial sem intimação prévia, há uma conivência que põe em
risco o próprio Estado de Direito.
Em paralelo, a
fórmula que transforma abuso de poder e a violação de direitos e prerrogativas
dos cidadãos em ação positiva tem na mídia seu principal transmissor de
convencimento de que os fins justificam os meios e que, em nome da proteção à
sociedade, a ação ilegal ou arbitrária pode e deve ser corroborada ou, no
mínimo, ignorada, não debatida e não enfrentada.
As complexas
relações de poder e a crescente criminalização da política vêm, nos últimos
tempos, se aliando à percepção da sociedade sobre o homem comum que pratica
algum crime, visto como inimigo social, e faz com que a atuação dos agentes
públicos do sistema de justiça, incluindo policiais, membros do Ministério
Público e juízes seja vista como heróica, com atuação acima das leis em
benefício de um suposto “bem maior”. Nesse diapasão, prisões preventivas que se
arrastam no tempo são aplaudidas, conduções coercitivas sem notificação prévia
comemoradas, vazamentos seletivos de informações de investigados em inquéritos
viram regra. Tudo filmado como espetáculo.
De outro lado,
o projeto também é alvo de críticas de alguns atores e setores progressistas do
meio jurídico, esses legitimamente preocupados com o mais-que-comum mau uso da
lei, justamente para cercear uma atuação voltada à defesa e garantia de direitos
dos cidadãos. Há, ainda, juristas que, entendendo o direito penal em sua
acepção minimalista, não concordam com criação de novos tipos penais e
apontam-lhes os riscos de desvios.
São várias
questões que merecem reflexão. O debate propiciado por essa pauta é uma ótima
oportunidade para aprofundar o tema da lógica da construção das leis pelo
parlamento.
É certo que a
política legislativa das três últimas décadas contribuiu significativamente
para o incremento dos índices de encarceramento no Brasil, produzindo leis
penais e processuais penais em larga escala, aumentando penas e dificultando os
processos de ressocialização de presos, formulando um diagnóstico normativo que
coloca o país na total adesão ao punitivismo, uma tendência político-criminal
que dificulta a consolidação da democracia nos países ocidentais, sobretudo nos
países da América Latina que superaram os períodos de ditaduras civis e
militares.
A perspectiva,
pois, de elaboração de leis penais que se pretendam coerentes, mesmo que
possuam determinadas lacunas ou estejam sujeitas a contradições, pressupõe a
adoção de um modelo de pensamento que não condiz com punitivismo e que busque
responder de forma adequada aos problemas postos.
O direito, sem
deixar de ser usado para tal, é muito mais que um discurso ideológico de
legitimação das relações de poder. Pode ser adotado – e esse é um desafio que
temos que enfrentar – para a construção da paz, ao invés da destruição do
inimigo.
Nessa seara, o
manejo das competências e do controle do poder das autoridades faz parte da
busca por uma sociedade mais isonômica no que tange ao exercício de defesa da
ordem jurídica, da democracia e dos interesses sociais. Desse modo, uma
legislação que se proponha ao monitoramento e contenção do abuso no exercício
do cargo público, se pensada e elaborada com os cuidados de verificar as
hipóteses em que o agente detentor do poder o emprega abusivamente, em
contradição às normas que lhe autorizaram o uso do comando justificante de sua
própria autoridade, merece um debate digno, que esteja acima dos interesses
momentâneos e conjunturais.
O projeto de
lei de abuso de autoridade que está sob apreciação do Senado Federal, na forma
do substitutivo apresentado pelo senador Roberto Requião formata condutas
praticadas por agentes públicos que implicam em danos concretos, afetando bens
jurídicos tangíveis, como a liberdade e a integridade física e psicológica.
São, neste sentido, bens jurídicos tradicionais do direito penal mínimo, que
não possuem o condão de produzir aumento de repressão e são compatíveis com a
criminologia crítica. Não se trata, portanto, de crença na pena como solução de
conflito nem apego à norma criminalizadora. Cuida-se, antes, de garantir a não
violação de direitos humanos fundamentais na relação entre o indivíduo e a
autoridade estatal, inscrevendo uma sistemática assentada em regras de conduta
inafastáveis de uma prática civilizatória.
O texto do PLS
280/2016 não possui qualquer risco de que juízes e membros do Ministério
Público que ajam dentro das normas de processo penal venham a ser afetados, o
que torna os questionamentos do juiz Sérgio Moro – feito em audiência no Senado
Federal e na Câmara dos Deputados – e de vários membros do Ministério Público,
a título de exemplo, um grande paradoxo. Questionam uma liberdade para
interpretar a norma, que obviamente não é negada pelo projeto. Aparentam, de
fato, reivindicar um salvo conduto para cometer excessos.
Sempre sujeita
a aperfeiçoamentos, uma lei de abuso de autoridade que resulte do substitutivo
ora apresentado é consequente, e pode auxiliar o enfrentamento dos desvios
exercidos por autoridades de todos os poderes, de modo a evitar, minimizar ou
expor as violentas, danosas e dolorosas práticas resultantes de despotismos,
infelizmente corriqueiros. Sobremaneira porque seu conteúdo se coloca além do
campo repressivo, chamando à aplicação das garantias dos direitos dos
indivíduos frente ao Estado, regida por uma lógica em que os desmandos e
arbítrios deixem de ser a praxe e passem a ser observados pelo sistema como
desrespeito a postulados positivados. Assume, desse modo, a natureza não de lei
penal, mas de uma lei humanista.
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Tânia Maria S.
de Oliveira é Mestre e Pós-graduada em Direito. Pesquisadora do GCcrim/Unb.
Assessora jurídica no Senado.
Jornal GGN
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