Valério Arcary
O cenário é ruim. Um candidato neofascista, Jair Bolsonaro, pode chegar ao segundo turno das eleições presidenciais, pela primeira vez, desde o fim da ditadura militar. A bandeira da “intervenção militar” adquiriu influência real. Ou seja, a situação é grave. Mas as eleições estão, totalmente, indefinidas.
Uma questão que se coloca para todos nós é saber se é ou não necessário discutir com reacionários. Como devemos fazer a luta política? Será que vale a pena? Vale a pena. Podemos vencer na luta ideológica porque nossos argumentos são mais fortes.
É necessário dialogar com milhões de pessoas que estão influenciadas por ideias reacionárias. É necessário por três razões principais. Primeiro, porque eles são muitos. Segundo, porque não são poucos os trabalhadores e jovens influenciados pelas suas ideias. Terceiro, porque é na discussão que nos educamos, temperamos, e fortalecemos a nós mesmos. Insistir que é necessário não quer dizer que é fácil. Não é fácil. Não é uma experiência divertida. É uma dureza. Trata-se de uma luta que exige paciência, autocontrole, firmeza, portanto, dedicação.
Reacionários são conservadores que defendem a preservação da ordem atual. Esse é o seu calcanhar de Aquiles. Porque acreditam que o maior problema do Brasil é a desonestidade, a delinquência e a corrupção. Têm uma percepção de que a sociedade está dividida entre as pessoas do bem e os outros. Defendem que o capitalismo funciona, as regras são corretas, mas as pessoas decepcionam. Defendem que há muitos direitos e poucos deveres. Devemos dizer o contrário. Há muitos deveres e poucos direitos. As regras são injustas. Há que mudar as regras, e defender as pessoas.
Precisamos entender a mentalidade de um reacionário. Um reacionário é alguém que está convencido que as pessoas são, naturalmente, desiguais. Portanto a igualdade social seria impossível. Pior, seria disfuncional. Seria uma distopia monstruosa. Sendo alguns mais corajosos, inteligentes e até generosos do que outros, a luta contra a desigualdade social premiaria a mediocridade, sacrificaria o talento, estimularia a preguiça. O socialismo seria a tirania da chatice, da caretice, do tédio e, no limite, a destruição da liberdade. Para um reacionário, liberdade e igualdade são valores incompatíveis. Ou uma, ou outra. Porque o direito à liberdade seria o direito a lutar pelo enriquecimento, a propriedade privada, a herança. E a luta pela igualdade social seria contraditória com a busca da felicidade pessoal.
Nós respondemos que a luta pela felicidade pessoal é justa. Mas não é admissível que a felicidade de um seja feita ao custo do martírio de muitos. Não é aceitável que a liberdade incondicional de poucos legitime a tirania da maioria. Ser de esquerda não é defender que as pessoas têm capacidades iguais. Felizmente, não têm, e o que prevalece na condição humana é a diversidade. Temos habilidades variadas. O que fundamenta uma visão de esquerda é a defesa de que as necessidades humanas mais intensas são iguais. No estágio de desenvolvimento histórico em que vivemos não há mais razão alguma para que haja tanta gente condenada à miséria. Não há razão alguma para que não haja oportunidades para todos. Ser de esquerda significa defender que todas as pessoas devem ter direitos e deveres iguais.
Portanto, para a esquerda igualdade e liberdade são valores indivisíveis. Quanto maior for a igualdade, maior será a liberdade, e viceversa. Não pode haver liberdade entre desiguais. Só seremos livres, quando todos forem, igualmente, livres. Poder e dinheiro é que são indivisíveis. Quando alguns poucos, ou 1%, controlam a riqueza controlam, também, o poder. Tanta riqueza nas mãos de tão poucos não se explica pelo merecimento, aptidão, valor ou mérito, mas pela exploração da maioria.
A desigualdade social não é o motor de progresso, de inovação, de prosperidade. A ideia de que as pessoas não estariam dispostas a fazer nada, se não tivessem apavoradas pelo medo da miséria ou da repressão não tem nenhum fundamento histórico algum. As maiores mentes da história não criaram as suas obras para enriquecer. O dinheiro não é o único estímulo. Há outros incentivos, impulsos, inspirações que animam a mente humana. A competição desumana, a insegurança generalizada, a injustiça absurda ameaçam a vida civilizada e são as sementes da guerra.
Reacionários são céticos sobre a condição humana. Estão convencidos que a natureza humana é pouco animadora. Um reacionário acredita que a maioria das pessoas é, incorrigivelmente, egoísta, calculista, e conflitiva. Seríamos, naturalmente, rivais uns dos outros, portanto, irremediavelmente, adversários. Observam, desenganados, como as antipatias, as invejas, os rancores, e até os ódios dilaceram as relações humanas. Em consequência, consideram razoável que cada um deva se preocupar, essencialmente, com os seus interesses, ou dos seus familiares. Ninguém mais importa. O Estado deve se dedicar a preservar a ordem. Por isso, a histeria ingênuo com o papel das Forças Armadas. Querem segurança. Depois é a “luta livre” no espaço do mercado. Essas ideias simples têm muito peso na sociedade. Não é fácil para um socialista dialogar, argumentar, persuadir, enfim, conversar com eles.
Esta visão do mundo é incompatível com a ideia chave do socialismo. O valor moral que inspira o socialismo é a esperança de que a solidariedade deve ser o parâmetro que organiza a sociedade. Esta barreira na discussão é um perigo. Há dois erros que não deveríamos cometer diante dessa barreira.
O primeiro é desistir da conversa. Esse perigo é o maior de todos. O projeto socialista é muito minoritário na sociedade brasileira. Na verdade, a defesa do socialismo é marginal. Existe mal estar com a injustiça. Existe alguma audiência para a defesa de uma regulação do capitalismo com a introdução de reformas progressivas, civilizatórias, que estabeleça limites para a superexploração, e garanta uma redução da desigualdade social. Mas a necessidade de ir além do capitalismo é compreendida por uma parcela muito pequena de trabalhadores e jovens. E a marginalidade gera uma mentalidade, uma cultura, um modo de vida. Estamos tão em minoria que somos, até involuntariamente, sectários. Preferimos conversar com aqueles que pensam como nós. Encontramos conforto emocional na aprovação de nossas ideias.
O segundo erro é argumentar que a natureza humana é, naturalmente, altruísta, gentil, solidária. Infelizmente, é mais complicado. Nós somos plásticos. Isso quer dizer que nos adaptamos, nos ajustamos, nos transformamos. Se encorajados a ser cruéis podemos agir com maldade. Se encorajados a agir com grandeza podemos ser bondosos. São as relações sociais que determinam quais são os estímulos materiais, morais, e culturais dominantes. Quando os estímulos favorecem a fraternidade, a imensa maioria das pessoas age de forma decente.
A queda de Dilma Rousseff não foi somente uma derrota política do lulismo, foi uma vitória social da burguesia. Diante de derrotas há dois perigos. Subestimá-las ou exagerá-las. É preciso ter serenidade, frieza e firmeza. É preciso avaliar, medir, e calibrar com o máximo equilíbrio a relação social de forças. Há diferentes tipos de derrotas. E elas geram distintos tipos de situações adversas. Há graduações. Elas podem ser, por exemplo, defensivas, reacionárias, contrarrevolucionárias. Mantenhamos a lucidez. A situação permanece desfavorável, mas o que aconteceu não foi uma derrota histórica dos trabalhadores, como em 1964.
Derrotas históricas acontecem quando uma geração é abatida pela desmoralização, e perde a confiança em si mesma. Sim, há desânimo e desalento à nossa volta. Mas ainda há reservas intactas nas classes populares. A jovem classe trabalhadora brasileira é maior, mais concentrada e mais instruída que a geração dos seus avós. A força social de impacto de sua luta sobre o conjunto do povo oprimido poderá, em algum momento, entrar em cena. Na atual conjuntura está difícil mobilizar, porque prevalece a incerteza sobre a capacidade de vencer. Mas o proletariado brasileiro é um gigante social. Uma esquerda que pretenda ser uma nova esperança não pode deixar de apostar nesta perspectiva.
Há, portanto, um paradoxo nesta campanha eleitoral. A vida no Brasil, depois de dois anos de governo Temer, está a cada dia pior. O dilema dos reacionários nesta eleição é que não podem defender o governo Temer, mas todos os candidatos da direita, inclusive Bolsonaro, defendem “mais do mesmo”. Defendem mais ajuste fiscal, mais privatizações na saúde e educação, mais “flexibilizações” da legislação trabalhista e ambiental, mais contrarreformas, como a da Previdência social. Isso cria um problema. Candidatos defendendo esta plataforma, aberta e honestamente, não podem vencer as eleições. Terão que mentir abertamente. Mentir em campanhas eleitorais é possível, como sabemos bem. Mas é perigoso mentir demais porque há o “dia seguinte”.
Como chegamos até aqui? Desemprego em alta; fortalecimento e nacionalização das organizações criminosas; salários em queda, inclusive daqueles com escolaridade superior; inflação nos serviços de educação, saúde e segurança consumidos pela classe média; retorno de epidemias; escândalos de corrupção; operação Lava Jato. Foi o giro político à direita de frações da classe média, durante os quatro anos agravamento da contração econômica, que deu visibilidade a Bolsonaro. As propostas”bombásticas” radicais seduzem hoje um em cada cinco eleitores.
Podia não ter sido assim, se a classe trabalhadora tivesse entrado em cena demonstrando a gigantesca força social da maioria pobre e oprimida, como fez nos anos oitenta. Mas ela não entrou. Os bastiões mais organizados permaneceram perplexos diante do desmoronamento do governo Dilma Rousseff. Quem entrou em cena foi a classe dominante. Eles são somente 1%, mas foram capazes de colocar em movimento o desespero da classe média, e demonstrar nas ruas força social suficiente para sustentar o impeachment.
Bolsonaro “montou” no cavalo selado que passou na sua frente. Ele foi, somente, instrumental para a burguesia conseguir construir o golpe parlamentar. Bolsonaro permaneceu marginal durante décadas repetindo as mesmas barbaridades que diz hoje. Encontrou audiência porque a classe média se deslocou à direita, quando a crise econômica chegou, depois de treze anos do PT à frente do governo. É uma ilusão de ótica do relógio da história pensar o contrário.
Existe sempre uma interação dialética entre os deslocamentos das relações de força entre as classes, e as oscilações de influência das superestruturas políticas. A luta política e eleitoral exige hoje da esquerda, em condições adversas, defensivas, uma maior capacidade de resposta. Essa resposta não depende somente de bons argumentos na luta de ideias. A luta ideológica tem o seu lugar. Mas é na luta social que as relações de força podem ser alteradas, como vimos na greve dos caminhoneiros. A esquerda depende, em primeiro lugar, da capacidade de colocar as massas populares em movimento. Porque a esquerda representa a ideia de que a luta coletiva pode mudar a vida. Milhares na rua fazem tudo balançar. Por isso é que as ações do MTST são exemplares. Porque, em plena campanha eleitoral, em condições difíceis para a mobilização, as ocupações de luta pela moradia não param. Por isso é que o próximo dia 10 de agosto tem importância central.
Não obstante, há um lugar para a luta ideológica na disputa política. Assim como existe uma enorme variedade de posições na esquerda, há distintas correntes conservadoras, das mais moderadas às mais radicais. Reacionários têm opiniões fortes. Há graus variados de reacionarismo, evidentemente, mais ou menos brutais. Mas um reacionário não é alguém, politicamente, distraído. É perigoso subestimarmos aqueles que discordam de nossas ideias. Não nos iludamos. Reacionários têm argumentos poderosos. Alguns, entre eles, são bem articulados. Não somente porque se apoiam no senso comum.
Qual é o cerne do problema? Reacionários são hostis ao projeto de uma sociedade igualitária. Nós somos a favor. A luta pela igualdade social é o que define uma identidade de esquerda. É verdade que essa animosidade, no Brasil, é mais forte no terreno dos costumes do que no terreno social. Há maior aversão contra os movimentos feministas, negros e LGBT’s do que apoio às privatizações. Há mais apoio à pena de morte do que apoio à reforma da Previdência.
Não há por que romantizar a natureza humana. Sim, seres humanos podem agir de forma monstruosa. Mas, tampouco, devemos ignorá-la. A educação pode transformar as pessoas para melhor. E a luta política pode, também, transformar a sociedade.
Revista Forum
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