quarta-feira, 2 de junho de 2010
Os homens não são todos iguais
A premiada socióloga Marlise Matos derruba o mito da crise da masculinidade e avisa: “Somos um país profundamente tradicional, com exercícios de masculinidade dentro do formato mais sexista, machista e misógino que se possa pensar”, me disse ela nessa entrevista realizada há anos para a revista NoMínimo. Recupero a conversa para voltar combater o clichê “os homens são todos iguais”, que deveria incomodar aos homens tanto quanto incomoda às mulheres que aspiram emancipação serem rotuladas. No rastro da sua argumentação, há também um reconhecimento do feminismo como instrumento fundamental, “motor de transformações de vários ordenamentos e dispositivos sócio-políticos e inclusive, entre estas mudanças podemos incluir os padrões reinventados de estabelecimento dos vínculos conjugais”
Socióloga com doutorado pelo Iuperj – cuja crise, felizmente, parece poder chegar ao fim com o apoio do governo estadual –, Marlise Matos teve sua tese sobre as transformações no relacionamento afetivo premiada e publicada pela UFMG sob o título “Reinvenções do vínculo amoroso – cultura e identidade de gênero na modernidade tardia”. Assim que terminou o trabalho, em 1999, ela passou a investigar os homens, na pesquisa “Dimensões da Masculinidade à Brasileira”, realizada dentro do Programa PRODIR III, com apoio das fundações Carlos Chagas e MacArthur.
É com base nesse trabalho que ela contraria duas idéias do senso comum: a de há uma crise da masculinidade e a de que os homens são todos iguais. “Os homens são efetivamente plurais”, diz ela, demonstrando como as profundas mudanças econômicas do capitalismo pós-industrial alteraram a vida privada, trazendo ao mesmo tempo mais liberdade individual e novas possibilidades de arranjos afetivos, apesar das contradições brasileiras e a convivência com o que ela chama de “um país profundamente tradicional, com exercícios de masculinidade dentro do formato mais sexista, machista e misógino que se possa pensar”.
De certa maneira, Marlise antecipa na tese algumas das reflexões do sociólogo Zigmunt Bauman em “Amor líqüido”. Embora olhe para as transformações de forma também crítica, ela valoriza as mudanças como alternativas de valorização da liberdade dos sujeitos contemporâneos. “Os vínculos amorosos reinventados são tentativas ético-estéticas de associar algum grau possível e pensável de liberdade com o mundo limitado da produção de um vínculo amoroso”, diz ela nessa entrevista.
É comum dizer que foi a emancipação das mulheres que empurrou os homens para a crise da masculinidade, para a busca de novos papéis. A senhora acredita que já se pode definir esse novo modelo de masculinidade? Qual é?
Não acredito que tenha sido apenas a emancipação das mulheres que tenha “empurrado” os homens para a “crise da masculinidade”. Aliás, sequer acredito que para o nosso Brasil seja pertinente ou coerente se falar em “crise da masculinidade”. Somos e continuamos a ser um país profundamente tradicional, com exercícios de masculinidade dentro do formato mais sexista, machista e misógino que se possa pensar, e onde o poder é majoritariamente exercido pelos e para os homens. No entanto acho também que já é possível identificarmos no Brasil uma certa movimentação no sentido de um indagar dos próprios homens a respeito de si. O trabalho de pesquisa que realizei logo após este livro foi, justamente, sobre masculinidades. E a minha primeiríssima conclusão retirada deste outro esforço de pesquisa foi a de que as masculinidades necessitam ser enfocadas eminentemente no plural. Ou seja, nem mesmo as estruturas mais tradicionalizadas, ossificadas de masculinidades sexistas não podem ser pensadas de um ponto de vista único, determinista e estável. Os homens – à despeito do que poderiam desejar perspectivas feministas ou ainda o notório senso comum – são efetivamente plurais. Na pesquisa foi possível identificar nas trajetórias de vida de alguns homens (hetero e homo orientados, de classe média e popular) formas, estilos, experiências, vivências de masculinidade muito distintas, complexas e até curiosas.
Não acredito, portanto que haja um novo modelo de masculinidade. Acho simplesmente que os homens, inclusive os de classe popular e não só os de classe média, estão submetidos aos mesmos vetores de mudanças e já estão revendo suas próprias experiências, inclusive porque as mulheres também se modificaram. Não dá para dizer de um padrão único nestes processos. Eles são diversos, são plurais.
Em que medida o feminismo pode ser considerado um fator importante nessa reinvenção do vínculo amoroso?
O feminismo foi e é um instrumento fundamental, um motor de transformações de vários ordenamentos e dispositivos sócio-políticos e inclusive, entre estas mudanças podemos incluir os padrões reinventados de estabelecimento dos vínculos conjugais. Retirar as mulheres de um processo sistemático de invisibilização política, social, cultural e econômica e deixar a nu o processo injusto das inúmeras formas de dominação de gênero, têm sido tarefas cruciais levadas competentemente a cabo pelo movimento feminista. A autonomização feminina propicia às mulheres abertura maior em suas escolhas. Mas cabe destacar que também o Movimento Gay tem e teve também papel importante neste processo, buscando desestigmatizar e revelar também a diversidade das expressões identitárias alternativas de gênero – homoeróticas, bi, transsexuais etc.
Às reinvenções do vínculo amoroso é possível associar maior liberdade individual? Por que?
Sem dúvida nenhuma. O individualismo é um traço típico das modernas sociedades industriais e de massa. Assim como o é a nossa busca pela liberdade. Enquanto “era dos direitos”, a modernidade nos impulsionou na busca da liberdade individual, que passou a ser vivida como um direito inalienável dos cidadãos. A autonomia reflexiva dos sujeitos pode se apresentar em várias dimensões, inclusive na esfera da intimidade. Os vínculos amorosos reinventados são tentativas ético-estéticas de associar algum grau possível e pensável de liberdade com o mundo limitado da produção de um vínculo amoroso (que necessariamente pressupõe alguma ancoragem ou estabilização).
Os novos vínculos amorosos são expressão da demanda da sociedade por transformações na vida privada? Podemos pensar que as próximas mudanças se darão muito mais no âmbito privado do que no público?
Num sentido estrito as mudanças sociais são sempre fruto das ações dos indivíduos, portanto, “privadas”. Por sua vez, os novos vínculos amorosos são a expressão de uma sociedade que é profundamente dinâmica, e que opera incessantemente por transformações. O público e o privado são categorias de espacialização binária que nos ajudam a pensar a complexidade da nossa experiência, mas as categorias não podem ser idênticas à realidade da nossa experiência. Se se entende por público a dimensão institucional da sociedade.
Que características da modernidade tardia provocaram as transformações no que a senhora chama de vínculo amoroso?
As mudanças dos vínculos amorosos estão diretamente ligadas ao processo contemporâneo de aprofundamento da individuação na modernidade tardia, onde o “eu” torna-se profundamente reflexivo. Esta individuação está acompanhada de transformações que se dão também no âmbito macrosocial. Poderia apontar para pelo menos quatro fatores que foram decisivos na direção desta mudança: as transformações provenientes do mercado de trabalho, operadas por sua vez pela revolução industrial que forjou a forma burguesa de capitalismo ao incorporar todos – inclusive mulheres e crianças – à força produtiva; as transformações político-institucionais que desaguaram no movimento pelas “diferenças” e terminaram por se constituir na luta pelos “direitos civis” e o direito das ditas “minorias” (mulheres, negros, homossexuais etc.); também por esta via, emerge e se consolida o movimento feminista, que incentivou a entrada maciça das mulheres, seja no processo de escolarização, seja em um maior acesso ao mundo público; as muitas mudanças que se operaram com o avanço científico e que foram capazes de produzir, por definitivo, a separação do exercício da sexualidade das vicissitudes da reprodução e da maternidade, finalmente possibilitando às mulheres o controle da sua reprodução, através da invenção dos contraceptivos.
Existem também mudanças na economia?
Na atualidade, penso que está sendo operado um novo conjunto não menos importante de transformações que colocam ainda mais em evidência outra transição – um processo ainda mais intenso de destradicionalização acompanhado do fenômeno da globalização – que se dá através da pressão de mudanças bem recentes: a revolução da informação, com a multiplicação das fontes, dos estímulos e das mensagens que passam a se constituir numa rede a nos envolver cotidianamente; mudanças fundamentais nas várias áreas da economia mundial provocando uma interdependência global e uma profunda reestruturação do sistema capitalista; a emergência feroz de uma sociedade de consumo que opera dentro de uma lógica social da permuta a cada dia mais sutil e ao mesmo tempo avassaladora, moldando nossa forma atual de capitalismo tardio e também o exercício de nossa cidadania; a passagem de uma ciência objetivista, positivista, neutra para uma ciência reflexiva que, inclusive, passa a incorporar no final do século XX, questões afeitas às esferas da vida privada, da intimidade e da sexualidade; a emergência de uma sociedade de risco evidenciada pela crise ecológica que o planeta está atravessando e pela criação de uma consciência a cada dia mais crítica de tal crise. E, finalmente, a experiência de uma sociedade dita “pós-moderna”, que consolida como seu cerne a noção de indivíduo, com um efeito de multiplicação dos valores, condutas, comportamentos, atitudes que passam a ser marcados fortemente por estratégias peculiares e bastante claras de estilização e estetização da existência.
Contemporânea, de Carla Rodrigues
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