Uma cidade como São Paulo apresenta média de 400 estreias,
apenas no circuito comercial. Isso sem falar nas mostras, retrospectivas e
festivais. É uma cidade cinéfila e, por isso, ao fatiarmos o filé mignon nosso
de cada fim de ano, verificaremos saldo em geral positivo. Mesmo que a
enxurrada de filmes ruins, medíocres e repetitivos se imponha no dia a dia e
nos faça crer que o cinema acabou, há sempre um bom número de lançamentos a
serem saudados. São as exceções.
Por exemplo, como não ficar contente ao constatar que
passaram pelas telas filmes notáveis e tão diferentes como Era uma Vez na
Anatólia, do turco Nuri Bilge Ceylan, Um Toque de Pecado, do chinês Jia
Zhang-ke, O Som ao Redor, do brasileiro Kléber Mendonça Filho, Tabu, do
português Miguel Gomes, e A Grande Beleza, do italiano Paolo Sorrentino? Foram
os cinco melhores lançamentos do ano, em minha opinião.
Mas a alegria de constatar a excelência dos eleitos não é
menor que a de ver a batelada de outros belos filmes deixados de fora da lista,
como os excepcionais Depois de Maio, de Olivier Assayas, O Estranho Caso de
Angélica, de Manoel de Oliveira, e tantos outros. Ao fazermos nossas listas,
constatamos que o ano não foi tão mau assim. E que sobrevivemos da inevitável
enxurrada de lixo hollywoodiano graças a algumas compensações singelas, como o
fato de o grande Marco Bellocchio ter dois filmes lançados no Brasil no mesmo
ano – A Bela que Dorme e Irmãs Jamais.
Para o cinema brasileiro, 2013 foi também um ano digno de
nota. Mais de cem lançamentos e um público que bateu na casa dos 25 milhões.
Não é o ideal, mas não deixa de ser um marco positivo. Claro que a grande
maioria desses ingressos foram vendidos para as inevitáveis comédias da Globo
Filmes e sua absoluta falta de imaginação. Ou seja, mais do mesmo, sejam quais
forem os comentários benévolos que esses filmes recebam de “críticos”
integrados. Crítica não é press release. Ou não deveria ser.
Mas o ano das comédias teve também, para compensar, o
lançamento do excepcional O Som ao Redor, de Kléber Mendonça Filho, um dos mais
importantes filmes brasileiros dos últimos anos. Quando, digamos, daqui a dez anos,
as comédias forem apenas um marco estatístico, O Som ao Redor estará sendo
ainda discutido como uma cristalização de impasses e contradições políticas e
estéticas dos anos 2000 no País. Não é pouco, e o filme já vem fazendo esse
percurso pelo que resta da inteligência do País.
O Som ao Redor não foi o único. O circuito viu ainda outros
excelentes lançamentos nacionais, como as ficções Hoje, de Tata Amaral, e
Tatuagem, de Hilton Lacerda, além de documentários marcantes como O Dia que
Durou 21 Anos, de Camilo Tavares, e Mataram meu Irmão, de Cristiano Burlan,
entre outros. Hoje entrou em cartaz São
Silvestre, de Lina Chamie, um dos grandes filmes do ano. Uma São Paulo
sensorial, “vista” pelo olhar de corredores da sua principal prova de rua. Como
sabe qualquer paulistano, a São Silvestre, corrida no último dia do ano, faz
parte da memória afetiva da cidade, embora tenha sido desfigurada e seu horário
mudado pelos interesses da TV.
Tudo isso no plano dos lançamentos. Mas não seria justo
encerrar um balanço de 2013 sem evocar algumas
retrospectivas que pudemos ver nas telas do circuito alternativo do
cidade. Autores como Jacques Rivette, Eric Rohmer e Maurice Pialat ganharam
mostras completas no CCBB. O Cinesesc promoveu uma estupenda revisão dos filmes
de Billy Wilder, com cópias impecáveis. E a Mostra de São Paulo, em parceria
com o MIS, ao recolocar na tela grande os filmes de Stanley Kubrick relembrou a
todos porque ele foi um imenso diretor. No quadro do Festival Italiano, o MIS
fez também uma bela retrospectiva dos irmãos Taviani, em maravilhosas cópias 35
mm.
Todas as contas feitas, o ano valeu.
Meus melhores:
Era uma Vez na Anatolia, de Nuri Bilge Ceylan (Turquia)
Através de uma investigação criminal, cuja trama se revela
pouco a pouco, temos a imersão na realidade rural da Turquia, num filme cheio
de inspiração, paixão e mistério.
Um Toque de Pecado, de Jia Zhang-ke (China)
A China contemporânea, aderindo a toque de caixa ao
capitalismo selvagem, é radiografada através de quatro casos sangrentos da crônica
policial. O talento de Jia Zhang-ke, como um dos mais importantes, senão o mais
importante cineasta contemporâneo, se reafirma de filme a filme.
O Som ao Redor, de Kléber Mendonça Filho (Brasil)
A estreia de Kléber Mendonça Filho na ficção de longa-metragem
é, possivelmente, o filme brasileiro mais relevante dos últimos anos. Com
linguagem inovadora, porém não hermética, Kleber opera uma espécie corte
transversal da sociedade de classes no Brasil. A reciclagem do capital rural na
especulação imobiliária é traçada de forma brilhante.
Tabu, de Miguel Gomes (Portugal)
Em estilo altamente pessoal, Miguel Gomes revisita, sob a
forma de mito, a desastrosa presença colonial portuguesa na África. É um
retrato de Portugal de ontem e de hoje, pintado de forma monocromática, e com a
devida melancolia.
A Grande Beleza, de Paolo Sorrentino (Itália)
Visão apocalíptica de Paolo Sorrentino da Itália
contemporânea. Toni Servillo interpreta um cronista social com vagas aspirações
literárias que se move por uma Roma tanto suntuosa quanto decadente. Há quem
veja em A Grande Beleza uma revisão de A Doce Vida, de Fellini, de 1960.
E mais:
Depois de Maio, de Olivier Assayas
O Estranho Caso de Angélica, de Manoel de Oliveira
Almas Solitárias, de Alexei Fedorchencko
Amor, de Michael Haneke
A Jaula de Ouro, de Diego Quemada-Diez
São Silvestre, de Lina Chamie
O Azul é a Cor mais Quente, de Adbellatif Kechiche
A Bela que Dorme, de Marco Bellocchio
O Estranho do Lago, de Alain Guiraudie
Pais e Filhos, de Kore-Eda *
A Filha de Ninguém, de Wong Sang-Soo
Blue Jasmine, de Woody Allen
A Caça, de Thomas Vinterberg
O Capital, de Constantin Costa-Gavras
César Deve Morrer, dos irmãos Taviani
Django Livre, de Quentin Tarantino
Hoje, de Tata Amaral
Irmãs Jamais, de Marco Bellocchio
Las Acácias, de Pablo Giorgelli
Lincoln, de Steven Spielberg
O que se Move, de Caetano Gotardo
Na Neblina, de Sergei Loznitsa
Reality, de Matteo Garrone
* Já havia completado essa lista quando fui assistir ao
magnífico Pais e Filhos, de Kore-Eda. Depois de vê-lo, não há como deixá-lo de
fora.
Estadão
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