Relendo Cem Anos de Solidão, depois de tantos anos. Releituras sempre surpreendem. Vemos coisas que nos passaram despercebidas, ou a que não demos tanta importância da primeira vez. A maturidade e suas compensações, etc.
Lá pelas tantas, pags. 196-197 para ser preciso, da fantástica edição crítica da Real Academia Espanhola, deparo com uma passagem luminosa do romance de Gabriel García Márquez.
Depois de 20 anos de uma guerra indefinida, o coronel Aureliano Buendía reúne-se em Macondo com seus auxiliares imediatos. Eles são os rebeldes liberais e combatem o governo conservador. Tem ideias avançadas e querem aplicá-las ao país.
O texto é o seguinte, em má tradução amadorística:
“Ocupou uma cadeira entre seus assessores políticos e, envolto na manta de lã, escutou em silêncio as breves propostas dos emissários. Pediam, em primeiro lugar, renunciar à revisão dos títulos de propriedade da terra para recuperar o apoio dos latifundiários liberais. Pediam, em segundo lugar, renunciar à luta contra a influência clerical para obter o respaldo do povo católico. Pediam, por último, renunciar às aspirações de igualdade de direitos entre os filhos naturais e os legítimos para preservar a integridade dos lares.
– Quer dizer – sorriu o coronel Aureliano Buendía quando terminou a leitura – que estamos lutando apenas pelo poder.”
Na sequência, um dos assessores políticos do coronel toma a palavra e diz que todas essas renúncias equivalem a subscrever o ideário dos conservadores. E, se precisam adotá-las por questões táticas, como sugerira outro assessor, isso queria dizer que o ideário conservador era o que tinha respaldo popular, e não o deles, liberais.
No que é interrompido pelo coronel: “Não perca seu tempo, doutor”, disse. “O importante é que desde este momento lutamos apenas pelo poder”.
Não é interessante como uma única página de excelente literatura é capaz de nos escancarar séculos de política latino-americana? Ou melhor, séculos de tragédia política latino-americana?
O poder pode ser visto como instrumento necessário para realizar uma série de ideias. Mas, na luta para obtê-lo ou conservá-lo, todas as ideias que moveram a ação no princípio vão sendo deixadas para trás. Renuncia-se a algumas delas porque inexequíveis, fazem-se alianças, concessões, etc. Até o momento em que se passa a pensar exatamente como o adversário que se combatia, porque o poder já não é mais o instrumento para realizar determinadas coisas, mas algo com valor em si, a ser alcançado, ou mantido, a qualquer preço.
A lucidez é necessária, e às vezes pode ser muito triste. Mas a consciência é liberadora.
Estado de São Paulo
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