quarta-feira, 28 de maio de 2014

"Eu sei como pisar no coração de uma mulher, já fui mulher, eu sei"; Mulheres da Periferia, por elas mesmas


Surge coletivo disposto a expressar o que é ser mulher nas bordas das metrópoles — longe dos preconceitos da mídia e produzindo jornalismo crítico e de profundidade

Andressa Pellanda

“Somos a irmã que cuida dos irmãos mais novos até a mãe voltar do serviço e que lava a louça do almoço enquanto o irmão vai jogar bola. Somos aquelas que amam os filhos das patroas. Somos as ‘mãezinhas’ que gritam nos corredores das maternidades. Somos quem chora quando nossos filhos são mortos por serem suspeitos. Somos mães de abril, maio, de junho, setembro. Somos as mães que trabalham para as filhas estudarem. Somos as filhas que se formam na universidade para as mães voltarem para a escola.

“Somos aquela que, depois de oito horas de trabalho e quatro horas no transporte público, ainda passa a roupa e nina o bebê. Somos quem vai no posto atrás de remédio e pra agendar consulta pra daqui a cinco meses. Somos quem cria abaixo-assinados para pedir creches. Somos quem denuncia que a vizinha apanha do marido. Somos operárias, empreendedoras, manicures, jornalistas, costureiras, motoristas, advogadas. Somos esposas, mães, irmãs, primas, tias, comadres, vizinhas. Somos maioria. Somos minoria. Pobres, pretas, brancas, periféricas. Migrante, nordestina, baianinha, quilombola, indígena.”


Elas são as milhões de mulheres que moram nas periferias deste país. São o coletivo “Nós, Mulheres da Periferia”, que desde dia 8 de março de 2014, Dia Internacional da Mulher, vem tentando expressar, nas redes sociais, o que é ser uma mulher nas bordas das metrópoles. Enquanto preparam o lançamento do site que pretende inaugurar o jornalismo voltado às mulheres da periferia, Bianca Pedrina, Jéssica Moreira, Semayat Oliveira, Aline Kátia, Priscila Gomes, Mayara Penina, Lívia Lima, Cíntia Gomes e Regiany Silva já militam por essa causa, que é tão delas, mas também de milhões de mulheres brasileiras.


Em 2013, 56 milhões de brasileiros, 29% da população, viviam nas periferias urbanas, de acordo com levantamento da consultoria Serasa Experian. A proposta do coletivo é dar visibilidade e voz às milhões de mulheres que integram esse contingente em tantos aspectos marginalizado, inclusive pela maneira como são representadas na mídia.


Elas mesmas contam a que vieram, em entrevista a Outras Palavras.


Quais são os desafios de ser uma mulher da periferia, em São Paulo?


Em uma sociedade machista, ser mulher já é um grande desafio. Ser mulher e ser da periferia torna essa missão pelo menos duas vezes mais difícil. Além de tudo que a mulher, de forma geral, já precisa enfrentar para alcançar seu espaço no meio social, nós, mulheres da periferia, enfrentamos os desafios presentes na vida de qualquer pessoa que viva na periferia de uma grande metrópole como São Paulo. Assim, entendemos que homens e mulheres sofrem com a falta de serviços públicos, como saúde, moradia e educação. Porém, a mulher, de forma específica, sofre mais que o homem, uma vez que na maioria das vezes é ela a chefe do lar. Sofre mais que o homem nos longos percursos de ônibus ou metrô, pois além do aperto, sofre abuso sexual. Sofre mais que o homem na questão da educação, uma vez que ela é quem cuida da vida escolar do filho. Sofre mais também na questão da saúde pública, pois precisa utilizá-la para questões ginecológicas bem mais cedo que o sexo masculino. Sofre mais, pois é ela que visita o marido quando vai preso. Sofre mais quando o filho morre ou entra para o tráfico de drogas. Sofre mais ao subir a rua escura, já que seu maior medo não é o assalto, mas o estupro.



Por estarmos mais longe dos bairros centrais, muitos serviços nos são negados. É impossível trabalhar por perto. Estudar por perto. Não há empregos nesses lugares, por isso percorremos longas distâncias, da Zona Norte à Zona Sul da cidade. Não há um número grande de faculdades nas regiões periféricas, o que nos obriga a sair cedo de casa e voltar depois da meia-noite. Não há opções de lazer também. E sair de casa para se divertir significa voltar no primeiro ônibus do outro dia.



Ser mulher nas periferias de São Paulo é conviver com as diferenças geográficas impostas por um sistema que afasta o pobre cada vez para mais longe, enquanto a especulação imobiliária encarece tudo, até mesmo em nossos bairros.



Como vê o espaço que a mulher da periferia ocupa na sociedade? E como ela é retratada?



A mulher da periferia é retratada de forma genérica, estereotipada. Ela é, infelizmente, estigmatizada apenas por ser da periferia. Por sua localização geográfica, acreditam que ela se expressa, fala e se veste apenas de uma forma. A periferia é composta por pessoas muito diversas e, pelas dificuldades todas que passam, muito criativas. Porém, os meios de comunicação de massa ou grande mídia, como dizemos, traz em seus anúncios, novelas e comerciais um único tipo de mulher da periferia, sempre é a empregada doméstica ou a periguete. Somos empregadas domésticas, sim, somos também periguetes, mas somos várias outras também. Somos a mãe, a tia, a irmã, a mulher guerreira desde o nascimento.



Antigamente, a mulher da periferia não tinha acesso à faculdade, não trabalhava além do serviço que já realiza diariamente em sua casa. Essa realidade, no entanto, vem mudando em todas as classes sociais. A mulher vem abrindo espaço no mundo do trabalho, com cargos até melhores que os dos homens. Mas ainda ganha menos que eles. Isso é um desafio a ser enfrentado. Com a mulher da periferia, não é diferente. Ela também vem ocupando espaço, mas sempre tendo de provar que é capaz, mesmo vindo de um lugar distante. É preciso explicar que a questão da moradia longínqua vem acompanhada de preconceitos. “Se mora na periferia, não teve estudo qualificado. Se é da periferia, vai chegar atrasada. Se é da periferia, não sabe falar direito” são afirmações que podemos ouvir por aí.



O que é o “Nós, Mulheres da Periferia”? Como e por que surgiu a ideia de criar esse projeto?



O coletivo é formado por oito jornalistas e uma designer, todas moradoras de bairros da periferia do município de São Paulo. No dia 7 de março de 2012, quatro das nove mulheres jornalistas que integram o coletivo publicaram o artigo “Nós, Mulheres da Periferia” na seção “Tendências/Debates” do jornal Folha de S. Paulo, atentando para a invisibilidade e os direitos não atendidos das mulheres que moram em bairros periféricos de metrópoles. O texto obteve grande repercussão, sendo replicado em outros veículos de mídia, como na Rádio CBN. O artigo encontrou eco entre nossas iguais, outras jovens ou não tão jovens, mulheres moradoras da periferia de São Paulo que finalmente tinham se sentido representadas, lembradas e retratadas. Foi lido e registrado em vídeo no Sarau do Itaim Paulista, na Zona Leste da capital.



Para escrever, as autoras se basearam principalmente em sua visão e experiências cotidianas. Mas perceberam naquele momento que o vazio de representatividade não era sentido apenas por elas. Iniciou-se então um processo de pesquisa e consolidação do coletivo, que tem como objetivo principal dar visibilidade aos direitos não atendidos das mulheres, problematizar os preconceitos e estereótipos limitadores, que se cruzam com as questões de classe social, etnia e raça, muito presentes em razão de serem moradoras das bordas da cidade.



A primeira ação concreta do coletivo foi o lançamento de uma página no Facebook, no 8 de março de 2014. Na mesma data publicou o artigo “Nós, Moradoras da Periferia”, na seção “Tendências/Debates” da Folha de S. Paulo, jogando luz na questão do direito à moradia das mulheres de baixa renda.



Com mais de 2.500 curtidas em menos de dois meses, a página recebe conteúdo inédito diariamente e um post sobre a violação de direitos chegou a alcançar 597 compartilhamentos. Nos comentários da página é possível perceber que um grande número de mulheres da periferia se identificam e se reconhecem em nossas produções. Desde a criação até agora, temos uma média de 119 curtidas, 14 comentários e 23 compartilhamentos por dia.



Nesta quarta-feira, 28 de maio, será o lançamento oficial do site, um canal de comunicação e encontro com a missão de fomentar o protagonismo das moradoras de regiões afastadas do centro paulistano. A primeira grande reportagem trará a luta das mulheres pela casa própria e moradia digna.



Quem são as pessoas que formam o coletivo? Quais suas relações com a comunidade?



São nove mulheres que nasceram, cresceram e ainda moram nas periferias de Norte a Sul da cidade. Todas são jornalistas comunitárias do Blog Mural e, por isso, já têm uma relação diferente ao olhar para o território periférico. Com a experiência adquirida no Mural, de contar aquilo de que a grande mídia não fala, é que vamos basear nosso trabalho, tentando fugir do senso comum.



Quais as principais diferenças entre o “Nós, Mulheres” e os veículos já existentes? Como o projeto pretende dialogar com a comunidade – e ajudar, talvez, a transformá-la?



Hoje em dia, não há nenhum veículo da grande mídia voltado apenas para a mulher. Mesmo entre os alternativos, não encontramos esse viés. E, naqueles da periferia, encontramos alguns assuntos, mas nenhum com foco na mulher. Além disso, um dos principais diferenciais de nosso projeto é que fazemos parte do universo que iremos retratar, pois todas moramos em bairros periféricos de São Paulo. Assim, observador e observado se fundem, marcando as nossas matérias com a sensibilidade de quem vive aquilo que escreve. O jornalismo é a ferramenta que escolhemos para dar voz às mulheres que nunca são ouvidas pela mídia e, quando são, é de forma sensacionalista ou sexista. Além disso, temos como objetivo pautar a grande imprensa, servindo de ponte entre a mídia e as mulheres não ouvidas da periferia.



O coletivo “Nós, Mulheres da Periferia” pretende contribuir para o empoderamento das mulheres moradoras da periferia de São Paulo, promovendo espaços de reflexão, debate, informação, troca de conhecimento, experiências e visibilidade sobre seus protagonismos, histórias e dilemas.


Carta Capital 

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