quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Direitos humanos e marxismo




 Marco Mondaini 
 

1. Publicado em fevereiro de 1844 no primeiro e único número dos Anais Franco-Alemães, junto à Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, A Questão Judaica representa o ato de fundação da crítica marxista aos direitos humanos. Escrito por Karl Marx no ano de 1843 quando tinha apenas 25 anos de idade, o ensaio é um texto de polêmica contra o jovem hegeliano Bruno Bauer em sua análise da religião judaica [1].

Então, o jovem Marx realiza duas distinções que acabariam se tornando recorrentes dentro da tradição teórico-política por ele fundada no decorrer do século XIX: 1) emancipação política e emancipação humana; 2) direitos do homem e direitos do cidadão.

Por meio da primeira distinção, busca-se mostrar que a separação entre Estado e religião, isto é, a ultrapassagem da religião de Estado por meio da edificação de um Estado laico (a emancipação política da religião), não acarreta a libertação do ser humano em relação ao sentimento religioso (a emancipação humana da religião), da mesma forma que a diminuição do peso da propriedade privada na formação do corpo eleitoral, o amolecimento do sufrágio censitário, não torna o homem livre da propriedade privada.

O limite da emancipação política manifesta-se imediatamente no fato de que o Estado pode livrar-se de um limite sem que o homem dele se liberte realmente, no fato de que o Estado pode ser um Estado livre sem que o homem seja um homem livre [...] Portanto, o Estado pode ter se emancipado da religião, ainda que e inclusive, a grande maioria continue religiosa. E a grande maioria não deixará de ser religiosa pelo fato da sua religiosidade ser algo puramente privado (MARX, 2005: 19).

Assim, o problema da democracia conquistada por meio da emancipação política estaria localizado exatamente no fato de manter o homem como um ser alienado já que a emancipação do Estado político em relação à religião ou à propriedade não acarreta a emancipação do homem real em relação a estas duas, que são devidamente mantidas em pé no interior da sociedade civil burguesa.

Dentro desse contexto, devido à falta de radicalidade que a move, a emancipação política sempre estaria envolta por contradições não resolvidas, diferentemente da emancipação humana, única realmente capaz de transformar o homem num ser livre, já que não recorreria ao subterfúgio da transferência do problema da religião ou da propriedade do mundo público para o mundo privado, pois que, libertando o homem no campo público e mantendo-o preso privadamente, mesmo sendo eliminadas politicamente, religião e propriedade continuariam sendo pressupostos da vida social burguesa real, não sendo suprimidas dessa esfera.

A cisão do homem entre a vida pública e a vida privada, levada a cabo através da emancipação política, encontra-se na base da segunda distinção estabelecida pelo jovem Marx – aquela realizada entre os direitos do homem (droits de l’homme) e os direitos do cidadão (droits du citoyen), ou seja, por um lado, os direitos do homem burguês que não passa de uma mônada isolada dobrada sobre si mesma, os direitos do homem egoísta, os direitos do interesse pessoal, os direitos do homem separado do homem e da comunidade, enfim, os direitos do membro da sociedade civil burguesa, e, por outro lado, os direitos do membro da comunidade política, a aparência política da sociedade civil burguesa, que, como tal, se submete à essência social burguesa. 

Desse modo, para Marx, os direitos do homem acabam submetendo os direitos do cidadão à medida que o
 citoyen é declarado servo do homme egoísta, do bourgeois. Com isso, a revolução política levada a cabo pelos direitos humanos realiza a dissolução da vida burguesa sem criticá-la radicalmente, isto é, sem questionar o fato de que o cidadão na democracia política é apenas uma abstração submissa ao burguês, um ser alienado, não um ser genérico real, que não consegue ter consciência do fato de que o cidadão abstrato é a forma que mantém velado o homem egoísta.

[...] Finalmente, o homem enquanto membro da sociedade burguesa é considerado como o verdadeiro homem, como homme, distinto do citoyen por se tratar do homem em sua existência sensível e individual imediata, ao passo que o homem político é apenas o homem abstrato, artificial, alegórico, moral. O homem real só é reconhecido sob a forma de indivíduo egoísta; e o homem verdadeiro, sob a forma do citoyen abstrato” (MARX, 2005: 41).

Daí a conclusão de Marx de que, por meio da emancipação política, o homem é apenas e tão somente reduzido, de um lado, a membro da sociedade burguesa, a indivíduo egoísta independente e, de outro lado, a cidadão do Estado, a pessoa moral, cabendo à emancipação humana a tarefa histórica desalienante de fazer com que o homem individual real recupere em si o cidadão abstrato, convertendo-se assim, como homem individual, em ser humano genérico. 

Marx retomaria a polêmica contra Bruno Bauer e a análise crítica dos direitos humanos no primeiro livro escrito junto a Friedrich Engels, no ano de 1845:
 A Sagrada Família. Nessa ocasião, em conformidade com o que havia sido argumentado dois anos antes em A Questão Judaica, indica-se que o reconhecimento da livre personalidade humana, já contida nos direitos gerais do homem, nada mais seria que o reconhecimento do indivíduo egoísta burguês, o que significa, por conseguinte, que:

[...] os direitos humanos não emancipam o homem da religião, senão que lhe outorgam liberdade religiosa; não o emancipam da propriedade, senão que lhe conferem a liberdade de propriedade; não o emancipam das redes de lucro, senão que lhe outorgam a liberdade industrial (MARX, 2005: 78-9) [2].

Em suma, para Marx, os direitos humanos seriam o instrumento da conquista da emancipação política, mas, enquanto tais, não passariam de um produto da sociedade burguesa, na qual a conquista da liberdade do indivíduo implica sempre a limitação da liberdade dos outros indivíduos e não a sua realização junto a esta última.

Leia o texto completo:


 

Gramsci e o Brasil

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