Ninguém mais duvida de que a crise brasileira envolve
aspectos políticos, econômicos, éticos e sociais de enorme complexidade, os
quais atrapalham a real identificação de boa parte de suas origens,
consequências e possíveis desdobramentos e superações. Vivemos uma conjuntura
embaralhada de tal maneira que no corre-corre dos acontecimentos muitas vezes
tomamos decisões e miramos alvos de menor relevância para o enfrentamento da
crise. Somos tragados por fatos e factoides produzidos no Palácio do
Planalto, no Congresso Nacional, no Supremo Tribunal Federal, na Operação
Lava Jato e na mídia e redes sociais. Temos gasto energia supérflua e
corremos o risco de chegar a lugar nenhum, reproduzir o que está aí e não
mudar a situação atual.
As manifestações contra o governo (interino, provisório,
transitório) de Michel Temer, que ocorrem desde o início de maio em várias
partes do país, expressam motivações e objetivos diferentes. Os setores
influenciados pelo PT e PCdoB, derrotados no Congresso Nacional e afastados
temporariamente do governo devido ao processo de impeachment da presidente
Dilma Rousseff, estão nas ruas para denunciar o “golpe” e tentar reverter o
julgamento da presidente no Senado.
No caso de nova derrota institucional, devem assumir de
forma rotineira o papel de oposição ao governo federal e se preparar para as
eleições municipais deste ano e, principalmente, para as eleições gerais de
2018. Estão nesse bloco as organizações identificadas com o lulismo, como PT,
PCdoB, Frente Brasil Popular, CUT, CMP, MST e UNE.
Boa parte da cúpula desses partidos e movimentos
considera difícil o retorno da presidente Dilma Rousseff ao governo, já que
depende de forte guinada de posição no Senado e, mais do que isso, da
construção de novo bloco de apoio parlamentar e da reconquista da confiança
junto ao empresariado e demais atores políticos e econômicos nas instituições
do Estado e na sociedade civil. Mesmo que o desempenho do governo Temer seja
muito ruim, as forças que atuaram no afastamento de Dilma, inclusive a grande
imprensa empresarial-burguesa, tendem a defender o governo Temer e confirmar
a queda definitiva de Dilma.
Engrossam as manifestações contra o governo Temer amplos
setores da sociedade críticos ao governo Dilma e ao PT, especialmente a
juventude, estudantes, intelectuais e funcionários públicos, mas que no
processo do impeachment foram sensibilizados pela denúncia do “golpe” e pela
defesa genérica da democracia – do chamado Estado Democrático de Direito, que
nada mais é do que a base jurídica do sistema fundamentado no liberalismo
político e na economia capitalista. Estão nas ruas porque não querem
retrocessos nos direitos, conquistas sociais e nas liberdades democráticas.
Não querem Temer, mas também não se identificam plenamente com o governo da
presidente afastada, com o PT e com o lulismo. Apenas não querem o
conservadorismo e a direita no governo federal.
Luta de massas
Embarcaram também nessa jornada do “Fora Temer” as forças
de esquerda que não estão empenhadas no “Fica Dilma” ou “Volta Dilma” em
julgamento pelo Senado, como saída para o “Fora Temer”, mas reforçam essa
luta pela democracia na expectativa de que o movimento de massas possa
crescer contra a direita, inclusive após a eventual cassação ou renúncia de
Dilma Rousseff, de maneira a fortalecer a luta geral da classe trabalhadora.
Estão nesse grupo principalmente os integrantes e correntes mais combativas
do PSOL, PCB, outras organizações socialistas, movimentos populares
distanciados do lulismo e militantes independentes de esquerda. O PSTU e seus
aliados têm posição própria contra todas as lideranças dos partidos da ordem
dominante, inclusive contra o governo Temer.
Parte dessas forças defende a realização de eleições
gerais ainda em 2016, na tentativa de mudar a composição do Congresso
Nacional e de ter alguma liderança nova e promissora na Presidência da
República. Outra parte aposta no avanço da luta de massas até a convocação de
uma Assembleia Nacional Constituinte, que possa mudar as leis, o sistema
político-partidário e promover uma renovação das lideranças políticas.
Todas essas forças têm noção clara de que estão na luta
contra a direita, sabem que o governo Temer representa os setores
conservadores e a reaglutinação do bloco afinado com o neoliberalismo, com as
elites e as oligarquias do capital nacional e estrangeiro. Por isso mesmo
precisam ter muita clareza sobre o que fazer além do “Fora Temer”, qual o
projeto a ser defendido pelas oposições de esquerda agora e no futuro.
Eleições de 2018
O PT não esconde que por trás da denúncia do golpe e da
campanha do “Fora Temer” tem uma preocupação estratégica relativa ao futuro
do partido nas eleições gerais de 2018. Embalado no marketing da luta por
“democracia” e “resgate da legitimidade do governo”, a campanha eleitoral de
2018 pode significar, para os petistas, a recuperação do espaço político
perdido no fracasso do governo Dilma, nos processos de corrupção da Operação
Lava Jato e nos casos de envolvimento espúrio da maior liderança do partido
com as empreiteiras OAS, Odebrecht e Camargo Corrêa.
A denúncia do “golpe” cumpre várias funções. A primeira
delas procura atribuir ao processo de impeachment uma conotação de ação
ilegítima e antidemocrática da oposição de direita, de tal maneira que o foco
seja colocado nos adversários e não no próprio governo Dilma Rousseff. A
segunda tenta tirar do governo Dilma e do PT a necessidade de autocrítica
sobre os erros da gestão e sobre os equívocos políticos e éticos praticados
nos 13 anos de lulismo. A denúncia de “golpe” serve para jogar uma cortina de
fumaça no fracasso do PT no governo e desconversar sobre a autocrítica que o
partido deve aos trabalhadores e ao povo brasileiro.
Uma questão que precisa ser colocada agora é a seguinte:
o povo brasileiro acreditou no projeto do PT nas eleições de 2002, 2006, 2010
e 2014, mas por que esse projeto naufragou e deixou o país no caos econômico,
com milhões de desempregados, com educação e saúde em frangalhos, com programas
sociais estagnados e toda a máquina pública arrebentada? Por que a direita
aliada do PT ganhou força nos governos do PT e acabou por abater o próprio
PT, causando graves danos para o povo brasileiro?
Se o PT não fizer ampla e profunda autocrítica de seus
erros e equívocos, a luta de resistência ao “golpe”, pela democracia, contra
o governo da direita, tende a não acrescentar o necessário aprendizado
político e apenas favorecer o retorno do lulismo em 2018 nos mesmos moldes do
período 2003 a 2016, que deixou o país na atual situação. A classe
trabalhadora tem o direito de saber qual é a política de alianças e o projeto
dos que lutam contra o governo Temer, se seguem o mesmo esquema de
conciliação de classes que levou Lula e Dilma ao governo federal ou se
defendem agora proposta diferente. Afinal, o lulismo continua apostando na
conciliação com o capital e no “presidencialismo de coalizão” com os partidos
tradicionais da direita?
Projeto revolucionário
É essencial que as forças de esquerda que participam das
manifestações do “Fora Temer”, “Fora Cunha”, “Fora Jucá”, “Fora Renan”,
tenham projeto político mais avançado de transformação social do que aquele
que foi aplicado pelo lulismo e que foi fragorosamente derrotado pela
direita. Vale lembrar que o programa adotado pelo atual governo Temer, que
enfrenta resistência na sociedade, nada mais é do que o programa que o
segundo governo Dilma tentou impor em 2015 e foi amplamente rechaçado pelo
povo.
Está claro que não basta derrubar ou cassar políticos marcados
pela corrupção e/ou pela incompetência e/ou pela falta de compromisso com o
povo brasileiro. Também não basta focar a crítica e o ataque a um ou outro
partido político, pois, no geral, todos têm reproduzido os mesmos vícios.
Tentar fazer uma reforma política na conjuntura é correr o risco de entregar
ouro para o bandido, na medida em que os políticos e os partidos que dominam
o Congresso Nacional, os governos estaduais, as assembleias legislativas, as
prefeituras e as câmaras municipais estão interessados apenas em manter seus
privilégios e seus esquemas de poder. Qualquer mudança real, profunda e
verdadeira precisaria primeiramente implodir o atual sistema
político-partidário-eleitoral, precisaria contar com a força do povo, a
rebelião popular, a organização e a luta da classe trabalhadora de baixo para
cima.
Não basta mudar governantes dos mais variados partidos se
todos estão aprisionados ao modelo econômico dominante. A luta da esquerda,
dos trabalhadores, da juventude e do povo brasileiro deve estar centrada além
do “Fora Temer”, “Fora Dilma”, “Fora Lula”, “Fora Cunha”, “Fora Renan”, “Fora
X”, “Fora Y”.
A esquerda precisa ter projeto político para a
transformação econômica e social do Brasil com objetivos inegociáveis, entre
os quais a efetiva redução das desigualdades, o acesso imediato aos direitos
fundamentais, o fortalecimento do poder popular, a concreta melhoria de todos
os serviços públicos, o aprofundamento real da democracia e a abolição de
todas as formas de exploração dos trabalhadores.
O compromisso maior da esquerda deve ser com a construção
de uma sociedade justa, igualitária, livre, democrática e soberana. Os
militantes da esquerda socialista que se empenham nessa luta precisam ter a
ousadia de propor ações verdadeiramente revolucionárias. Precisamos nos
livrar dos projetos do passado, que prometem muito e nada fazem. Não devemos
ser massa de manobra de mais do mesmo. É preciso mudar de verdade, ter claro
que a mudança que o povo brasileiro reclama se chama revolução. Esse é o projeto,
nada menos do que isso.
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