segunda-feira, 21 de junho de 2010

O caos sobre rodas

Por Camila Souza Ramos e Glauco Faria

O centro de São Paulo está vazio. Vazio não, um único carro de uma montadora estrangeira passeia tranquilamente por suas ruas ao som de “At Last”, enquanto Kiefer Sutherland, que interpreta Jack Bauer, no seriado televisivo “24 horas”, dirige o carro, surpreso com a situação. Assim que resolve parar e sair do veículo, o motorista se depara com trânsito, muito barulho, muitas pessoas, enfim, o caos urbano que acompanha a capital paulista todos os dias. Frente a isso, prefere voltar ao automóvel e, dentro dele, olhar novamente as ruas vazias da cidade.

Esse comercial foi transmitido na televisão entre 2007 e 2008. A promessa é a sensação de sossego e distanciamento do ambiente exterior, como se o automóvel fosse uma espécie de retiro sobre quatro rodas que, segundo outras campanhas publicitárias, ainda faz o motorista/dono se destacar entre seus pares, atraindo olhares do sexo oposto e atiçando a inveja alheia. Não à toa os veículos automotores são um dos primeiros itens de consumo identificados com a ascensão social. Porém, as conseqüências da opção rodoviarista adotada pela sociedade são bem diferentes dos idílicos comerciais de televisão.


Mas, o automóvel não é apenas um símbolo de ascensão social ou objeto de desejo da maioria das pessoas. Sua história está ligada de forma intrínseca ao próprio desenvolvimento econômico da maior parte dos países e do próprio capitalismo. Formas de organização da produção que se tornaram tradicionais como o fordismo e o toyotismo vieram da área automotiva e serviram de modelo para o restante da indústria. No Brasil, a produção de automóveis começou a se instalar no começo dos anos 20 com a vinda de representações comerciais de montadoras internacionais. No fim da década, com a Grande Depressão, as primeiras ações para a recuperação da economia foram os incentivos ao setor automobilístico. E, na época, o país abriu as primeiras fábricas de autopeças.

Simultaneamente, surge o primeiro presidente da República que iria defender abertamente a indústria: Washington Luis, cujo lema célebre era “governar é abrir estradas”. Nessa época, mais precisamente em 1927, o Brasil tinha 93.682 automóveis e 38.075 caminhões e a primeira rodovia asfaltada seria inaugurada pelo presidente, em 1928. “Ele foi o grande difusor das virtudes do automóvel como meio de transporte e objeto de desenvolvimento econômico e social. Agia sempre em conjunto com Silvio Álvares Penteado e Antonio Prado Júnior. Faziam excursões com a cobertura da imprensa, como a primeira viagem de carro de São Paulo até Santos e até o Rio, como se fosse parte de um movimento histórico e a motorização dos veículos se daria no momento seguinte”, conta o arquiteto e doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP Marco Aurélio Lagonegro.


Além de organizar os primeiros departamentos que cuidavam da questão rodoviária no país, Washington Luis propagandeava o automóvel junto à população, mostrando as virtudes e as vantagens econômicas que estariam ao alcance de todos, estimulando o setor de autopeças de oficinas mecânicas, pequenos prestadores de serviços, repercutindo também em todas as elites regionais brasileiras. “Chega uma época em que ele diz que o transporte rodoviário precisa substituir as ferrovias. Como o transporte ferroviário é coletivo por natureza, faz certa apologia do individualismo burguês em que a própria sociabilidade se torna refém das iniciativas particulares. O Estado acaba se desincumbindo de realizar tarefas de caráter coletivo, como a manutenção do parque ferroviário que a partir da época dele passa a ser sucateada de forma acelerada”, explica Lagonegro.



Mesmo com a queda da República Velha, Vargas continua na mesma direção com uma serie de medidas legais de financiamento do setor automotivo, além de outras que também dão impulso o setor, como a criação da Petrobras. O avanço da indústria automobilística no país se solidifica no governo de Juscelino Kubitscheck, com a criação do Grupo Executivo da Indústria Automobilística (Geia), que concedeu benefícios para montadoras se instalarem em associação com empresas nacionais (por meio de joint ventures) como isenções, vantagens cambiais e incentivos de crédito do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).


Depois disso, tanto os governos da ditadura militar como os da Nova República continuaram dando generosa atenção ao setor automotivo. Não é para menos já que, em 50 anos, o número de montadoras cresceu de nove para 24, sendo que estas compram produtos das mais de 500 empresas de autopeças hoje atuantes no Brasil, segundo a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). Dados de 2009 mostram que o setor responde por 23% do PIB industrial e 5,5% do PIB brasileiro, ou seja, é um dos carros-chefes da economia tanto que, após a eclosão da crise econômica de 2008, foi um dos primeiros setores beneficiados por medidas governamentais anticíclicas.



Houve isenção do imposto sobre produtos industrializados (IPI) para os carros populares e outros modelos tiveram redução, permitindo que a indústria recuperasse o fôlego em apenas três meses. Em outros países, como os EUA, a intervenção precisou ser ainda maior, pois o pedido de concordata feito pela General Motors (GM) em junho de 2009 – considerada a terceira maior quebra de uma empresa na história dos Estados Unidos – poderia causar efeitos catastróficos na economia nacional e de outros países.

Reféns do automóvel

“Imagine se fosse criado um meio de transporte não-poluidor, um capacete teletransportador, por exemplo. Com certeza todos ficariam felizes e premiariam o inventor. Mas, vamos supor ainda que, quando fosse receber a distinção, ele revelasse que a máquina é movida a carne humana, que consome dez pessoas por dia. Ele certamente seria preso. Mas o mesmo não ocorre com os carros, todo mundo aceita.” É assim que Paulo Saldiva, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), definia em entrevista à Agência FAPESP a utilização do automóvel e sua aceitação pela sociedade.
Hoje, não é mais preciso um esforço como o de Washington Luís para convencer a sociedade a consumir carros. Além de estar integrado solidamente na estrutura produtiva do país, o sucateamento do transporte público, o próprio desenho das grandes cidades e a propaganda massiva fazem do carro uma necessidade para uns e um fetiche para outros. A capital paulista, por exemplo, absorveu 5,2% mais carros em 2009, tendo como referência o ano anterior, mais 223 mil carros nas ruas. Isso se traduz em mais trânsito, mais emissão de poluentes, mais estresse para os cidadãos e a necessidade de investimentos públicos para “enxugar o gelo” das vias de tráfego lotadas.

As cidades também passaram a ser consideradas de acordo com a necessidades dos carros e de seus motoristas. Em entrevista concedida à Fórum nº 82, a professora da USP Raquel Rolnik lembra que, em Bogotá, capital colombiana que é tida como exemplo em termos de modelo urbano, as intervenções feitas pelo poder público dão prioridade para o transporte coletivo e para o pedestre, ao contrário do que ocorre em São Paulo e em outras cidades brasileiras. “Quando visitei a cidade, vi que a urbanização da periferia começava fazendo a calçada com árvore, arborizada, iluminada, linda, ciclovia na calçada, equipamentos públicos, escola, biblioteca, etc. e só depois pavimentava a via. Pavimentação é 50% do custo total de uma urbanização”, contou. “Ninguém fala, né? As coisas que realmente a gente precisa, calçada, escola, praça, árvore, custam menos que a pavimentação. Quem precisa de pavimentação é o carro, a maior parte do povo não precisa.”

Poluição

No que diz respeito à poluição, algumas notícias podem até fazer parecer que o problema não é tão grave assim. Os últimos números divulgados pela Secretaria de Meio Ambiente do estado de São Paulo, por exemplo, apontam redução na emissão de monóxido de carbono e dióxido de enxofre, dois dos principais poluentes de veículos automotores na capital paulista. Maria Helena Martins, gerente da divisão de qualidade do ar da Companhia Ambiental Estadual do Estado de São Paulo (CETESB), explica que essa diminuição tem ocorrido há alguns anos e é conseqüência principalmente da renovação da frota de carros e dos programas de controle da qualidade do ar. Na década de 1980, um veículo novo emitia 30 gramas por quilômetro quadrado de monóxido de carbono (CO). Hoje um emite 0,3 grama.


Um deles é o Programa de Controle de Emissões Veiculares (Proconv), que obrigou a indústria automobilística a colocar catalisadores para filtrar as substâncias emitidas pela queima dos combustíveis. “Estamos em fase de estabilidade. Os ganhos são menores porque esse aumento da frota vai neutralizando [os resultados]”, diz Martins. Além dos ganhos tecnológicos, outros fatores como a inspeção veicular e o Programa de Controle da Poluição do Ar por Motociclos e Veículos Similares são citados como responsáveis pela melhora.


Mas, a perspectiva em relação à qualidade do ar já não é tão positiva. Na visão do médico Alfésio Braga, pesquisador do Laboratório Experimental da Poluição do Ar da Universidade de São Paulo (USP) essa queda no nível de poluentes pode ser revertida se mantido o ritmo de entrada de novos automóveis na metrópole paulistana. “Chegamos a uma quantidade impressionante de veículos e isso continua crescendo. Quando o nível de poluentes começou a cair, a velocidade de queda era muito maior, mas já temos projeções mostrando que se a frota continuar a aumentar a queda vai parar e vai voltar a subir. Nossa perspectiva nos cenários futuros é muito ruim”, acredita.


O último relatório da Secretaria de Meio Ambiente aponta outro perigo ainda mais urgente: o aumento da concentração de ozônio e de partículas inaláveis no último ano. Diferentemente dos outros gases poluidores, esse é formado pela reação entre gases de óxido nitroso e compostos orgânicos voláteis, que, na presença da luz solar, combinam-se com o oxigênio presente no ar e formam o ozônio. Sua concentração aumenta em épocas mais ensolaradas e, apesar de ser formado principalmente nas áreas urbanas, é carregado para um raio de até 150 quilômetros de alcance. Por ser formado na presença de luz, o gás atinge também quem mora nos andares mais altos dos prédios “A concentração de ozônio tem aumentado mesmo com os outros poluentes em queda e o controle dele é bem mais complicado”, aponta Braga. “Contudo, o que temos que temer é a mistura de poluentes. Havia uma tentativa de dar ao material particulado o papel de vilão, mas se individualmente os gases fazem mal, em conjunto são piores ainda”.


Na verdade, tais poluentes têm efeito inflamatório, podendo afetar principalmente as vias aéreas, agravando doenças respiratórias pré-existentes e reduzindo a capacidade respiratória e a capacidade para fazer exercícios. Assim, a poluição dos carros leva cada vez mais pessoas a hospitais e pronto-socorros, o que fica evidente em períodos de greve no transporte público, por exemplo, quando mais carros saem às ruas. “Quando isso acontece há aumento no transporte individual e na emissão de poluentes, causando elevação de internações hospitalares e óbitos de pessoas suscetíveis, como crianças e idosos com doenças preexistentes. Além disso, o fato de você estar dentro do veículo faz com que também esteja exposto aos gases que o veículo produz, já que não há um isolamento perfeito”, explica Braga.


De acordo com Drauzio Varella, em artigo publicado na Folha de S. Paulo, de fevereiro de 2009, “inquéritos conduzidos em diversos países industrializados demonstraram que a concentração de poluentes no ar está diretamente associada à diminuição da expectativa de vida: redução média de 13 meses na Holanda, 15 meses na Finlândia e nove meses no Canadá”. Na cidade de São Paulo, segundo Paulo Saldiva, a poluição reduz em média dois anos a expectativa de vida da população local.

Revista Fórum

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