Pesquisa da Fundação Perseu Abramo revela como o imaginário da periferia explode as bolhas e não cabe no ideário liberal nem no esquerdista
O MBL foi o primeiro a comemorar: “Pesquisa do PT mostra que periferia é de direita”, seguido por páginas, sites e comentaristas das mídias conservadoras que usaram a pesquisa da Fundação Perseu Abramo, “Percepções e valores políticos nas periferias de São Paulo”, para reforçar “o que já sabiam”: que a derrota do PT na prefeitura de São Paulo e o impeachment seriam a expressão de uma “periferia liberal” que emergiu nos últimos anos e que só o PT ainda não tinha se dado conta dessas mudanças.
Numa primeira leitura, a hipótese inicial da pesquisa parece mesmo “um tiro no pé” ao partir do princípio que com os avanços econômicos, “as camadas populares passaram a se identificar mais com a ideologia liberal que sobrevaloriza o mercado.” Estaria explicada a vitória de João Dória Júnior em São Paulo, o prefeito gestor, o empreendedor, o “não-político”. Só que não!
O que torna a pesquisa interessante, em um momento de “geléia geral” da nação e incertezas de todo lado, é justamente o que as respostas têm de aparentemente paradoxais: nem esquerdista e nem liberal! O pragmatismo popular brasileiro não cabe nas polarizações e está em disputa.
Uma primeira constatação da pesquisa é justamente essa: que as “categorias analíticas” utilizadas pela militância política ou pelo meio acadêmico não fazem sentido para os entrevistados. As respostas desarmam certezas e servem para se repensar narrativas, estratégias, crenças e explodir as bolhas e o senso comum dos politizados.
Estado é coisa para os muito pobre!
Uma primeira constatação desestabilizadora. A pesquisa mostra que o morador das periferias “vê o Estado como inimigo”. Dito de forma mais explícita: “O Estado não cumpre o seu papel. Só demanda dos cidadãos (impostos) e não devolve em serviços de qualidade. É ineficaz!”. Ou quando “funciona” é como a máquina de morte na guerra contra os pobres nas periferias, poderíamos completar.
Mas a pesquisa avança e o que vemos não é uma demanda de Estado mínimo, mas de Estado eficaz.
Ou seja, a periferia quer serviços gratuitos e bons! Mas o Estado só funciona nas pracinhas dos bairros ricos ou defendendo o patrimônio dos poucos. O Estado só funciona ou para os muito ricos ou serve, na ausência de outra alternativa, para os muito pobres! Quem pode migra, até para se distinguir, para os serviços privados, alguns de qualidade duvidosa. Ou seja, quem pode se diferencia dos ainda mais pobres, que só podem recorrer ao Estado.
Consumo sem consumismo e o poder jovem
E mais surpresas vão aparecendo: “O consumo é uma dimensão importante da vida do trabalhador, mas não há consumismo”. Ou seja, a pesquisa mostra que as pessoas se endividam para pagar um carro onde não tem transporte público, para comprar eletrodomésticos, para pagar TV a cabo, tudo que traz qualidade de vida, essa é a fala principalmente dos mais velhos.
Para os mais jovens o consumo é valor de distinção. É o consumo que singulariza e faz com que muitos se vejam como cidadãos, como anunciava Néstor García Canclini, faz tempo. Fora que a periferia inventa moda, roupa, cabelos da hora, música, linguagens, estéticas. Uma produção e “consumo” cultural muito além do discurso redutor do consumismo.
Aqui temos um dado importante, a potência dos jovens, os novos formadores de opinião na família e nas comunidades, com o aumento da renda e do poder de compra, com a inserção na educação formal, inserção nas rede de informação e tecnologias. A opinião dos jovens, que têm níveis de escolaridade mais elevados do que os dos seus pais, se tornou assim decisiva nas disputas de valores, políticas, eleitorais, disputando até mesmo com a televisão.
A periferia não quer ter patrão
Outra questão decisiva, que as esquerdas tem dificuldade em elaborar, é o desejo de autonomia e liberdade, expressos na super valorização do empreendedorismo, seja os que se identificam com os empresários, ou com a figura do autônomo. O empreendedorismo popular é fortíssimo: os que abrem oficina mecânica, cabeleireiro, borracheiro, padaria, se tornam camelôs, fazem marmita, tudo na informalidade.
Vamos encontrar, com diferenças de contexto, o discurso do empreendedorismo na classe média cult, que fala das startups, de inovação social, cultural, coletivos, laboratórios.
A periferia criativa se junta com esses batalhadores da cultura e o precariado urbano e das pequenas cidades do interior, e chegam desarrumando tanto o ideário liberal do Estado mínimo quanto as formas tradicionais das esquerdas clássicas de pensar o mundo somente pela luta de classes, o embate entre patrões e empregados.
Aqui temos não só o embrião do “self made man”, mas todo um novo cooperativismo, coletivismo, “brodagem”. Demanda de infra-estrutura pública de novo tipo. A precarização é tanto perda de direitos quanto oportunidades para os “overqualificados” desempregados, os batalhadores e os “correria”.
Trabalho vivo e o declínio da figura do “trabalhador” clássico
O que diz a pesquisa: “como muitos entrevistados vivem experiências precárias de trabalho e remuneração, o contrato com carteira assinada ainda é valorizado em função da segurança que traz: rendimentos fixos, direitos trabalhistas e uma série de benefícios e direitos considerados importantíssimos para todos”.
Entretanto “ser empregado”, o trabalho “morto”, não combina com ter singularidade e ambição, com esse trabalho vivo do empreendedor. Não atiça o desejo.
Ou seja, o que estamos vendo, nesse amálgama de valores, é o declínio, como modelo subjetivo, da figura do “trabalhador” do chão de fábrica, uma esquerda fordista que precisa se reinventar no momento em que a possibilidade de aceder aos direitos não passa apenas pelo pleno emprego, ou por empregados sindicalizados ou trabalhadores formais.
Achar que para ter direitos é preciso estar submetido a uma relação de patrão e empregado não responde a esse impulso de autonomia. Obviamente que o precariado passa por novos regimes de “escravidão”, mas se existe um desafio é criar as novas condições para as autonomias. Esse seria de fato um desafio: um partido dos trabalhadores urbanos, dos autonomistas, do precarido, com um imaginário reinventado, com novas lutas e direitos.
A meritocracia, que aparece supervalorizada pelos entrevistados, é o reconhecimento da singularidade, da individualidade, do esforço pessoal. Mais um paradoxo: os entrevistados “não negam a importância de políticas públicas e garantia de acesso a oportunidades, mas rejeitam aquelas que parecem ‘duvidar’ das capacidades individuais, como as cotas”. Mais uma vez, o Estado pode ser fator de melhorias, mas 90% respondem que foi o esforço próprio que melhorou sua vida. A percepção do comum, do público, como base das vitórias individuais é relativizada:
“Políticas feitas pelo PT, Bolsa Família, em especial Prouni e Fies, são valorizadas e consideradas necessárias. No entanto, são vistas como insuficientes frente ao déficit na educação; e falhas existentes, pois podem beneficiar quem não precisa – precisa de mais fiscalização para conter ‘injustiças’ (principalmente no caso do Bolsa Família).
A pesquisa não diz isso, mas temos a impressão de que diante desse Estado insuficiente para todos, os beneficiários do Bolsa Família, das cotas raciais e sociais que melhoraram de vida são vistos como “privilegiados” que “não fizeram nada” para merecer os benefícios. O que se reflete no profundo ressentimento expresso contra os mais pobres nas redes sociais e discursos de desmerecimento que circulam. Se eu não tenho benefícios, melhor que ninguém tenha!
O voto religioso não é necessariamente conservador
Outra questão importante é a constatação de que “o voto religioso não é necessariamente conservador”. A igreja neopentecostal tem influência nas periferias, e a “teologia da prosperidade” está sintonizada com os valores do empreendedorismo, da super valorização da família. Mas, como na política, a periferia migra, muda de igreja numa alta rotatividade, mudam de pauta, mudam de pastores, mesclam religiões. Ou seja, o que importa é certa “religião de resultados” e principalmente o acolhimento e pertencimento a uma comunidade de proteção.
Apesar da influência das igrejas e seus dogmas conservadores, o discurso não se reflete necessariamente nas práticas. Ou seja, a proibição do aborto, a homofobia, não se concretizam necessariamente no cotidiano das relações. A rede de solidariedade entre vizinhos, família e agregados pode superar o preconceito. É contra o aborto, mas ajuda a vizinha a fazer; diz que homofobia é pecado, mas aceita o gay da comunidade.
Uma síntese diabólica
A pesquisa traz outras questões instigantes, preocupantes, provocadoras desse “liberalismo” popular brasileiro, que ao final emerge como uma colcha de retalhos e práticas de uma periferia em disputa. Um discurso que pode soar liberal, mas cujas práticas vão muito além, e incluem a comunidade, a solidariedade, o acolhimento, a empatia como valores do cotidiano ao lado desse individualismo meritocrático. A pesquisa não avança muito sobre machismo, feminismo, questões de comportamento.
Como lidar com tantos signos e valores opostos? Como sair dos dualismos e polarizações produzidos socialmente e pelas mídias, sair dos maniqueísmos ideológicos? Chama atenção uma juventude e multidões urbanas, que na sua aparente “confusão” não suportam mais ter “patrões” (Estado, partidos, mídia) sejam de que tipo for.
Sabemos que as percepções e os imaginários são construídos e que passamos recentemente por um processo midiático de criminalização da política, discursos anti-política midiatizados e canalizados em um sentimento anti-petista e anti-Estado. A política como algo sujo, sinônimo de corrupção, onde não de faz distinção entre os partidos, e isso se reflete na pesquisa.
Ao mesmo tempo esse pragmatismo popular brasileiro tem efeitos reversos e imprevisíveis. Basta ver como a figura do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva está muito além das políticas sociais do seu governo, seus erros e acertos e dessa própria criminalização. Ele encarna perfeitamente a figura do batalhador brasileiro que “chegou lá”. Os referencias de figuras públicas mais citados na pesquisa foram Lula, Sílvio Santos e Dória. Eis uma síntese diabólica do inconsciente popular brasileiro.
Revista Cult
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