Raimundo Santos - Março 2017
Ainda hoje nos surpreende ver como Caio Prado analisa as conjunturas políticas dos governos Juscelino Kubitschek e João Goulart, tomando por fato básico o desencontro entre o mundo político e a dinâmica da sociedade daqueles tempos. A narrativa caiopradiana desse breve período tem como ponto de partida o movimento de opinião pública pluralista que, desde a posse de JK no começo de 1956, havia despertado energias desenvolvimentistas e afirmado a ideia de reforma na esfera pública. Os seus protagonistas são os partidos políticos requeridos a fortalecer a vida democrática e suas instituições representativas.
As reflexões do historiador indicam as possibilidades das transformações do país, mas também mostram as debilidades da estrutura partidária, exibindo os impasses da política brasileira da qual dependia o seu encaminhamento. Analista de conjuntura com vistas postas no agir efetivo, ele chega a dirigir a todos os atores político-partidários da época um alerta sobre os perigos da situação de “desequilíbrio catastrófico” que se formara em 1961 com a renúncia de Jânio Quadros. Caio Prado chama particularmente a atenção para a “falsa radicalização” das esquerdas, que pensavam em saltos revolucionários naquele momento em que a instabilidade política crescia e paralisava a tentativa de realização das medidas reformistas então postas em discussão na cena pública.
Na sua análise do começo de 1956, “O sentido da anistia ampla”, Caio Prado Jr. valorizava a eleição de Juscelino Kubitschek por ela ter tido origem em um forte movimento de opinião pública (“sem dúvida uma das mais vigorosas afirmações da vontade popular registradas em nossa história”), opinião pública que primeiro pesara na aceitação do resultado da eleição e depois impulsionara a mobilização pela posse do Presidente vitorioso nas urnas. Abria-se, dizia ele, um quadro com “perspectivas promissoras” para o processo político, havendo um “sopro de renovação” no governo, dado pelo fato de JK o ter constituído num novo tempo em que “as grandes transformações ocorridas desde a última guerra começam a amadurecer e se fazerem nitidamente sentir” (Revista Brasiliense n. 4, mar./abr. 1956).
Mesmo sendo um governo formado em meio a acordos partidários (“sem conteúdo ideológico e cimentados quase unicamente por interesses pessoais”), o seu desafio consistia em dar passagem às forças renovadoras, antes dispersas, que se haviam reunido na eleição sob a forma “de amplos setores da opinião pública” mobilizados pela ideia de reforma. Estava aberto o caminho para que aquele despertar político se desenvolvesse em profundidade (Idem).
No seu segundo artigo, “A política brasileira”, publicado no final de 1956, comparando as poucas medidas “positivas” com as muitas “negativas” adotadas por Juscelino no transcurso do ano, Caio Prado Jr. centrava sua análise no plano propriamente da política, perscrutando as possibilidades reais das mudanças e realçando o papel dos partidos.
Para ele, o desempenho do governo e da oposição (“O que se pode observar é unicamente uma oposição que ataca, e um governo atacado que se defende”) mostrava-se um terreno pantanoso por onde o grande programa de “industrialização e desenvolvimento econômico” (sic) que emergira na eleição ia se esvaindo em razão da “improvisação, superficialidade e inconsequência da atual administração”; tal programa ajustava-se ao novo padrão de crescimento capitalista mediante “medíocres dependências” aos trustes internacionais, em detrimento da mobilização da massa da população para o trabalho produtivo e eficiente (Revista Brasiliense n. 8, nov. /dez. 1956).
Caio Prado fazia este diagnóstico daqueles anos 1950: “O certo é que as instituições políticas brasileiras se acham desconjuntadas”. E explicava: “A sua base essencial, que são ou deveriam ser os partidos políticos, não tem consistência alguma”. Os partidos precisavam, antes de tudo, começar a existir, afirmar “a personalidade independente dos indivíduos que os compõem e eventualmente os representam”.
Estas definições compunham a argumentação do autor: “Cabe aos partidos transpor essas questões (que se propõem no desenvolvimento da vida econômica e social) para o plano político, dar-lhes uma elaboração teórica adequada e submetê-las assim ao debate público e à opinião do país. É somente assim que se irá formando um pensamento coletivo e uma cultura popular capazes de orientar a vida política do país, colocando-a a salvo de agitações estéreis e do caos que de outro modo estarão sempre iminentes” (Idem).
Caio Prado Jr. se voltava para a “questão geral” da democratização da vida política nacional, dizendo que a democracia era, “antes e acima de tudo, o conjunto de práticas através das quais se torn(a) possível ao povo em geral adquirir consciência de seus problemas e necessidades, formar opinião sobre a maneira mais conveniente de resolver aqueles problemas e dar satisfação às necessidades; e finalmente fazer com que essa opinião seja levada em conta na administração pública do país. A liberdade e os direitos políticos assegurados na Constituição brasileira e nas leis não têm ou não devem ter outros objetivos que aqueles. E se explicam e justificam na medida exclusiva em que contribuem para isso. De nada servem, portanto, se deles se excluir o conteúdo concreto que vem a ser o fato de servirem de caminho e instrumento de participação popular na direção e administração do país” (Idem).
O autor falava de uma democracia partidária e procedimental — “essa verdadeira democracia” — como a mais importante condição para o “funcionamento regular” das instituições políticas e da administração pública: “Não é possível governar e administrar o país, no mundo de hoje e naquele que se projeta para futuro, sem ser na base de fortes correntes de opinião pública nas quais os governos busquem [...] inspiração para seus atos, como agentes políticos e administrativos capazes de realizar de maneira consequente e fecunda as tarefas que incumbem aos órgãos do poder” (Idem).
Nesse texto, Caio Prado Jr. retornava ao antigo tema das suas reflexões sobre a vida nacional — a indiferença política —, aludindo ao ceticismo da “grande maioria da população” ante as respostas que ela esperava da administração pública sem ver sinais de solução satisfatória aos seus problemas:
O povo não está nem mesmo em condições de saber ao certo o que deve ou pode esperar. Falta-lhe para isso suficiente coesão ideológica; e em matéria de pensamento e ação política não vai além do imediato. A direção que têm tomado os sufrágios populares em tantas instâncias mostra isso claramente. Resulta daí que nem o governo e os partidos que o sustentam podem contar com um apoio popular suficiente para levarem a cabo uma tarefa administrativa de largo fôlego; nem a oposição, por motivos semelhantes, conta com autoridade moral para servir de freio aos erros do governo. E não tem outro recurso, para justificar sua existência, que se agitar freneticamente e sem outra perspectiva que arrastar o país nessa agitação estéril (Idem).
Com a persistência das velhas práticas da política brasileira — de “hostilidades pessoais ou de grupo”, “de rivalidades de campanário” e dos debates de questões políticas e administrativas “no plano de suas preferências doutrinárias e convicções pessoais” —, Caio Prado divisava um quadro político sombrio, de crescente confusão, “para maior alegria e proveito daqueles [...] cujos interesses se alimentam nos vazios formados em todo problema deixado em aberto”. E isto à espera de “dias ainda piores de completa desordem e desorganização da vida administrativa do país” (Idem).
Na terceira dessas análises caiopradianas, “Panorama da política brasileira”, publicada no final de 1961, já em andamento o governo Jango, a avaliação do momento era de grande preocupação. O foco era a circunstância de “desequilíbrio catastrófico” que se estava criando a partir de uma situação de “vácuo” e “marasmo”.
Caio Prado chega a interpelar as “forças políticas dominantes sobre que recai a responsabilidade da direção do país” pela omissão na hora “em que mais se fazia sentir a necessidade da ação, de uma tomada decisiva de posições, de perspectivas claras e de realizações de grande envergadura” (Revista Brasiliense n. 38, nov./dez. 1961). Dizia que a política brasileira se encontrava num “ponto morto”, na “completa esterilidade dos seus atuais quadros políticos”, vivendo-se uma situação que se deteriorava sem uma estrutura político-partidária capaz de dar passagem a formas de “atividade política fecundada (sic) e de perspectivas” (Idem).
Assim ele via a raiz dessas “incongruências” e “inconsequências” que “estranhamente” se perpetuavam: “Realmente, a política brasileira ainda se acha fundamentalmente disposta dentro de um velho esquema inteiramente superado pelos fatos, e que herdado de um passado que já se vai tornando remoto, vem anacronicamente se arrastando sem renovação. Esse esquema vem dos tempos em que a figura de Getúlio Vargas ocupava o centro de nossa vida política. Essencialmente, os nossos partidos e agrupamentos políticos ainda formam nos dois campos originários das forças que no passado respectivamente apoiaram Getúlio Vargas e lhe fizeram oposição” (Idem).
Este velho “dispositivo político” projetava a “ilusão” de que “as contingências e vicissitudes da política brasileira são reflexo da correlação de forças econômicas e sociais no plano das lutas político-partidárias”, anulando num “jogo estéril” (sic) “uma larga parcela de esforços honestos e dignos de melhor sorte” (Idem).
A eleição de Jânio também reproduzira o “obsoleto esquema faccioso que é o PSD-PTB de um lado, a UDN do outro”. Caio Prado observava que não seria nada estranho que, nesse quadro, a demagogia “populista e esquerdizante” de Jânio ganhasse conteúdo popular apenas para, em sua aventura, levar a uma situação de “paralisia” da política brasileira. Essa “cena política oficial” envolvia os debates em torno das questões nacionais numa “nebulosa estratosfera de vagos princípios abstratos”, sem “a menor possibilidade ou probabilidade de se traduzirem em realizações concretas” (Idem).
Os partidos políticos deveriam aposentar “definitiva e inapelavelmente o decrépito dispositivo político-partidário” e se reestruturarem “em função de programas de ação efetiva no rumo da solução dos grandes problemas nacionais, e na base da organização popular, isto é, tomando por fulcro os movimentos populares onde encontrarão o impulso e cooperação necessários, e somente aí o encontrarão, para aquela ação” (Idem).
No quarto e último artigo publicado no final de 1962, “Perspectivas da política progressista e popular”, Caio Prado Jr. tornava a insistir na questão da inexistência de um “sentido mais profundo” na “vida política partidária oficial brasileira” e revelava seu pessimismo ante o fato de que as “aspirações e reivindicações e a problemática econômico-social brasileira” estavam apenas sendo instrumentalizadas (Revista Brasiliense n. 44, nov./dez. 1962).
Ao invés de ver aquele tempo do governo Jango como um terreno firme, cuja “disposição de forças” permitisse definir táticas adequadas a um objetivo de mais alento, Caio Prado Jr. exigia que as esquerdas buscassem compreender a deficiência da vida política (“revelada na inadequação dos quadros partidários à nossa realidade e problemática econômico-social”).
Dizia que a formulação dos “grandes problemas” se havia tornado “clara, pelo menos em suas linhas gerais e fundamentais”, e que se tinham popularizado alguns pontos dos “temas nacionais”, mas “os quadros partidários brasileiros não se dispõem em função das soluções a serem dadas a essas questões. Ou o fazem de maneira ambígua e inconsequente. Eles se dividem e agrupam não na base de programas destinados a enfrentar as tarefas propostas pelo desenvolvimento autônomo e nacional da economia brasileira e pela reforma agrária — que são os pontos em que se centralizam as questões pendentes na conjuntura atual — e sim com vistas a insignificantes interesses de grupos partidários, quando não de simples ambições e vaidades pessoais” (Idem).
A responsabilidade maior por esse quadro cabia às “forças democráticas e progressistas” que haviam perdido a iniciativa perante os “fatos”, ou seja, ante os demais atores, tanto junto àqueles a quem deveriam conduzir quanto em relação aos adversários (e aliados) que, pela lógica da política vigente, terminavam por lhes subalternizar a ação. Dizia Caio Prado Jr. que, ao não se concentrar no labor de operar a “polarização de forças segundo os problemas nacionais”, o protagonista “democrático e progressista” deixava que aqueles problemas nacionais se disfarçassem e esvaíssem na heterogeneidade dos dispositivos partidários “que se defrontam na arena política, bem como na vagueza de formulações inconsistentes e inconsequentes” (Idem).
O analista avaliava o tempo transcorrido do governo Jango como uma conjuntura na qual não se conseguira converter a instabilidade que se formara após a renúncia de Jânio em uma fase de “grandes transformações capazes de encaminhar a solução das contradições pendentes” (Idem).
Dizia ele: “O país atravessou neste ano e pouco uma das mais agitadas fases de sua política, uma sucessão de crises que vem abalando profundamente o país e chegando mesmo a colocá-lo na iminência de lutas armadas. Na base dessa agitação e crise, o que em última instância as alimenta foi sem dúvida, como ainda é o caso, a intranquilidade decorrente do aguçamento das contradições profundas que dilaceram o organismo econômico e social da Nação e se manifestam entre outros neste efeito e sintoma tão palpável que é a crescente aceleração do processo inflacionário” (Idem).
A tese do desencontro entre “os fatos concretos da política partidária brasileira e as contradições profundas da nossa realidade econômica e social” baliza todas as avaliações políticas caiopradianas. A recusa das esquerdas em levar em conta essa matriz analítica vai se manifestar na sua visão enganosa de que se podia avançar o processo daqueles anos do governo Jango no sentido de uma mobilização radical. Para Caio Prado Jr., esta “falsa radicalização” era “sem dúvida um grande óbice, talvez no momento o mais sério, oposto a um fecundo desenvolvimento da política brasileira no sentido da solução das grandes contradições econômicas e sociais que afetam o organismo da Nação” (Idem).
Ele era incisivo em dizer que, sem a “ânsia desmedida” pelo poder naquela situação dramática do final de 1962, as “forças democráticas e progressistas” estariam em melhores condições de formular uma práxis (destinada a “corrigir as defeituosas vias em que se processa a política brasileira”) em favor de uma “clara definição e polarização de forças”. Era por esse caminho que se abriam perspectivas para “a solução das contradições econômicas e sociais pendentes”, interditando-se a velha lógica da política brasileira que terminava sempre por “canalizar e dissipar o dinamismo latente nessas contradições para estéreis lutas de facções e choques de interesses personalistas” (Idem).
“Um primeiro e imediato passo”, dizia o militante do PCB naqueles anos tumultuados, seria a concretização “sistemática” (sic) de um programa “a fim de tirá-lo das vagas generalizações e dispersão de princípios que ainda hoje o caracterizam”, além da noção “precisa de como propor essas questões concretamente e de modo a lhes dar soluções expressas em normas práticas e desde logo aplicáveis” (Idem).
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Raimundo Santos é professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
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[1] Este texto retoma passagens do livro Caio Prado Junior na cultura política brasileira (Mauad/Faperj, Rio de Janeiro, 2001), no qual comentamos quatro artigos que Caio Prado escreveu para a Revista Brasiliense entre os anos 1956-62.
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Gramsci e o Brasil
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