quinta-feira, 24 de dezembro de 2009
O PT à esquerda
Marco Aurélio Nogueira
Circula nos ambientes políticos a informação de que o PT pretende retomar um discurso de esquerda para as próximas eleições, fato que estaria a ser demonstrado por recentes declarações e documentos do partido.
Antes de saudar o fato, que pode contribuir para que se ganhe maior clareza no jogo político, é preciso avaliar a situação. O que indica ela? A presença de um movimento para enquadrar Lula, seu governo e sua candidata à sucessão, que carregam uma imagem centrista e moderada bem consolidada? Ou o desencadeamento de uma operação para reerguer o partido e voltar a inseri-lo nos trilhos originais, de onde escapou nos últimos anos?
Enquadrar Lula é algo de que não se deveria cogitar, pois ele se tornou, com o tempo, maior que o PT. Hoje segue carreira-solo, administrada por um seleto grupo de gestores leais e por uma imponente onda de culto e adoração popular, que impede até mesmo o exercício da ponderação, proíbe críticas e lhe concede oxigênio suficiente para dispensar maiores amarras e compromissos institucionais, incluindo os partidários. Seria como imaginar, mutatis mutandis, o enquadramento de um Fidel, um Jânio ou um Prestes.
Mas partidos de esquerda são seres condenados a explicar e justificar todos os seus passos. Nesse movimento, são sistematicamente tentados a reiterar convicções de antes, com as quais foram batizados e ganharam selo de identidade. Vivem de forma dilemática: precisam renovar-se sempre, mas não conseguem fazer isso com facilidade, pois as tradições pesam e muitos de seus integrantes se recusam a seguir as novas orientações, regra geral decididas e impostas pelas cúpulas.
Dá-se algo assim com o PT, que desde o final dos anos 1990 enveredou por um caminho reformista, expulsou parte de suas alas tidas como “radicais”, chegou à Presidência da República e se converteu em expoente do universo social-democrata. Ao longo desse percurso, muitos erros foram cometidos, espocaram crises de identidade, diluições ideológicas e regressões fundamentalistas. Seria lógico, portanto, que suas direções se dedicassem a evitar a debandada dos militantes e eleitores saudosos dos velhos tempos, tanto quanto a atrair e soldar a adesão de novos seguidores.
A retomada de um discurso de esquerda pode ser vista como uma resposta a essa situação, uma estratégia direcionada mais ao público interno ampliado (militantes e eleitores) do que à sociedade. É como se as cúpulas partidárias estivessem a dizer: “Continuamos de esquerda, não nos abandonem, não esmoreçam!” — num apelo para que não se multipliquem eventuais fugas rumo ao PSOL ou à candidatura de Marina Silva, por exemplo.
É isso, mas não é somente isso. O PT também deseja se fazer presente nas campanhas de 2010, orientar seus candidatos, dar a eles combustível, recursos de combate e persuasão. Está a se movimentar para isso.
Se pensarmos em termos abstratos, típico-ideais, um partido cumpre essa meta em dois planos: olhando para as amplas massas e para o futuro.
No primeiro deles, elabora um kit de sobrevivência, um conjunto de princípios essenciais traduzidos em expressões simbolicamente eloquentes e de fácil manuseio, estilo Estado x mercado, projeto popular e democrático x projeto do Consenso de Washington, governo nacionalista e internacionalista x governo entreguista, o nosso Brasil x o Brasil deles, e assim por diante. É nesse plano que se apresentam as realizações governamentais, as virtudes do líder e de seus sucessores, os planos sórdidos dos adversários. A intenção, aqui, é organizar um guia para a ação e, acima de tudo, formar opinião. Sim, porque os eleitores precisam de formadores de opinião, mesmo quando são de esquerda.
No segundo plano, o partido elabora uma teoria da sociedade e da transformação social que julga a ela corresponder, determinando o lugar que ele próprio, o partido, e seu entorno ocupam nesse processo. É um plano sofisticado, que requer uma análise do mundo, a definição de estratégias de longo prazo e das alianças fundamentais, o reconhecimento claro dos obstáculos e das possibilidades concretas de mudança. Nele a simplificação não tem lugar e a agitação deve ser substituída pela argumentação.
Na dimensão típico-ideal, esses dois planos caminham juntos, retroalimentam-se. O partido fala para as massas com um discurso sustentado pela tradução criteriosa de uma teoria social consistente, que é corrigida e ajustada à medida que se obtém o feedback da sociedade.
Salvo avaliação mais aprofundada, o que parece estar a ocorrer no Brasil expressa uma disjunção desses dois planos, com uma concentração unilateral no primeiro deles. O PT está esquentando as turbinas para oferecer a seu “povo” o empuxo necessário para uma ação vitoriosa em 2010. Está a produzir armas de combate, agitação e identificação. Como seria mesmo de esperar.
Não há por que alguém ficar surpreso ou incomodado com isso, que é política em estado bruto, igualmente praticada pelos demais partidos. Os puros de espírito, as almas mais sensíveis poderão torcer o nariz para as acusações infundadas, os autoelogios extremados e passionais, as manobras exclusivamente para prejudicar inimigos e adversários. Terão de entender que política também é feita disso.
É feita disso, mas não só disso. Se o PT se julga ou pretende ser um partido de esquerda de fato, não pode permanecer estacionado no plano da agitação, do discurso fácil para as massas. Precisa ir além e acoplar a esse plano um segundo plano, de elaboração teórica, produção cultural e projeção do futuro, como, de resto, se espera que façam todos os demais partidos. Sem isso ficará no meio do caminho e não se completará como partido de esquerda. Poderá até ter sucesso e vencer em 2010, mas não contribuirá para integrar a sociedade, convencê-la da necessidade de uma reforma social e fornecer-lhe algo mais denso e duradouro do que um sonho para sonhar.
Gramsci e o Brasil
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