quinta-feira, 9 de junho de 2016
Para apagar o sorriso dos usurpadores
Como ultrapassar a reação destituinte do #ForaTemer para construção de uma força constituinte? Debate entre Safatle, Chauí, André Singer e Paulo Arantes aponta algumas trilhas
Por Ivana Bentes
Combinar a luta insurgente dos movimentos sociais e culturais nas ruas com a institucionalização e a defesa da legalidade. O que parecia dissociado em Junho de 2013 tornou-se imprescindível para reverter o golpe em curso no Brasil de 2016.
A mística revolucionária das ruas e dos puros não basta. O ódio à institucionalidade, o ódio à política foi capitalizado pela direita e foi a base do golpe constitucional, do golpe jurídico-midiático instalado com o governo interino de Michel Temer. A casta política mobilizou as ruas, mimetizando 2013, e soube utilizar os mecanismos institucionais, mesmo que de forma esquizofrênica e conflituosa, para hackear os três poderes, criar instabilidade e golpear a democracia.
O que há para entender não é fácil e nem é óbvio e demanda velocidade de reação, articulação e mobilização para além da “zona de conforto” em que estávamos instalados. Junho de 2013 foi um basta, foi uma alerta, foi uma insurreição das ruas (mas o que fazemos depois que saímos das ruas?) que naquele momento iluminou o Brasil décadas para frente.
Nem a direita e nem as esquerdas souberam responder a Junho, e a sua potência “destituinte”. Não respondemos as suas pautas, mobilidade urbana, horror à corrupção institucionalizada, novos movimentos e linguagens, a emergência dos “desorganizados” sem partidos, sem teorias, com seus corpos insurgentes nas ruas. Essa ruidocracia barulhenta antecipou a crise de representação e a indignação com “tudo o que está ai”, e a direita capitalizou parte dessa revolta.
Nesse momento, temos novos impasses: como ultrapassar a reação negativa e destituinte do #ForaTemer para construção de uma força constituinte? Uma Frente política das esquerdas envolvendo não apenas os partidos, mas os movimentos e novos atores políticos? Uma Frente pela Democracia, quando a bandeira da legalidade está com a esquerda? Nem a mística das ruas e nem a mera institucionalidade resolvem. Pois é preciso converter essa Frente da Democracia, essa Frente da Diversidade, em mística e em votos.
Duas Frentes importantes já emergiram, a Frente Brasil Popular, pós-petista, e a Frente Povo Sem Medo, gestada pelos movimentos de moradia; e outras frentes como a da cultura, a dos midiativistas, a dos servidores públicos, a das universidades vêm se juntar a estas, constituindo uma ruidocracia potente que se articula, mobiliza e emerge de forma capilarizada em todo o país.
A força constituinte de algo novo não eclodirá entretanto sem a força destituinte do que ai está, por isso é preciso rever, ruminar, mastigar todos os erros das esquerdas e em especial os erros do PT. Autocritica ou autorreflexão, expiação, pouco importa a palavra. Todos concordam que a esquerda lulista e o PT têm que responder de forma convincente sobre o enfrentamento da corrupção.
Como cita Vladimir Safatle em recente debate na USP sobre “Os Caminhos da Esquerda Diante do Golpe”, de 30/05/2016: “Meu problema não são os meus inimigos, mas meus aliados”, dizia Getúlio Vargas.
Safatle critica duramente Lula e o PT, na sua fala, por ter realizado da forma mais acabada o modelo da conciliação e do conchavo entre forças oponentes que vem desde a Nova República, trazendo todos os conflitos para dentro do Estado: “Conflito entre os economistas ortodoxos e os nacionais-desenvolvimentistas, conflito entre o agronegócio e os ambientalistas; conflito entre as Forças Armadas e os defensores dos Direitos Humanos.” Uma “esperteza política” que segundo Safatle deixou campos de conflitos intocados.
“Lula tentava conciliar os oponentes e consolar o perdedor dos conflitos”, diz Safatle, filiando Lula, sem chamar atenção para as rupturas presentes no projeto lulista, numa linha de continuísmo (da Nova República ao PT) que não suporta ou não tem força para enfrentar as contradições e responde de forma conciliadora e esquizofrênica, mediando forças inconciliáveis.
Marilena Chauí, no mesmo debate, corrige Safatle lembrando a incrível invenção social que foi o PT com todas as suas contradições e lembrando que a “negociação” é o modelo sindical, e foi na mesa de negociações, que Lula se formou. Não se trata pois de uma negociação “pelo alto”, um conchavo entre elites, mas no rés do chão, negociar com o possível.
Fato é que, tentando conciliar tanto, Lula-Macunaíma, herói de nossa gente, tornou-se vitima do princípio antropofágico: fomos comidos e no momento estamos sendo afrontados e devorados pelas forças arcaicas, pela blindagem midiática, pelos interesses inerciais da casta políco-econômica.
Derrotados, temporariamente, estamos nos unindo e saindo da autofagia, a antropofagia dos fracos! Uma Frente da Democracia pode vir? Muitos atores, conflitos, senões. Marilena Chauí vai ao ponto que nos interessa. Não podemos apostar em qualquer unidade, mas numa união, sem identidade única, sem apagar as diferenças, sem uma liderança das esquerdas e seus apêndices. Sem princípio de diferenciação não tem união.
As esquerdas são autofágicas, fragmentadas, partidas, têm no máximo pautas comuns, “não por estupidez ou por má vontade”, como sublinha Marilena, mas porque têm histórias e trajetórias distintas. Os centralismos falharam, articular diferenças, fazer um rizoma, capilarizado e potente é o maior desafio das forças disruptivas.
Quando falamos de ruidocracia, da democracia dos diferentes e dos muitos, não se trata de uma noção abstrata, mas algo muito concreto. Estamos fadados a estarmos juntos, reprimindo nosso impulso fratricida.
O autonomismo não basta, o petismo não basta, o lulismo sofreu um esgotamento, os purismos não servem, tem que ter pau, pedra, movimentos, partidos, insentões, fazedores, conceituadores, pitaqueiros, decepcionados, maníacos e depressivos nesse enfrentamento.
Marilena Chauí sublinha que “o PT foi o primeiro partido de esquerda que não foi construído por uma vanguarda intelectual, estudantil, militar, socialista ou comunista. Foi a classe operária que construiu o PT, por ela própria, com correntes, alas, facções. Um partido de massas com todos os problemas que advêm dai. “ Se não tivermos um partido ou uma frente de massas, com toda sua diversidade, como enfrentar a casta conservadora unida?
Não são poucos os quadros, agentes, movimentos que reagem, mas não são poucos também os que estão prostrados e melancólicos, vendo o golpe contra a democracia se instalar sem reagir ou ir para as ruas. Não são poucos os que se perguntam, mas o que Dilma Rousseff irá fazer se voltar ao poder? Se o impeachment não passar, como Dilma poderá remediar em dois anos e meio, a toque de caixa e em regime de urgência, o que não foi feito desde seu primeiro mandato? Como poderia instalar um regime de radicalização da democracia com vitórias públicas? Com esse Congresso e esses poderes?
E como propor nesse momento novas eleições presidenciais, antes que o processo do impeachment se resolva, sem rifar Dilma, sem passar por cima do #VoltaDilma que ainda mobiliza alguns e faz de Dilma a golpeada número um?
As esquerdas estão nas ruas e não param de formular e agir para apagar o sorriso dos usurpadores do poder, num extraordinário laboratório social. Mas, por que a direita não está na rua? “Eles estão quietos nos sofás porque ganharam”, diz Paulo Arantes, outro participante desse debate histórico na USP, em uma análise realista, mas apocalíptica que fala em “desintegração social” e um elo de continuidade muito mais forte do que supomos entre 2016 e o golpe de 1964.
Para Paulo Arantes estamos há 52 anos vivendo a ditadura e a pós ditadura, estamos ainda no mesmo campo de influência de 1964. O golpe estava apenas adormecido e acordou! A Constituição de 1988 avançou, mas ficaram “cláusulas pétreas”, inegociáveis pelas elites: as reformas de base, a democratização e regulação da mídia, a condenação dos torturadores de 64, o sistema de financiamento das campanhas eleitorais, a criminalização dos movimentos sociais com a Lei Antiterrorista, etc E nesse momento em que os confrontos se tornaram inevitáveis, expostos, rumamos para um cenário “Dogville”, filme de Lars Von Trier, citado por Arantes, sem saída, terminal, em que todos do campo das esquerdas sairiam derrotados.
Mesmo não partilhando do derrotismo apocalíptico de Paulo Arantes, pois as cartas estão na mesa e o jogo sendo jogado, quando Arantes fala de “liquefação social e institucional” como parte do cenário internacional e do capitalismo global, desde os anos 90, quando fala de uma nova Guerra Fria, justifica seu pessimismo criticando o horizonte apequenado da esquerda nacional-desenvolvimentista (leia-se dilmista) que apostou nesse neodesenvolvimentismo fordista em que estamos. “Uma esquerda que tem como modelo a China”, ironiza Arantes, e concordamos, “perdeu a capacidade de sonhar.”
É que as mãos sujas de petróleo deveriam investir esses ganhos e lucros da Petrobrás em educação, cultura, energia limpa, mas isso sequer foi vocalizado depois da eleição de Dilma em 2014. Nada fez supor, mesmo para nós que estávamos no governo Dilma, apostando na “esquizofrenia” compensatória do modelo de coalizão, uma ruptura com o sistema eleitoral e seu financiamento, um sistema corroído e datado que teria que ser desinvestido para a emergência do novo e de novas forças.
Esse modelo neodesenvolvimentista também atacou os povos originários, ribeirinhos, o meio ambiente, os trabalhadores rurais, etc. Atacou a diversidade cultural, a diversidade econômica, o que nos colocava em um lugar difícil: lutar contra o Estado de dentro do Estado, comer pelas bordas o prato fervente. E foi o que fizemos na Cultura, pois é possível lutar de qualquer lugar.
Mas, enquanto o Ministério da Cultura tentava blindar a cultura de base comunitária, indígena, quilombola, os terreiros de candomblé, a cultura da periferia, os novos movimentos urbanos, os midialivristas, as mulheres e novos sujeitos políticos que emergiram nas últimas décadas, o modelo neodesenvolvimentista da economia e sua mentalidade fordista desrespeitava toda essa diversidade em diferentes campos em nome de uma modernidade conservadorora, que a Cultura já tinha superado em termos conceituais e práticos desde a gestão de Gilberto Gil/Juca Ferreira.
Nesses últimos anos, a Cultura emergiu como um outro paradigma possível, de respeito à diversidade, outro modelo de desenvolvimento. O movimento das 27 ocupações dos equipamentos públicos do MinC em todo o Brasil contra o golpe aponta as condições para uma mobilidade subjetiva, renovando a política. A Cultura está se associando à luta da moradia, à juventude rural, aos secundaristas, à luta nas cidades, ao novo urbanismo, à constituição de “commons” e bens comuns. A Cultura tem apostado no municipalismo, na capilaridade, na inovação cidadã, na emergência das redes, na formação livre, na riqueza da pobreza que vem das periferias. Uma reversão por baixo, mas que precisa de novas institucionalidades para se potencializar.
O governo Dilma teve Kátia Abreu na Agricultura e Juca Ferreira na Cultura! Dois cultivos, dois plantios, duas apostas, duas forças oponentes e contraditórias inconciliáveis. O governo Dilma teve Joaquim Levy como Ministro da Fazenda e Paul Singer, Secretário Nacional da Economia Solidária. Dois modelos conflitantes, a economia clássica, do endividamento e do consumo ilimitado, estimulado artificialmente, predador, e o modelo emergente das finanças solidárias, do bom viver, do comércio justo. Os exemplos e contradições internas são muitos, embaralhando o horizonte dos possíveis.
Mas nesse momento não basta apontar os erros, como os “profetas do dia seguinte”. Uma proposição de Vladimir Safatle nos alerta “Como impedir a melancolia, diante do gosto amargo do sorriso do usurpador?” Pois “é mais fácil comandar um povo melancolizado que internaliza o luto e as mudanças como algo irrealizável.”
“Não está tudo bem”, como diz a Frente dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Serviço Público, que se juntaram pela primeira vez em ações de resistência de dentro da máquina do Estado com ações diretas que já ajudaram a derrubar pelo menos dois Ministros do “machistério” de Michel Temer.
Em dois meses, mais de 400 atos foram organizados dentro e fora do Brasil contra o golpe. A narrativa contra o golpe se espalhou em ondas, memes, vídeos, análises, ações, da Mídia Ninja, dos Jornalistas Livres, pelo jornalismo independente do Outras Palavras, Revista Fórum, blogueiros e blogueiras, campanhas, hashtags, canetas desmanipuladoras, vomitaços, etc.
Cresce a rejeição aos efeitos devastadores do golpe para os direitos e para a democracia, seu impacto na vida cotidiana de cada um de nós e para os mais pobres, crescem as mobilizações nas ruas, nas ocupações, nas universidades, nos sindicatos, nas redes sociais, frente das mulheres, LGBT, dos artistas, da cultura, das periferias, emergem diferentes fronts. Temos um país insurgente lutando contra um Estado de exceção instalado.
Também não podemos esquecer que as lutas são globais e se articulam contra a ascensão em muitos países do conservadorismo e do fascismo. O que nos resta fazer? Permanecer no front e no presente urgente, atentos aos micromovimentos e aos abalos sísmicos.
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