sábado, 29 de janeiro de 2011
Simone de Beauvoir e Gil: arte de envelhecer
Em entrevista, o compositor Gilberto Gil ensina a arte de envelhecer
Vitor Hugo Soares
Há alguns anos recebi de presente de aniversário o livro "A Velhice", de Simone de Beauvoir, mais importante e referencial ensaio contemporâneo que conheço sobre as condições de vida dos idosos. O regalo - como dizem os portenhos - veio de uma querida irmã jornalista - fã de carteirinha da escritora francesa, mas preocupada, também, com o avançar da idade do mano. A obra, publicada em 1970, segue mais atual do que nunca, principalmente no País de pouco cuidado - para não dizer desprezo escancarado - com os seus velhos.
Mas o jornalístico e factual nesse "nariz de cera" é a oportunidade de dizer que desde então não lembro de ter lido mais nada tão interessante e revelador sobre o envelhecer, que as reflexões do artista Gilberto Gil, ex-ministro da Cultura do Brasil, esta semana em Salvador.
Estão na entrevista concedida pelo cantor e compositor de 68 anos à jovem repórter Emanuella Sombra, publicada como matéria de capa de "Muito", a revista da edição dominical do jornal A Tarde.
Não recordo igualmente de ter lido nada melhor nos jornais e revistas nacionais nesses últimos dias. Sei que afirmativas como essas são perigosas e incomodam muita gente do meio. Mexem com vaidades e ciumeiras tolas do cada dia mais estranho e egocêntrico modo de pensar e fazer jornalismo, ultimamente.
Devo acrescentar, a bem da verdade e da qualidade da informação, nestas linhas, que a entrevista do ex-ministro da Cultura do Brasil não é mais um daqueles tratados insuportáveis sobre velhice, cheios de obviedades e lições hipócritas e "politicamente corretas" de como vencer achaques e limitações.
Gil faz um balanço quase completo da carreira. Fala da vida, da juventude, dos atritos durante sua atuação no ministério do governo Lula (a polêmica demissão do ator Antonio Grassi, que acaba de voltar com Ana de Hollanda no governo Dilma, por exemplo). Conversa livre e abertamente, também, sobre amores passados e presentes, da mãe Claudina (a "negra baiana cem por cento" da maravilhosa canção na volta do exílio), da relação com Flora e Sandra (Drão) - mulheres para as quais compôs duas de suas músicas mais belas e expressivas -, dos filhos, netos e amigos. E, obviamente, do show do CD "Fé na Festa", que ele apresenta neste domingo, 30, na Concha Acústica do Teatro Castro Alves, em Salvador.
Já se vê por esta "palinha" que a conversa do autor de "Parabolicamará" com a repórter baiana não é coisa de velho saudosista - como alguns apressadamente podem pensar - maldosamente (ou não) - mesmo que a saudade atravesse as palavras do artista de vez em quando, mas quase sempre daquele jeito bom de que falava o genial sanfoneiro e cantor pernambucano, Luiz Gonzaga, em seu baião antológico.
Mas o forte e eloquente da entrevista é mesmo o jeito original e marcante de Gilberto Gil encarar a velhice, na atual etapa de sua vida e de seu trabalho. Aproximando-se dos 70, o artista não esconde nem evita falar sobre as limitações dos anos nas costas, mas ensina com doçura e realismo como essas limitações estão sendo transformadas por ele numa nova juventude.
Ah! Antes que esqueça por uma traição da memória: as fotos, da capa com o título "Tempo Rei", e das páginas internas são assinadas por Fernando Vivas (de tantas jornadas ao lado de Bob Fernandes e Ricardo Noblat, pela Bahia e país afora, às vezes também deste que vos escreve, no tempo da sucursal da Veja). Imagens que impactam, encantam, informam e fazem pensar nessa matéria quase completa em termos de bom jornalismo.
Gil com a palavra, sobre as limitações do envelhecer e seu jeito de encarar o passar do tempo:
"Muda o sentido de atenção, de cuidado. O desempenho físico é outro, as tarefas, os afazeres são afetados. E isso também afeta o desempenho psíquico. A memória é uma coisa que é afetada drasticamente, ela começa a ter menos resposta do que antes.
Envelhecer implica uma outra maneira de viver, uma outra arte de viver, novas autorresponsabilidades. Você passa a ter que responder a si próprio de maneira diferente, a dizer sim de maneira diferente, a dizer não mais severo, com mais intensidade, mais frequência. Passa a aceitar o sentimento de renúncia com mais resignação".
Um pouco mais de um dos motores mais vibrantes da revolucionária Tropicália na entrevista a Muito, quando a repórter pede que ele explique melhor: "Renuncia a muita coisa que você não pode fazer mais, como subir uma escada, que era um ato inconsciente e irresponsável. Hoje em dia envolve todo um desempenho e um empenho, um cuidado ao subir ou descer uma escada que me obriga a renunciar a tudo aquilo, à espontaneidade, ao desleixo, a uma impetuosidade". Subir em um trio elétrico no Carnaval de Salvador, para passar horas como no passado, também é algo impensável atualmente, confessa Gil.
Tem mais, muito mais na entrevista para ler e guardar. Como o livro que Simone de Beauvoir escreveu nos anos 70 para rasgar o véu de hipocrisia e "quebrar a conspiração do silêncio" em relação à velhice, assunto que aparece para os homens e para a sociedade como uma espécie de "segredo vergonhoso".
Grande Simone! Bravo Gil!
Terra Magazine
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