Cada vez mais a operação vai me lembrando o Manual de Desordens Mentais. Sugiro, então, incluir novas patologias — como o Transtorno de Acumulação e o messianismo jurídico
Priscila Figueiredo
Já tinha lido algumas semanas atrás que o processo contra o reitor de Santa Catarina que se suicidou tem 817 páginas e nenhuma prova, mas a intervenção do último domingo, que acabou por impedir que se resgatasse Lula da masmorra da Polícia Federal em Curitiba, recrudesceu meu interesse pela Lava Jato e o alienista-chefe, Sérgio Moro, este que sobe nas tamancas quando descobre um petista solto sem tornozeleira.
Embora criada a partir de um modelo italiano, a operação acabou por plasmar uma fórmula própria na síntese que fez entre a experiência local, a prisão sem o trânsito em julgado, responsável por mais de 40% da população carcerária, e o modelo europeu, cosmopolita, a operação Mani pulite, que por sua vez, na caça a políticos corruptos, também fez uso do mesmo expediente da prisão preventiva já comum entre nós. Como nos foi explicado antes por teoria, em 2004, o que então viria a dar base para a prática anos depois do nosso mais famoso juiz de 1ª instância: “isolamento na prisão era necessário para prevenir que suspeitos soubessem da confissão de outros (…). Não se prende com o objetivo de alcançar confissões. Prende-se quando estão presentes os pressupostos de decretação de uma prisão antes do julgamento”[1]. Mas então por que buscar lá fora o que já fazíamos? Nesse caso teria havido um “desrecalque localista”, para usar a expressão que um mestre da crítica literária entre nós cunhou ao analisar as vanguardas artísticas no Brasil dos anos 20 e aqui aplicamos para entender, feitas as adaptações necessárias, uma vanguarda jurídica: o procedimento italiano nos autorizou a usar em relação agora a outra classe de gente o que sempre fizemos com as classes socialmente inferiores, especialmente com os negros e negras pobres. Descobrimos mais uma vez a nós mesmos por meio do outro em que nos perdemos… A maneira como isso tem sido feito, porém, nos leva a perguntar se se trata de democratização do procedimento ou higienismo político por meio de uma técnica, que remonta à escravidão, de higienismo social. Talvez, e esta é uma a hipótese, pois me falta conhecimento suficiente da matéria, a operação italiana tenha procurado combater a corrupção na política enquanto a nossa, ao menos a partir de certo momento, a política, ou certos grupos políticos, através da corrupção. Ocorre que o métodos de exceção do encarceramento cautelar, já presentes no original, apenas favoreceram a mudança de patamar em que eram usados, potencializados com a produção em massa de delatores – é verdade que muitos deles liberados tão logo prestem seu serviço, pois o fim é, como disse certa vez um procurador, chegar aos peixes grandes por meio dos peixes pequenos, e talvez na verdade já se tenha, apesar de a operação continuar, chegado àquele que é o verdadeiro peixe-rei.
Cada vez mais a Lava-Jato vai me lembrando o DSM, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Desordens Mentais, que, em ampliação constante a cada edição (agora está na quinta), ameaça colocar todos atrás da grade de alguma disfunção psiquiátrica. As semelhanças espantam: ambos teriam começado a engatinhar com uma intenção razoável, depois se deformaram por completo (no caso da Lava-jato, a razão está ainda por esclarecer de modo mais satisfatório..), no caso do DSM, não só pelo falso silogismo ou pelas “piruetas lógicas”, como diz uma inteligente jornalista e médica, da teoria segundo a qual a depressão deriva de desequilíbrios químicos, como pela verdadeira luta por reconhecimento e identidade travada por profissionais de uma área em que diagnósticos sempre padeceram de ser comparativamente mais carentes de fundamentação científica em relação às demais áreas da Medicina, e essa luta acabou apenas por ser reforçada pela aliança com interesses um tanto… patológicos da indústria farmacêutica[2]; um sofre de sanha punitivista e se baseia em delações; outro, de inflação diagnóstica e se serve de resultados em experimentos que teriam vindo a confirmar os pressupostos do início da pesquisa, sendo isolados e mesmo guardados a sete chaves todos os demais resultados indesejados que contrariavam as premissas iniciais (“desse modo, em vez de desenvolver um medicamento para tratar uma anormalidade, uma anormalidade foi postulada para se adequar a um medicamento”[3]); um vai fazendo réus onde lhe convém, o outro, doentes em toda parte e idade (de criança de menos de 3 anos a gente cujo luto passa do 16º dia), pois é o que lhe convém. Mas o mais importante: ambos têm muitas convicções e poucas provas científicas, e fizeram como fazem estragos ainda insuficientemente mensurados. Aliás: como conseguiram medir que passando do 16º dia de luto a pessoa é um depressivo, em vez de supor que se trata de alguém curtindo uma tristeza não apenas justa, mas culturalmente – até bem pouco tempo atrás pelo menos – esperada? Não o é agora por quê? O luto não condiz mais com o dispositivo social? Era transgressor ou suspeito não observá-lo, como bem nos conta a figura da “viúva alegre”; agora a conduta interditada seria respeitá-lo em todas as suas fases, de modo que só me resta esperar que o interditado continue a ser tão sedutor como sempre foi. Porque faz a máquina e o trabalho 24/7 pararem por um tempinho, o velho e universal recolhimento fúnebre, praticado, sob variadas formas e rituais, no Ocidente e no Oriente, na riqueza e na pobreza, passa a ser agora quase ato de delinquente.
Há uma divertida seção no catálogo chamada Transtorno do Controle dos Impulsos Não Classificados em Outro Local… Parece capítulo do Tristam Shandy, mas também podia figurar num planeta do Pequeno Príncipe, no 1984, ou ainda em “Dr. Mabuse”, “Laranja mecânica”, “Blade Runner”, sei lá. Tenho esperança, no entanto, que o próximo DSM, que seria o DSM-6, venha a incluir entre as patologias listadas (concebidas por luminares iluministas ou futuristas) o messianismo jurídico (que poderia entrar no capítulo das manias ou psicoses). Esse manual taxionômico – que não para de crescer e, tão insatisfeito como o Fausto, não dá sinais de que vá dizer em algum momento, como o doutor no entanto esperava depois do pacto com o diabo, “detém-te, és tão belo!” – poderia se converter numa nova Enciclopédia, mas das perversões e delírios do capitalismo, as de sempre e as novas, pois, além de sugerir novas rubricas classificatórias, poderíamos aproveitar as já existentes, como o Transtorno de Acumulação. Como poderiam ser compreendidas sob essa denominação apenas aquelas pessoas que, por exemplo, acumulam lixo ou gatos e cachorros em sua própria casa, e não aquelas que concentram, de forma inédita, aliás, propriedade fundiária, imobiliária, riqueza nacional, títulos etc.? O que é mais preocupante — ter 40 cachorros no próprio apartamento ou alguns terem metade do PIB de um país? Assim, defendo que a fúria acumulativa do poder econômico possa ser considerada da perspectiva do Manual como uma desordem psiquiátrica de gravidade extrema, pois, se não faz sofrer pais e amigos próximos (como o fazem aqueles que empilham quinquilharias e papéis velhos), que antes os estimulam, a esses entesouradores, pois muitas vezes também sofrem do mesmo distúrbio, submetem a maior parte da sociedade a uma grande provação, quando não a destroem. Evidentemente os grandes laboratórios teriam de dar o bracinho a torcer e acatar o diagnóstico no qual estariam incluídos; por alguma coerência passariam a ser ver como doentes, mas no cálculo de custo e benefício eles sairiam ganhando, pois todos os outros setores do capitalismo, inclusive o financeiro e rentista, seriam obrigados a reconhecer sua própria imagem no espelho, isto é, acatar a exposição da própria morbidez (e então se medicar) naquele que é o código dos códigos, pois o Manual é um dos únicos hoje em dia levados a sério, de alto a baixo, tendo vindo na verdade a tomar o lugar que um dia fora das Tábuas de Moisés. A vantagem destas é que eram breves e soletradas por toda a comunidade em que passaram a ser referência, enquanto a enormidade dessa bíblia médica e o jargão de que faz uso limitam a sua difusão apenas entre os doutores da Lei, que a aplicam, no entanto, a todos que se confiam a sua sabedoria – e todos que se confiam a sua sabedoria são quase todos. Desconfio que o verdadeiro RH, ou Departamento de Recursos Humanos, do mundo do trabalho seja na verdade o DSM… Sob sua lista de desordens mentais o voluntariado do capitalismo deve ler a contrapelo uma lista de ordenamentos e regras de conduta. E é bom, além de mais produtivo, já ir adestrando as crianças.
À especulação financeira também poderia ser administrada terapia eficaz, tanto mais que o vício do jogo constitui uma compulsão há muito conhecida, ainda que agora num nível jamais concebido, como em Wall Street; esta, aliás, incluindo-se aí as agências de rating, poderia ter seus edifícios já assépticos convertidos em clínicas (devidamente gradeadas, mas onde os pacientes teriam o tratamento conveniente e, claro, humano, como sempre tem de ser, pois desumanidade também haverá de ser morbidez). Os conferencistas e quase todos os participantes do G20 em Davos poderiam ficar aí mesmo, não descer mais para a Terra, e Davos voltaria a ser o que foi no passado, uma montanha mágica para tratamento de doentes (antes de tuberculose, agora de transtornos mentais). O problema é que a tirania do DSM, mesmo desviada para fins anticapitalistas, teria também, por força da lógica, de ser descrita nosologicamente. Esse seria o momento a que todo dialético digno do nome não pode se furtar, o momento da negação da negação, tal como, no conto “O alienista”, de Machado de Assis, o personagem-título acaba por trancafiar a si mesmo. O maníaco da classificação teria ele mesmo de se por sob tratamento, noblesse oblige, mas nessa altura já estarão devidamente isoladas da sociedade todas as forças antissociais: grandes capitalistas, jogadores do mercado, higienistas e fascistas, religiosos da estupidez, mitônomos irrefreáveis (os produtores de fake-news, os de sempre, gestados no interior da imprensa corporativa sob o comando de seus diretores e secretários de redação, e os atuais, alastrados como células terroristas). E, claro, juízes que na dúvida fazem todos réus, psiquiatras que na dúvida tornam todos doentes…
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[1] Sérgio Fernando Moro, “Considerações sobre a operação mani pulite”, revista CEJ, Brasília, n.26, jul/set 2004, p.58 (disponível em https://www.conjur.com.br/dl/artigo-moro-mani-pulite.pdf).
[2] Marcia Angell, “A epidemia de doença mental”, revista Piauí, agosto de 2011, n.59.
[3] id., ib.
Outras Palavras
Cada vez mais a Lava-Jato vai me lembrando o DSM, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Desordens Mentais, que, em ampliação constante a cada edição (agora está na quinta), ameaça colocar todos atrás da grade de alguma disfunção psiquiátrica. As semelhanças espantam: ambos teriam começado a engatinhar com uma intenção razoável, depois se deformaram por completo (no caso da Lava-jato, a razão está ainda por esclarecer de modo mais satisfatório..), no caso do DSM, não só pelo falso silogismo ou pelas “piruetas lógicas”, como diz uma inteligente jornalista e médica, da teoria segundo a qual a depressão deriva de desequilíbrios químicos, como pela verdadeira luta por reconhecimento e identidade travada por profissionais de uma área em que diagnósticos sempre padeceram de ser comparativamente mais carentes de fundamentação científica em relação às demais áreas da Medicina, e essa luta acabou apenas por ser reforçada pela aliança com interesses um tanto… patológicos da indústria farmacêutica[2]; um sofre de sanha punitivista e se baseia em delações; outro, de inflação diagnóstica e se serve de resultados em experimentos que teriam vindo a confirmar os pressupostos do início da pesquisa, sendo isolados e mesmo guardados a sete chaves todos os demais resultados indesejados que contrariavam as premissas iniciais (“desse modo, em vez de desenvolver um medicamento para tratar uma anormalidade, uma anormalidade foi postulada para se adequar a um medicamento”[3]); um vai fazendo réus onde lhe convém, o outro, doentes em toda parte e idade (de criança de menos de 3 anos a gente cujo luto passa do 16º dia), pois é o que lhe convém. Mas o mais importante: ambos têm muitas convicções e poucas provas científicas, e fizeram como fazem estragos ainda insuficientemente mensurados. Aliás: como conseguiram medir que passando do 16º dia de luto a pessoa é um depressivo, em vez de supor que se trata de alguém curtindo uma tristeza não apenas justa, mas culturalmente – até bem pouco tempo atrás pelo menos – esperada? Não o é agora por quê? O luto não condiz mais com o dispositivo social? Era transgressor ou suspeito não observá-lo, como bem nos conta a figura da “viúva alegre”; agora a conduta interditada seria respeitá-lo em todas as suas fases, de modo que só me resta esperar que o interditado continue a ser tão sedutor como sempre foi. Porque faz a máquina e o trabalho 24/7 pararem por um tempinho, o velho e universal recolhimento fúnebre, praticado, sob variadas formas e rituais, no Ocidente e no Oriente, na riqueza e na pobreza, passa a ser agora quase ato de delinquente.
Há uma divertida seção no catálogo chamada Transtorno do Controle dos Impulsos Não Classificados em Outro Local… Parece capítulo do Tristam Shandy, mas também podia figurar num planeta do Pequeno Príncipe, no 1984, ou ainda em “Dr. Mabuse”, “Laranja mecânica”, “Blade Runner”, sei lá. Tenho esperança, no entanto, que o próximo DSM, que seria o DSM-6, venha a incluir entre as patologias listadas (concebidas por luminares iluministas ou futuristas) o messianismo jurídico (que poderia entrar no capítulo das manias ou psicoses). Esse manual taxionômico – que não para de crescer e, tão insatisfeito como o Fausto, não dá sinais de que vá dizer em algum momento, como o doutor no entanto esperava depois do pacto com o diabo, “detém-te, és tão belo!” – poderia se converter numa nova Enciclopédia, mas das perversões e delírios do capitalismo, as de sempre e as novas, pois, além de sugerir novas rubricas classificatórias, poderíamos aproveitar as já existentes, como o Transtorno de Acumulação. Como poderiam ser compreendidas sob essa denominação apenas aquelas pessoas que, por exemplo, acumulam lixo ou gatos e cachorros em sua própria casa, e não aquelas que concentram, de forma inédita, aliás, propriedade fundiária, imobiliária, riqueza nacional, títulos etc.? O que é mais preocupante — ter 40 cachorros no próprio apartamento ou alguns terem metade do PIB de um país? Assim, defendo que a fúria acumulativa do poder econômico possa ser considerada da perspectiva do Manual como uma desordem psiquiátrica de gravidade extrema, pois, se não faz sofrer pais e amigos próximos (como o fazem aqueles que empilham quinquilharias e papéis velhos), que antes os estimulam, a esses entesouradores, pois muitas vezes também sofrem do mesmo distúrbio, submetem a maior parte da sociedade a uma grande provação, quando não a destroem. Evidentemente os grandes laboratórios teriam de dar o bracinho a torcer e acatar o diagnóstico no qual estariam incluídos; por alguma coerência passariam a ser ver como doentes, mas no cálculo de custo e benefício eles sairiam ganhando, pois todos os outros setores do capitalismo, inclusive o financeiro e rentista, seriam obrigados a reconhecer sua própria imagem no espelho, isto é, acatar a exposição da própria morbidez (e então se medicar) naquele que é o código dos códigos, pois o Manual é um dos únicos hoje em dia levados a sério, de alto a baixo, tendo vindo na verdade a tomar o lugar que um dia fora das Tábuas de Moisés. A vantagem destas é que eram breves e soletradas por toda a comunidade em que passaram a ser referência, enquanto a enormidade dessa bíblia médica e o jargão de que faz uso limitam a sua difusão apenas entre os doutores da Lei, que a aplicam, no entanto, a todos que se confiam a sua sabedoria – e todos que se confiam a sua sabedoria são quase todos. Desconfio que o verdadeiro RH, ou Departamento de Recursos Humanos, do mundo do trabalho seja na verdade o DSM… Sob sua lista de desordens mentais o voluntariado do capitalismo deve ler a contrapelo uma lista de ordenamentos e regras de conduta. E é bom, além de mais produtivo, já ir adestrando as crianças.
À especulação financeira também poderia ser administrada terapia eficaz, tanto mais que o vício do jogo constitui uma compulsão há muito conhecida, ainda que agora num nível jamais concebido, como em Wall Street; esta, aliás, incluindo-se aí as agências de rating, poderia ter seus edifícios já assépticos convertidos em clínicas (devidamente gradeadas, mas onde os pacientes teriam o tratamento conveniente e, claro, humano, como sempre tem de ser, pois desumanidade também haverá de ser morbidez). Os conferencistas e quase todos os participantes do G20 em Davos poderiam ficar aí mesmo, não descer mais para a Terra, e Davos voltaria a ser o que foi no passado, uma montanha mágica para tratamento de doentes (antes de tuberculose, agora de transtornos mentais). O problema é que a tirania do DSM, mesmo desviada para fins anticapitalistas, teria também, por força da lógica, de ser descrita nosologicamente. Esse seria o momento a que todo dialético digno do nome não pode se furtar, o momento da negação da negação, tal como, no conto “O alienista”, de Machado de Assis, o personagem-título acaba por trancafiar a si mesmo. O maníaco da classificação teria ele mesmo de se por sob tratamento, noblesse oblige, mas nessa altura já estarão devidamente isoladas da sociedade todas as forças antissociais: grandes capitalistas, jogadores do mercado, higienistas e fascistas, religiosos da estupidez, mitônomos irrefreáveis (os produtores de fake-news, os de sempre, gestados no interior da imprensa corporativa sob o comando de seus diretores e secretários de redação, e os atuais, alastrados como células terroristas). E, claro, juízes que na dúvida fazem todos réus, psiquiatras que na dúvida tornam todos doentes…
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[1] Sérgio Fernando Moro, “Considerações sobre a operação mani pulite”, revista CEJ, Brasília, n.26, jul/set 2004, p.58 (disponível em https://www.conjur.com.br/dl/artigo-moro-mani-pulite.pdf).
[2] Marcia Angell, “A epidemia de doença mental”, revista Piauí, agosto de 2011, n.59.
[3] id., ib.
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