quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Município de BH contra o direito à moradia: Análise do Projeto de Lei Municipal n. 728/2009



Henrique Napoleão Alves *

Desde o advento da Constituição de 1988, o direito à moradia foi considerado, a princípio, um direito constitucional implícito decorrente da dignidade da pessoa humana. Em um segundo momento, foi incluído de forma expressa no texto constitucional pela Emenda n. 26/2000, restando no rol de direitos sociais do art. 6º da Lei Maior.

Sob a justificativa de implementar esse direito, o governo federal instituiu, através da Lei nº 11.977/09, um amplo programa de viabilização do acesso à moradia, Programa Minha Casa Minha Vida, por meio de subvenção econômica, regulamentação do sistema de amortização dos pagamentos, redução no valor das custas e emolumentos e normatização da regularização fundiária.

Por força do art. 182 da Constituição, cabe aos municípios promover o desenvolvimento urbano, o que certamente abarca a questão do acesso à moradia.

O Executivo Municipal de Belo Horizonte, encabeçado pelo prefeito Sr. Márcio Lacerda, encaminhou, em agosto de 2009, o Projeto de Lei Municipal n. 728/2009 (PL 728/2009), que supostamente teria como finalidade desenvolver uma política habitacional de âmbito local, na esteira do art. 182, dando "a necessária autorização legislativa para que o Município aporte recursos e doe áreas de propriedade do município para a execução do Programa Minha Casa Minha Vida, nos moldes concebidos pela norma federal [i.e., pela Medida Provisória n. 459/2009]" (trecho retirado do relatório sobre o PL 728/2009, da Comissão de Legislação e Justiça da Câmara dos Vereadores de Belo Horizonte).

Esse projeto de lei foi, pois, aprovado pelas diferentes comissões da Câmara dos Vereadores de Belo Horizonte, incluso pela Comissão de Legislação e Justiça, que, em seu relatório, após discorrer muito resumidamente sobre a importância do projeto na efetivação do direito à moradia e de forma mais detida sobre seus aspectos tributários, concluiu pela "constitucionalidade, legalidade e juridicidade do Projeto de Lei 728/09".

No entanto, o PL 728/09 incorre em várias inconstitucionalidades e ilegalidades, não só quando trata da doação de propriedades do município ou da isenção tributária para os industriais da construção civil participantes do programa, mas, em especial, quando limita o acesso ao programa às famílias que não tiverem "invadido" áreas de propriedade pública ou privada (ver, e.g., parecer sobre essas questões feito pelo Dr. José Luiz Quadros de Magalhães, Joviano Mayer, frei Gilvander e outros).

É sobre esse último ponto que quero discorrer, porque é precisamente aqui que fica mais claro como o PL 728/09, longe de implementar o direito à moradia, fere esse direito de morte.

Sem embargo, em seu art. 13, o PL 728/09 afirma que: "As famílias que invadirem áreas de propriedade pública ou privada a partir da data de publicação desta Lei não serão contempladas pela mesma".

Em primeiro lugar, esse artigo estabelece uma sanção correspondente a uma conduta penalmente tipificada, i.e., a do esbulho possessório: se "as famílias" forem "invasoras", não podem fazer parte do Programa! Aqui temos um claro desrespeito ao art. 22 da Constituição da República, que estabelece a competência privativa da União legislar sobre matéria de direito penal.

Em segundo lugar, ao não excetuar as ocupações e assentamentos informais, o art. 13 do PL 728/09 os caracteriza simplesmente como "invasões", criminalizando os assentados, como se meros "invasores" fossem. Contudo, ocupações pacíficas que visam o cumprimento da função social da propriedade (art. artigo 5º, inciso XXIII, da Constituição) não podem ser confundidas o tipo penal que criminaliza a invasão de bem imóvel alheio, com violência a pessoa ou grave ameaça, ou mediante concurso de mais de duas pessoas e para o fim de retirar da posse do legítimo possuidor (art. 161 do Código Penal). Nos assentamentos informais, o que se tem, de uma forma geral, é a ocupação de bens imóveis que foram negligenciados pelo possuidor formal, não havendo falar, pois, em esbulho possessório.

Em terceiro lugar, e o mais grave: esse dispositivo vai na contramão da legislação federal sobre o Programa Minha Casa Minha Vida, de tratados de direitos humanos e, em última instância, do próprio direito constitucional à moradia.

O Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), que é um dos principais tratados internacionais de direitos humanos, protege o direito humano à moradia adequada em seu art. 11, § 1º. Ao interpretar essa norma em seu Comentário Geral No. 04/1991, o Comitê sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU (CDESC), órgão responsável pelo monitoramento e interpretação do PIDESC, afirmou que todo Estado que ratifica esse tratado passa a ter a obrigação de todas as medidas necessárias para a implementação integral do direito à moradia, devendo dar prioridade ao acesso à moradia adequada às pessoas vivendo em condições desfavoráveis e aos grupos vulneráveis, dentre eles a população de baixa renda que ocupa os assentamentos informais.

O Brasil, a exemplo de quase todos os países do mundo, ratificou esse tratado, que passou a ter vigência no nosso ordenamento como lei com status supralegal, i.e., abaixo da Constituição e acima de todo o resto (Cfr. RE 349703/RS, Tribunal Pleno, Min. Rel. Carlos Britto, DJe-104 publ. 05/06/2009). Por isso, o direito humano à moradia adequada tal qual afirmado no PIDESC deve ser visto como densificação do direito constitucional à moradia.

Na esteira do PIDESC, a Lei Federal do Programa Minha Casa Minha Vida (Lei nº 11.977/09) prevê que terão prioridade como beneficiários do programa justamente os moradores de assentamentos irregulares ocupados pela população de baixa renda.

Ora, ao impedir as famílias que estejam em assentamentos informais de terem acesso ao Programa Minha Casa Minha Vida e ao criminalizá-las, o PL 728/09 vai claramente contra esses diplomas legais, e, nessa antinomia, é o PL 728/09 quem leva a pior, pois tem status legal inferior.

Não obstante todo o exposto, infelizmente esse projeto caminha a passos largos rumo à sua aprovação com a redação atual do seu art. 13. Caso isso se confirme, a lei municipal resultante padecerá de injuridicidade assente, e a Prefeitura de Belo Horizonte poderá ser responsabilizada, inclusive em foros internacionais, por violação clara aos direitos humanos dos incontáveis belorizontinos ocupantes de assentamentos informais.


Adital

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