Contardo Calligaris
Uma menina de 12 anos grava um vídeo em que ela se penetra com um boneco e o manda para um correspondente on-line. A mãe da menina descobre o vídeo e seu destino; ela agradece a Deus, porque a menina não mostrou seu rosto. Logo, ela fica triste, pensando que a vida sexual da filha deveria ter começado de outra forma, numa relação terna, com alguém de verdade.
A história me fez pensar numa adolescente psicótica que encontrei durante meu primeiro dia de trabalho numa instituição do norte da França, na qual fui psicanalista nos anos 70. Ela se masturbava com uma lixa, sentada na poça de seu sangue, no meio de um ateliê de marcenaria; enquanto isso, os "terapeutas" fabricavam móveis para suas residências.
Durante dois anos, me encontrei com essa menina, a cada terça-feira de manhã —ela me ensinou que, na origem do desejo sexual, talvez esteja um imperativo raivoso e que nada tem a ver com amor e relações, algo como: goza, e doa a quem doer!
Naquela época, eu escutava meninos pré-adolescentes: muitos relatos de suas primeiras ejaculações eram cenas imaginárias de torturas e abusos sofridos. Quase sempre, essas cenas tentavam dar um sentido erótico ao exercício do poder absoluto e rigoroso dos pais.
Alguns desses jovens, no inverno, começaram sua vida sexual imaginando que eram forçados a praticar coitos dolorosos com as barras escaldantes do radiador do banheiro. Você acha exótico? Tudo bem, no Brasil não há radiadores, mas há piscinas; não são raros (e, às vezes, tem consequências apavorantes) os "incidentes" em que um menino fica com o membro preso pela sucção de um tubo de circulação da água. Você acha que são frutos do acaso?
Mais tarde, em Paris, animei um grupo (inspirado nos grupos Balint) de residentes plantonistas. Alguns se angustiavam ao encontrar incidentes sexuais inesperados —objetos introduzidos por algum orifício, mas que explodiam e feriam (lâmpadas, por exemplo) ou que eram perdidos dentro do corpo. Um desses jovens médicos disse que ele teria preferido receber um dia, como plantonista, um casal vítima do mítico "penis captivus", ou seja, de uma mistura de inchaço vascular com contração muscular, pela qual um casal não conseguiria se separar depois do sexo. Eu comentei que todos sonhamos com casais que se amam tanto que nem conseguem desgrudar, mas o sexo é outra coisa.
Por que conto essas histórias, que talvez causem um certo desconforto?
Em matéria de liberdade e liberação sexuais, a questão não é ser a favor ou ser contra; a verdadeira oposição pertinente é entre estes dois lados:
1) Há os que acham que nossa sexualidade se desenvolveria harmoniosamente, se ela não fosse reprimida. Para esse grupo, é a repressão que obriga nosso desejo a procurar caminhos tortos. Jamais uma menina "brincaria" com um boneco, se ela fosse autorizada a transar com seus amiguinhos à vontade;
2) Há os que acham, ao contrário, que nossa sexualidade se aproxima do que chamamos de "normal" só pela força da repressão. Para eles, o desejo é (não está, mas "é") torto, e só sendo reprimido ele se encaminha, eventualmente, para algum semblante de harmonia. Ou seja, sem repressão, fantasias com bonecos, lixas e tubos de piscina talvez nos interessassem mais do que brincadeiras com parceiros e parceiras.
Não se apresse em tomar partido. Até porque, entre os dois extremos, há muitas posições intermediárias. Mais duas recomendações e uma nota.
1) Se você defende e deseja a "liberação sexual", ótimo, estou com você. Mas cuidado com o que você deseja: nem sempre a gente aguenta.
2) Por favor, não demonizemos meninas que brincam com um boneco; sua sexualidade não é tão diferente da nossa.
Nota. A contracultura, desde os anos 50/60, é considerada responsável pela "liberação sexual". De fato, nas suas margens, abundavam os farsantes: os mais frustrados achavam que, enfim, iam poder "pegar uma mina", os menos sinistros tinham sonhos (quase bobos) de sexo festivo, liberado, cheio de amor e flores no cabelo.
Mas a liberação sexual da contracultura não foi nada disso: era claro, para os melhores, que o sexo, se fosse "liberado", seria brutal, exigente e cruento, como o desejo daquela menina louca sentada na poça de seu sangue. A maioria dos melhores tentaram viver à altura desse desejo "liberado"; muitos morreram na epidemia de Aids dos anos 80.
Folha SP
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