Marco Aurélio Nogueira - Março 2017
A crise está aí, em reprodução. Pode ganhar ainda mais fôlego, caso venha a ser impulsionada pelo prolongamento da recessão econômica, pelas dificuldades operacionais e pela impopularidade do governo Temer. Os efeitos cruzados desses fatores e da Operação Lava Jato condimentam o processo, especialmente quando se consideram o desgaste já sofrido pela “classe política” e a corrosão dos partidos.
É um quadro grave. A sociedade e o Estado não falam a mesma língua, a oferta política é de má qualidade, as frustrações estão a se acumular.
Seria, por isso, razoável que aqueles que prezam a democracia e atuam com uma ética compatível, sejam de centro ou de esquerda, liberais ou socialistas, buscassem uma articulação que os lançasse como atores estratégicos, que chamam a responsabilidade e procuram construir saídas e alternativas para o País.
Surpreende que isso não seja feito. E pior, que não se localizem sinais claros de que algo esteja em gestação nos ambientes democráticos. Surpreende porque, se nada for feito, os principais derrotados serão precisamente os democratas e, na pegada deles, o conjunto da população.
No universo político, a atitude básica é de defesa. Cada um procura salvar a própria pele, sem se preocupar em fazer avançar a elaboração programática e a comunicação com os cidadãos, que ficam assim em extrema ansiedade, excitados e confusos diante das mensagens emitidas pelo sistema político, pelas propostas governamentais e pelas “narrativas” oposicionistas, que tudo recusam e nada propõem.
Mesmo os que apresentam as acusações mais duras contra o governo estão a se autodefender: não querem perder mais do que já perderam, desejam manter os motores girando para se recuperar mais à frente.
Temos um pouco de tudo. Há os que rejeitam a discussão propositiva, imputam ao governo os mais horripilantes males do mundo e vocalizam candidaturas e postulações eleitorais extemporâneas, que prometem, em tom paternalista, “trazer de volta a alegria deste País”. E há os que se fecham como ostras e fogem para a frente, sacando do bolso propostas de reforma política desprovidas de seriedade. Uns e outros só ajudam a lançar mais névoa e confusão num horizonte já bastante tenebroso e deteriorado.
Enquanto o governo se arrasta com uma agenda de reformas sem explicá-las à sociedade, fazendo concessões a todo tipo de chantagem parlamentar e não mostrando apetite para abrir uma clareira de lucidez para a gestão e a articulação política, as oposições se dedicam a desgastar o governo, paralisar o País e desancar a Lava Jato, menosprezando-a no que contém de avanço republicano e abertura de espaços de renovação.
Culpam-se uns aos outros pelas desgraças nacionais, sem que ninguém tenha a coragem de bater no peito e confessar seus erros e equívocos, seus delírios de poder, suas “teorias” fantasiosas, sua responsabilidade pelo caos que se instalou no País ao longo dos últimos anos. Repetem-se promessas vagas, palavras de efeito, jogos de cena, o frenesi demagógico.
O vazio de lideranças é a cereja do bolo. O sistema político, partidário e eleitoral está próximo da exaustão, precisa ser atualizado. Mas ele não explica o fundamental. Não são as instituições que atrapalham, mas os procedimentos, a cultura com que se faz política. Reforme-se o sistema e nada acontecerá se seus operadores também não forem reformados, não mudarem o modo de pensar e agir.
É onde se localiza a tragédia maior da nacionalidade, que aparece com nitidez assombrosa na péssima qualidade dos representantes, na sua ignorância técnica, na ausência de estofo filosófico mínimo, na falta de educação e boa escolaridade, na rusticidade com que tratam a língua e a linguagem, no gosto pela bravata, pela improvisação, pela arenga retórica com que agitam e embrutecem as multidões.
Nossos políticos são toscos e o processo em curso é complexo e sofisticado demais para eles. Não há estadistas entre nós, nem sequer simulacros deles. E não os há porque também não existem correntes de pensamento bem estruturadas, capazes de fomentar programas de governo e projetos de sociedade com os quais erguer a coletividade, fazê-la se sentir como um todo consciente de suas possibilidades e limitações.
O que há são personalidades ambiciosas, histriônicas algumas, pretensiosas e arrogantes outras, sem vocação estatal, sem ousadia. Vão sendo plasmadas pela mesma máquina que nos últimos anos vem enquadrando os talentos, modelando a “classe política”, extraindo-lhe o nervo e os músculos e convertendo-a numa mola que nem consegue produzir “ordem”.
Enquanto isso, o País se contorce com suas dificuldades, com sua incapacidade de administrar as pressões sobre os gastos públicos e corrigir a regressividade tributária, que faz os pobres pagarem mais impostos que os ricos, com sua impotência perante a corrupção.
Não se pode passar impunemente pela gigantesca onda que está a fazer com que as sociedades se tornem mais fragmentadas e individualizadas, que reorganiza o trabalho e a produção econômica, desorganiza fronteiras e territórios, retira parte da pujança dos Estados nacionais. Quem não considerar isso com atenção ficará deslocado. Não é só o Brasil, mas o mundo inteiro que sofre as dores deste parto. Há escassez de estadistas para onde quer que olhemos.
O momento requer esforços adicionais. Exige que se ponham em curso reflexões heterodoxas, que nos desapeguemos de roupas e móveis gastos pelo tempo, se construam novas plataformas de atuação e novas culturas políticas. Que fique no passado o que pertence ao passado e os vivos enterrem seus mortos. Hora perfeita para os democratas. Que eles apareçam, se reúnam, parem de disputar as migalhas do poder e de insistir em rixas mesquinhas entre petistas e antipetistas. E cumpram sua missão.
Há resistências e obstáculos de todo tipo, o diálogo não flui, faltam sensatez e serenidade. Mas é preciso tentar, sem vetos e com o concurso de todos.
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Marco Aurélio Nogueira é professor titular de Teoria Política da Unesp.
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Gramsci Brasil
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