Viram-se várias vezes, pela televisão, em cenas dos protestos em massa em Kiev contra o governo de Yanukovich, manifestantes derrubando estátuas de Lênin. Era jeito fácil de demonstrar ira: as estátuas funcionavam como símbolo da opressão soviética; e a Rússia de Putin é vista como continuação da política soviética de dominação, pelos russos, sobre os vizinhos.
Slavoj Žižek
Mas não esqueçam que as estátuas de Lênin só começaram a surgir por todas as esquinas da União Soviética, em 1956: até então, as estátuas de Stálin, sim, ocupavam todas as esquinas. Mas depois da denúncia ‘secreta’ por Krushchev, contra Stálin, no 20º Congresso do PC, estátuas de Lênin, sim, substituíram, em massa, as estátuas de Stálin: Lênin foi usado, literalmente como suplente de Stálin. Foi o que também se viu, bem claramente, quando, em 1962, houve uma mudança no design da primeira página do Pravda. Até ali, no canto superior esquerdo da página 1, havia dois perfis, Lênin e Stálin, lado a lado. Pouco depois que o 22º Congresso rejeitou Stálin publicamente, o perfil não só foi removido, mas foi também substituído por um segundo perfil de Lênin. E passaram a ser dois Lênins idênticos, impressos lado a lado. Em certo sentido complexo, a repetição tornou Stálin ainda mais presente, na ausência, do que jamais antes.
Mas há uma ironia histórica, se se assiste a ucranianos que põem abaixo estátuas de Lênin como sinal de que rejeitam a dominação soviética e querem afirmar a própria soberania nacional. A idade de ouro da identidade nacional ucraniana não foi a Rússia czarista – quando a autoafirmação nacional ucraniana foi sufocada –, mas a primeira década da União Soviética, quando a política soviética para uma Ucrânia exaurida pela guerra e pela fome foi a ‘indigenização’. A cultura e a língua ucraniana renasceram, com direitos à assistência pública à saúde, e educação pública e seguridade social ativadas. A indigenização seguiu os princípios formulados por Lênin em termos bem claros:
“O proletariado tem de lutar contra a opressão dentro de um dado estado; esse é precisamente o significado da luta pela autodeterminação. O proletariado tem de exigir o direito de as colônias tornarem-se independentes, além do direito de independência para os países que ‘sua própria nação’ oprime. A menos que faça isso, o internacionalismo proletário não passará de frase sem conteúdo; e serão impossíveis a confiança mútua e a solidariedade de classe entre os trabalhadores de nações que oprimem e nações oprimidas.”[1]
Lênin manteve-se até o final, sempre fiel a essa posição: imediatamente depois da Revolução de Outubro, quando Rosa Luxemburgo argumentou que nações pequenas só deveriam ganhar plena soberania se predominassem forças progressistas no novo estado, Lênin manifestou-se a favor do direito incondicionado de todos os estados buscarem a secessão e a independência.
Em sua última luta contra o projeto de Stálin para uma União Soviética centralizada, Lênin mais uma vez advogou o direito incondicional das pequenas nações à secessão (naquele caso, estava em jogo a Geórgia), insistindo na plena soberania das entidades nacionais que compunham o estado soviético – não surpreende que no dia 27/9/1922, em carta ao Politburo, Stálin tenha acusado Lênin de “liberalismo nacional”.
A direção na qual Stálin já estava andando é clara desde a proposta que fez de que o governo da Rússia Soviética deveria ser governo também das cinco outras repúblicas (Ucrânia, Bielorrússia, Azerbaijão, Armênia e Geórgia):
“Se a presente decisão for confirmada pelo Comitê Central do Partido Comunista Russo, não será tornada pública, mas comunicada aos Comitês Centrais das Repúblicas, para que circule entre os órgãos soviéticos, os Comitês Centrais Executivos ou Congressos dos Soviéticos das supracitadas Repúblicas, antes da convocação do Congresso de todos os Sovietes da Rússia, no qual será declarado desejo daquelas Repúblicas.”
A interação da mais alta autoridade, o Comitê Central, com suas bases foi, pois, abolida: a mais alta autoridade então simplesmente impunha seu desejo. Para somar insulto à injúria, o Comitê Central decidiu que a base pediria que a mais alta autoridade agisse, como se atendesse desejo da base. No caso mais conspícuo, em 1939, os três estados do Báltico pediram para unir-se à União Soviética, a qual atendeu os desejos deles. Em tudo isso, Stálin estava voltado para a política czarista pré-revolucionária: a colonização da Sibéria pela Rússia no século 17, e da Ásia muçulmana no século 19, já não eram condenadas como expansão imperialista, mas celebradas porque estariam pondo essas sociedades tradicionais na trilha da progressiva modernização. A política exterior de Putin é claramente continuação da linha czarista-stalinista.
Depois da Revolução Russa, segundo Putin, os bolcheviques causaram grave dano aos interesses da Rússia: “Depois da revolução, os bolcheviques, por várias razões – e que Deus as julgue – acrescentaram várias partes do sul histórico russo à República da Ucrânia. Foi feito sem qualquer consideração à constituição étnica da população, e essas áreas hoje formam o sudeste da Ucrânia.”[2]
Não surpreende que já apareçam retratos de Stálin novamente nos desfiles militares e nas celebrações públicas, enquanto os de Lênin vão sendo apagados. Em pesquisa de opinião realizada em 2008 pela rede de Rossiya TV, Stálin apareceu em terceiro lugar nos votos para escolher o maior russo de todos os tempos: teve meio milhão de votos. Lênin apareceu em distante sexto lugar. Stálin não é celebrado como comunista, mas como restaurador da grandeza russa, depois dos ‘desvios’ antipatrióticos de Lênin. Recentemente, Putin usou o termo Novorossiya (‘Nova Rússia’) para designar as sete províncias [oblasts] do sudeste da Ucrânia, ressuscitando termo usado pela última vez em 1917.
Mas a subcorrente leninista, embora reprimida, persistiu no submundo comunista da oposição a Stálin. Muito antes de Solzhenitsyn, como Christopher Hitchens escreveu em 2011, “as questões cruciais sobre o Gulag já estavam sendo postas por oposicionistas de esquerda, de Boris Souvarine a Victor Serge a C.L.R. James, em tempo real e sob grande risco. Esses heréticos corajosos e prescientes escreveram por fora da história (esperavam coisa muito pior que aquilo e, inúmeras vezes, foi o que tiveram).”[3]
Esse dissenso interno era parte natural do movimento comunista, em contraste claro com o fascismo. “Não havia dissidentes no Partido Nazista” – Hitchens escreveu – “que estivessem arriscando o próprio pescoço para fazer-ver que oFührer havia atraiçoado a verdadeira essência no nazi-socialismo.”
Precisamente por causa dessa tensão no coração do movimento comunista, o lugar mais perigoso para estar, no momento dos expurgos dos anos 1930s, era o topo da pirâmide da nomenklatura: no espaço de um par de anos, 80% do Comitê Central e do comando do Exército Vermelho foram executados à bala. Outro sinal de dissenso pôde ser detectado nos últimos dias do “socialismo realmente existente”, quando massas em protesto cantavam hinos, inclusive hinos nacionais, para fazer-ver aos poderosos as promessas que haviam feito, mas jamais cumpriram. Mas na Alemanha Oriental, no início dos anos 1970s e em 1989, cantar em público o hino nacional era crime: aquelas palavras (Deutschland einig Vaterland’ [Alemanha, pátria-mãe unida] não casavam bem com a ideia de uma Alemanha Oriental como nova nação socialista.
A ressurgência do nacionalismo russo levou a se terem de reescrever alguns eventos históricos. Filme biográfico recente, de Andrei Kravchuk, Admiral [Almirante[4]], celebra a vida de Aleksandr Kolchak, o comandante russo-branco que governou a Sibéria entre 1918 e 1920. Mas ninguém pode esquecer o potencial totalitário, nem a vastíssima brutalidade, das forças brancas contrarrevolucionárias durante esse período. Se os brancos tivessem vencido a Guerra Civil, Hitchens escreve, “a palavra que o mundo usaria para “fascismo” seria palavra russa, não italiana (...) O major-general William Graves, que comandou a Força Expedicionária dos EUA durante a invasão da Sibéria em 1918 (evento cuidadosamente apagado de todos os livros norte-americanos de história), escreveu em suas memórias sobre o generalizado, letal antissemitismo que dominava a direita russa; e acrescentou: “Duvido que a história encontre algum dia qualquer país, durante os últimos 50 anos, no qual fosse possível cometer assassinato em tão perfeita segurança, com menor risco de punição, do que na Sibéria, durante o reinado do Almirante Kolchak.”
Toda a direita neofascista europeia (na Hungria, na França, na Itália, na Sérvia) apoia firmemente a Rússia na crise em andamento na Ucrânia, por causa da mentira dos russos, que apresentaram o referendo da Crimeia como escolha entre a democracia russa e o fascismo ucraniano. Os eventos na Ucrânia – os protestos massivos que derrubaram Yanukovich e a gangue dele – têm de ser compreendidos como defesa contra o legado obscuro ressuscitado por Putin.[5] Os protestos foram disparados pela decisão, pelo governo ucraniano, de priorizar boas relações com a Rússia, contra a integração da Ucrânia na União Europeia. Previsivelmente, muitos esquerdistas anti-imperialistas reagiram às novidades, pondo-se contra os ucranianos: o quanto permanecem iludidos, a ponto de ainda idealizarem a Europa e não verem que se unirem à União Europeia sempre será fazer da Ucrânia colônia econômica da Europa Ocidental, e mais cedo ou mais tarde embarcar no mesmo destino que já desgraçou a Grécia.
Verdade é que os ucranianos conhecem muito bem a realidade da União Europeia. Sabem dos problemas e das desigualdades: a mensagem deles é, simplesmente, que a situação deles é muito pior que a dos europeus. A Europa tem problemas, ok. Mas são problemas de rico.
Devemos nós, pois, simplesmente apoiar o lado ucraniano [não russo] do conflito? Há pelo menos uma razão ‘leninista’ para que o façamos.
Nos últimos escritos, já bem depois de ter renunciado à utopia de Estado e Revolução,[6] Lênin explorou a ideia de um projeto modesto, ‘realista’ para o bolchevismo. Por causa do subdesenvolvimento econômico e do atraso cultural das massas russas, escreve Lênin, não há meio pelo qual a Rússia possa “passar diretamente ao socialismo”: tudo o que todo aquele poder soviético pode fazer é combinar a política moderada do ‘capitalismo de estado’ com a intensa educação cultural das massas camponesas – não a lavagem cerebral pela propaganda, mas uma imposição paciente, gradual, de padrões civilizados. Fatos e números revelaram “que vastíssima quantidade de trabalho urgente ainda temos de fazer para alcançar o padrão de um país civilizado comum da Europa Ocidental (...) Temos de ter em mente a ignorância semiasiática da qual ainda não conseguimos nos arrancar.”
Poder-se-á pensar na referência que os manifestantes ucranianos fazem à Europa, como sinal de que o objetivo deles é, também, “alcançar o padrão de um país civilizado comum da Europa Ocidental”?
Mas aqui as coisas rapidamente se complicam muito. O que, exatamente, significa a tal “Europa” da qual falam os ucranianos que protestam? Não pode ser reduzida a uma simples ideia: inclui elementos nacionalistas e, até, fascistas, mas recobre também a ideia do que Etienne Balibar chama de igualiberdade [orig. égaliberté], liberdade-na-igualdade, a única contribuição da Europa ao imaginário político global, ainda que hoje, na prática, seja diariamente e ininterruptamente traída pelas instituições e também pelos próprios cidadãos europeus. Entre esses dois polos, há também uma confiança ingênua no valor do capitalismo europeu liberal-democrático.
Nos protestos na Ucrânia, a Europa pode ver-se ela mesma, no que tem de pior e no que tem de melhor: seu universalismo emancipatório e, também, a mais escura, horrenda xenofobia.
Comecemos pela escura, horrenda xenofobia. A direita nacionalista ucraniana é uma instância do que se passa hoje, dos Bálcãs à Escandinávia, dos EUA a Israel, da África Central à Índia: as paixões étnicas e religiosas estão explodindo e os valores do Iluminismo estão em recuo. Essas paixões sempre estiveram lá, fermentando; a novidade e vergonha nenhuma com que hoje são exibidas. Imagine uma sociedade que tenha integrado plenamente nela mesma os grandes axiomas modernos da liberdade, da igualdade, do direito à educação e à assistência à saúde para todos, e na qual o racismo e o sexismo já fossem profunda e completamente inaceitáveis e ridículos. Mas, na sequência, imagine que, passo a passo, embora a sociedade continue a muito falar e falar a favor dos tais axiomas, eles, de fato, já foram capados de toda a substância.
Há um exemplo, da história europeia muito recente: no verão de 2012, Viktor Orbán, primeiro-ministro da direita húngara, declarou que era indispensável um novo sistema econômico na Europa Central. “Esperemos”, disse ele, “que Deus nos ajude e não tenhamos de inventar um novo tipo de sistema político para substituir a democracia e que terá de ser introduzido em nome da sobrevivência econômica (...) Cooperação é questão de força, não de intenção. Talvez haja países onde as coisas não operem assim, por exemplo os países escandinavos; mas gente esfarrapada, metade-asiática, como nós, só se une se houver força.”
Alguns velhos dissidentes húngaros viram logo a ironia dessas palavras: quando o exército soviético caminhou para Budapeste para esmagar o levante de 1956, a mensagem sempre repetida ao ocidente pelos miseráveis líderes húngaros era que estariam defendendo a Europa contra comunistas asiáticos. Agora, depois do colapso do comunismo, o governo cristão-conservador pinta como seu principal inimigo a democracia liberal multicultural consumista que a Europa Ocidental defende hoje. Orbán já expressou suas simpatias pelo “capitalismo com valores asiáticos”; se a pressão europeia continuar sobre Orbán, pode-se facilmente imaginá-lo enviando mensagem ao Oriente: “Aqui, defendemos a Ásia!”
O populismo anti-imigrantes de hoje já substituiu a barbárie direta, por uma barbárie com face humana. É como uma regressão, da ética cristão do ‘ama teu próximo”, de volta ao privilégio pagão da tribo, contra o Outro bárbaro. Ainda que se represente como uma defesa de valores cristãos, aí está, isso sim, a maior ameaça ao legado cristão.
“Homens que começam a combater a Igreja em nome da liberdade e da humanidade” escreveu G.K. Chesterton há um século, “terminam por se afastar para bem longe da liberdade e da humanidade, desde que possam lutar contra a Igreja (...) Os secularistas não detonaram coisas divinas; mas detonaram coisas seculares, se é que isso os conforta, seja como for.” Será que se aplica também aos que defendem a religião? Fanáticos defensores de religião começam por atacar a cultura secular contemporânea; nem chega a surpreender quando terminam por apagar toda e qualquer experiência religiosa significativa.
Assim também, muitos guerreiros liberais querem tanto combater o fundamentalismo antidemocrático, que terminam por detonar toda e qualquer liberdade e toda e qualquer democracia, se, com isso, se convencem de que estariam detonando o terror. Qualquer ‘terrorista’ está pronto a fazer voar pelos ares esse mundo por amor a outro mundo, mas os que guerreiam contra o terror também estão prontos a fazer voar pelos ares o seu próprio mundo democrático, de tanto que odeiam o outro muçulmano. Alguns deles tanto amam a dignidade humana, que estão prontos a legalizar a tortura, para defender a dignidade humana.
Os defensores da Europa contra a ameaça do imigrante estão fazendo exatamente isso.
Em sua aplicação, em seu zelo para proteger o legado judeu-cristão, estão prontos a detonar o que é mais importante naquele legado. Os europeus anti-imigrantes e defensores dessa Europa anti-imigrantes, não as multidões concebidas de imigrantes que estariam à espera para invadir o continente, são a verdadeira ameaça que pesa contra a Europa.
Um dos sinais dessa regressão é um clamor, frequentemente ouvido na nova direita europeia, por uma visão mais ‘equilibrada’ dos dois ‘extremismos’ (a direita e a esquerda). O que mais se ouve é que se deve tratar a extrema esquerda (comunismo) do mesmo modo como a Europa, depois da 2ª Guerra Mundial tratou a extrema direita (os fascistas derrotados). Mas de fato não há aí qualquer equilíbrio: a equação fascismo = comunismo privilegia secretamente o fascismo. Assim, ouve-se a direita dizer que o fascismo copiou o comunismo: antes de tornar-se fascista, Mussolini foi socialista; Hitler, também, foi Nacional-socialista; campos de concentração e violência genocida já eram traços da União Soviética, uma década antes dos nazistas recorrerem a eles; a aniquilação dos judeus foi claro precedente na aniquilação da classe inimiga, etc.
O ponto, nesses argumentos, é afirmar que um fascismo moderado foi resposta justificada à ameaça comunista (argumento construído há muito tempo por Ernst Nolte, quando defendeu o envolvimento de Heidegger com o nazismo). Na Eslovênia, a direita está advogando a reabilitação da anticomunista Guarda Nacional [orig. anti-communist Home Guard] que combateu contra os partisans durante a 2ª Guerra Mundial: fizeram a difícil escolha de colaborar com os nazistas para deter o mal muito maior do comunismo.
Liberais dominantes nos dizem que quando valores democráticos básicos estão sob ameaça por fundamentalistas étnicos ou religiosos, temos de nos unir por trás da agenda liberal democrática, salvar o que seja possível salvar e pôr de lado os sonhos de transformação social mais radical. Mas há uma mácula fatal, nessa conclamação à solidariedade: ela ignora o modo pelo qual o liberalismo e o fundamentalismo são apanhados num ciclo vicioso. É a tentativa agressiva para exportar a permissividade liberal que leva os fundamentalistas a resistir veementemente na luta e a se autoafirmarem.
Quando ouvimos hoje os políticos a nos oferecerem escolha entre a liberdade liberal e opressão fundamentalista, e propor triunfantes a pergunta retórica: “Vocês querem mulheres excluídas da vida pública e privadas de direitos? Vocês querem que todos os que critiquem a religião sejam condenados à morte?”, o que mais deveria nos levar a desconfiar é que a resposta é absolutamente autoevidente: quem desejaria tais coisas?
O problema é que esse universalismo liberal há muito tempo já perdeu a inocência. O que Max Horkheimer disse sobre capitalismo e fascismo nos anos 1930s aplica-se hoje num contexto diferente: os que não querem criticar a democracia liberal que se mantenham de bico calado também contra o fundamentalismo religioso.
E quanto ao destino do sonho capitalista liberal-democrático europeu na Ucrânia? Ainda não se pode ver com clareza, por hora, o que espera a Ucrânia dentro da União Europeia. Já repeti várias vezes uma velha piada da década passada da União Soviética, mas não poderia vir mais a propósito. Rabinovitch, judeu, quer imigrar. O burocrata no guichê da imigração pergunta-lhe por quê, e Rabinovitch responde: “Duas razões. A primeira é que tenho medo de que os comunistas percam o poder na União Soviética, e o novo poder lançará a culpa pelos crimes dos comunistas sobre nós, os judeus.” “Mas isso é total loucura” – o burocrata o interrompe. – “Nada jamais mudará na União Soviética, o poder dos comunistas durará para sempre!” “Pois é” – replica Rabinovitch. – “Essa é minha segunda razão.”
Imaginem conversa equivalente entre um ucraniano e um burocrata da União Europeia. O ucraniano reclama: “Há duas razões pelas quais estamos em pânico cá na Ucrânia. Primeiro, temos medo de que a Rússia pressione a União Europeia para que nos abandone e deixe nossa economia entrar em colapso.” O burocrata da União Europeia interrompe: “Mas o senhor pode confiar em nós! Nós nunca os abandonaremos! De fato, vamos tomar conta do país de vocês e ensinar tudo que vocês devem fazer.” “Pois é” – replica o ucraniano. – “Essa é minha segunda razão.”
A questão não é se a Ucrânia merece a Europa, se é boa o bastante para entrar na União Europeia, mas se a Europa de hoje pode atender às aspirações dos ucranianos. Se a Ucrânia terminar numa mistura de fundamentalismo étnico e capitalismo liberal, com oligarcas puxando as cordinhas, será tão europeia quanto é hoje a Rússia (ou a Hungria). (Tem-se dado pouca atenção ao papel que desempenham os vários grupos de oligarcas – os ‘pró-Rússia’ e os ‘pró-ocidente’ – nos eventos na Ucrânia.)
Alguns comentaristas políticos têm dito que a União Europeia não tem dado suficiente apoio à Ucrânia no conflito com a Rússia, que a resposta da União Europeia à reintegração da Crimeia à Rússia[7] não foi suficientemente empenhada. Mas há outro tipo de apoio que está ainda mais espantosamente ausente: a proposta de qualquer estratégia viável para romper o impasse. A Europa não estará em posição para oferecer tal estratégia, até que renove seu compromisso com o núcleo emancipatório da própria história da Europa.
Só se deixarmos para trás o cadáver putrefato da velha Europa, será possível preservar vivo o legado europeu de igualiberdade [orig. égaliberté]. Não se trata de os ucranianos aprenderem da Europa: a Europa tem de aprender a corresponder ao sonho que motivou os manifestantes da praça Maidan. A lição que liberais apavorados têm de aprender é que só uma esquerda mais radical pode salvar o que valha a pena salvar hoje, do legado liberal.
Os manifestantes da praça Maidan foram heróis, mas a verdadeira luta – a luta pelo que a nova Ucrânia será – começa agora, e será muito mais dura que a luta contra Putin [sic]. Será necessário um novo e mais arriscado heroísmo. Já se viu esse heroísmo, nos russos que se opõem à paixão nacionalista e a denunciam como ferramenta de poder. É mais que hora de se afirmar a solidariedade básica de ucranianos e russos, e de se rejeitarem os próprios termos em que o conflito está posto. O passo seguinte é manifestação pública de fraternidade, com redes de organização criadas entre ativistas políticos ucranianos e a oposição a Putin.
Pode soar utópico, mas esse é o único pensamento que pode dar dimensão verdadeira emancipatória aos protestos. É isso, ou seremos deixados prisioneiros de um conflito entre paixões nacionalistas manipuladas por oligarcas. Esses jogos geopolíticos não têm interesse algum para a política autenticamente emancipatória.
[1] Lênin, V.I., “The Socialist Revolution and the Right of Nations to Self-Determination”, jan-fev. 1916, em https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1916/jan/x01.htm (ing.)
[2] 19/3/2014, Vladimir Putin, presidente da Rússia: Discurso sobre a Integração da Crimeia, trad. emhttp://redecastorphoto.blogspot.com.br/2014/03/vladimir-putin-presidente-da-russia.html [NTs].
[3] HITCHENS, Christopher, Unacknowledged Legislation: Writers in the Public Sphere, p. 274 Google Books
[4] http://en.wikipedia.org/wiki/Admiral_(film)
[5] Fica aí, porque, afinal, o homem escreveu isso. Mas fica tachado, riscado, porque, se não se podem discutir sílaba a sílaba, esses ‘diagnósticos’ têm a importância que têm as opiniões babentas babosas, de qualquer jornalisteca-LoPrete, dessas por aí, lixo do ‘jornalismo’ que desgraça o Brasil-2014 [NTs].
[6] http://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/08/estadoerevolucao/
[7] No orig. lia-se “Russian occupation and annexation of Crimea”. A Vila Vudu absolutamente nunca escreveu nem escreverá tal expressão. Nenhum ‘fato’interessa. A Crimeia votou em referendo, decidiu pela reintegração à Federação Russa, solicitou que a Federação Russa a reintegrasse, a Federação Russa aprovou a reintegração, a Crimeia foi reintegrada, Putin fez o discurso: os fatos que nos mobilizam são esses, não outros [NTs].
Controvérsia
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