terça-feira, 14 de junho de 2016

Brasil em guerra contra jovens negros


Brasil pratica Genocídio, afirma relatório da CPI de assassinato de jovens, no Senado

Durante a audiência, os debatedores colocaram em destaque a possível conivência dos operadores do Direito ao lidarem com a questão.
 

Cristiane Sampaio

O relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Assassinato de Jovens foi aprovado na tarde desta quarta-feira (8) no Senado. Apresentado pelo senador Lindbergh Farias (PT-RJ), relator do tema, o documento recomenda três principais ações a serem tomadas como prioridade. Entre elas, obteve destaque a discussão sobre o fim dos chamados “autos de resistência” (expressão utilizada por agentes de segurança que alegam defesa ao matar um suspeito).


Para os membros da CPI, esse dispositivo incentiva a culpabilização das vítimas, favorecendo o ataque aos direitos humanos. “Embora nessas situações a autoria do homicídio seja conhecida, os estudiosos são unânimes em afirmar que nos autos de resistência há uma negligência institucional na apuração da materialidade do crime. A ausência dos laudos periciais para indicar a causa da morte e o relato dos PMs como únicas provas testemunhais são as manifestações mais palpáveis dessa conclusão”, aponta o relatório.

Durante a audiência, os debatedores colocaram em destaque a possível conivência dos operadores do Direito ao lidarem com a questão. O procurador de Justiça Antônio Duarte, membro do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), destacou que, em setembro do ano passado, a entidade editou uma resolução sobre o assunto. “É uma orientação pra que os membros do Ministério Público (MP), em sua atuação, tenham uma postura mais questionadora diante dessa alegativa de autos de resistência em caso de morte decorrente de intervenção policial”, explicou.

A Comissão ressaltou que, apesar dos tímidos esforços institucionais, o problema continua sendo uma das causas da impunidade. No Rio de Janeiro, por exemplo, mais de 90% dos casos de assassinatos cometidos por policiais são arquivados sem investigação.

“O que mais nos mata é que parece que nossos filhos não eram nada. O Estado não dá respostas em termos de justiça. (…) Quando meu filho morreu, ele não teve voz, e nós não podemos deixar esse silêncio se perpetuar”, desabafou a integrante do Movimento Mães de Maio, Vera Lúcia Andrade, durante a audiência.

Prioridades

O documento apresentado nesta quarta-feira reúne diversas informações sobre as causas da violência letal da juventude no Brasil. Resultado de mais de um ano de trabalho, ele aponta para o futuro, sugerindo ações que contribuam para a prevenção do problema e para o combate ao genocídio de jovens negros.

Outros dois pontos foram elencados como prioridade para linhas de ação: a criação de um Plano Nacional de Redução de Homicídios de Jovens e uma maior transparência de dados sobre segurança pública e violência.

“A situação do Brasil é considerada pela ONU como um estado de endemia, por isso queremos a aprovação desses três projetos que estão em pauta no Congresso Nacional porque são bandeiras que nos ajudariam a combater o problema”, explicou a presidenta da CPI, senadora Lídice Mata (PSB-BA).

Os dados colhidos pela Comissão mostram que, no Brasil, a problemática dos homicídios tem faixa etária, cor e gênero direcionados: dos 56 mil assassinatos registrados por ano, 53% são de jovens com idade entre 12 e 29 anos, dos quais 77% são negros e 93% do sexo masculino.

“A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado. Isso equivale à queda de um jato cheio de jovens negros a cada dois dias. Genocídio da população negra é a expressão que melhor se enquadra à realidade atual do Brasil”, destacou Lindbergh.

O relatório produzido pela Comissão, com cerca de 150 laudas e mais de mil páginas de anexos, recomenda, entre outras coisas, a desmilitarização da polícia, sugerindo uma reestruturação do sistema de segurança pública. “O policial deve ser visto como um verdadeiro cidadão, sujeito de direitos e deveres, e não como um soldado preparado para matar e morrer”, afirmou Lindbergh, que é autor da Proposta de Emenda Constitucional (PEC 512013) sobre o tema.

Para estudar esse e os demais aspectos que atravessam a problemática dos homicídios, a CPI realizou ao todo 29 audiências, nas quais foram ouvidos cerca de 200 especialistas de diversas áreas, como direitos humanos e segurança pública, além de familiares de vítimas.

Segundo informaram os parlamentares, com a aprovação oficializada nesta quarta-feira (8), o relatório será apresentado à presidência do Senado para que seja dada prioridade às pautas destacadas pela CPI. “Nós vamos também fazer uma maratona de visitas a diversos órgãos a partir da proxima semana, para apresentar o resultados dos trabalhos da CPI e pedir que seja feito um esforço interinstitucional para tirar isso da invisibilidade porque, ao final desta audiência, pelo menos oito jovens negros terão sido mortos no Brasil”, disse Lindbergh.

Invisibilidade histórica

Diversos militantes destacaram ainda a questão da violência contra a juventude negra como desdobramento de um processo histórico que levou à marginalização dessa parcela da população. Para o pesquisador Edson Lopes Cardoso, da Universidade Metodista de São Paulo, isso ecoa nos diversos compartimentos da vida social.

“Existe a questão do escravo, mas existe a cor do escravo como sendo considerado um problema. […] Se você vai numa escola, por exemplo, percebe que as crianças sabem que as folhas das árvores são verdes por causa da clorofila, mas elas não sabem que a pigmentação da pele se explica pela melanina. Esse tipo de coisa abre margem pra uma série de problemas porque não há uma educação que discuta as diferentes representações do ser humano ensinando que todas são legítimas”, aponta.

Na visão dele, a formação dos agentes de segurança deveria contemplar esse tipo de discussão. “Nesse contexto de discriminação, a segurança pública emerge como uma expressão maior da rejeição racial, por isso a seleção dos policiais deveria dar espaço para essas discussões já desde o concurso público, porque os agentes precisam deixar de hierarquizar as pessoas pela aparência”, defende.

Crise de narrativa

Outro aspecto levantado nos debates foi a questão da narrativa midiática no tocante à representação da população negra. A democratização dos meios de comunicação foi apontada como uma necessidade para oportunizar a pluralidade de vozes.

“Nós temos uma mídia marcada pela concentração e que não expressa a diversidade do povo brasileiro, muito menos as angústicas da população negra. Muitos desses jovens poderiam ser artistas, poderiam estar se expressando, mas essa possibilidade é interditada pelo fato de não termos uma mídia popular, participativa e democrática”, afirmou o coordenador nacional do Levante Popular da Juventude, Thiago Ferreira.

Edição: Simone Freire

Negrobelchior.carta capital


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