Por Israel Souza.
Inegavelmente, Domenico Losurdo foi um dos maiores pensadores de nossos dias. Erudito, apaixonado, polêmico, enfeixava em sua análises, sempre e de maneira virtuosa, história, filosofia e política.
Rica, sua obra pode ser lida de muitas formas. Nessa pequena homenagem, arriscamos apenas uma dessas, tendo como eixo a crítica ao liberalismo e a defesa do comunismo.
É consabido que, após o fim da União Soviética, estabeleceu-se como hegemônica a compreensão de que o socialismo era, além de página virada, uma experiência eminentemente autoritária, desastrosa. Vitorioso, o capitalismo deveria ser abraçado, não apenas porque venceu o socialismo, mas porque era liberal e democrático, reino da liberdade e da prosperidade. A história havia chegado ao fim, diria Fukuyama.
Ora, Losurdo detecta nessa interpretação nada mais que um mito. Para desmontá-lo, faz uma análise da história da democracia em Democracia ou bonapartismo: triunfo e decadência do sufrágio universal. Dessa forma, mergulhando no passado, intervém no presente, combatendo o gênero, as classes e os países dominantes. Diz ele:
“No centro da ideologia hoje dominante há um mito, chamado a glorificar o Ocidente e, em particular, seu país-guia. É o mito segundo o qual o liberalismo teria gradualmente se transformado, por um impulso puramente interno, em democracia, e numa democracia cada vez mais ampla e mais rica” (LOSURDO, 2004, p. 9).
Apontando o sufrágio universal como uma das coisas mais elementares da democracia, lembra que
“seu advento foi por muito tempo impossibilitado pelas cláusulas de exclusão estabelecidas pela tradição liberal em detrimento dos povos coloniais e de origem colonial, das mulheres e dos não-proprietários. E estas cláusulas foram por muito tempo justificadas, assimilando os excluídos a ‘bestas de carga’, a ‘instrumentos de trabalho’, a ‘máquinas bípedes’ ou, na melhor das hipóteses, a ‘crianças’” (LOSURDO, 2004, p. 9) (destaques do autor).
Uma crítica ainda mais contundente ao liberalismo é formulada em Contra-história do liberalismo. Nessa obra, lançado luzes “sobre aspectos até agora ampla e injustamente ocultados”, Losurdo analisa “não o pensamento liberal em sua abstrata pureza, mas o liberalismo, quer dizer, o movimento e as sociedades liberais em sua concretização”i (LOSURDO, 2005, p. 11-12).
Com suas costumeiras erudição e farta fundamentação teórica e histórica, bem de acordo com sua concepção plural de luta(s) de classes que ele desenvolveu em A luta de classes: uma história política e filosófica, o autor mostra e denuncia, dentre outras coisas, a relação do liberalismo com o domínio de classes e gênero, com a escravidão, o racismo e o genocídio.
Destaca que “a escravidão na sua forma mais radical triunfa nos séculos de ouro do liberalismo e no coração do mundo liberal” (LOSURDO, 2005, p. 49). Nisso ele assenta sua provocante tese de que a escravidão não avança apesar do liberalismo, mas avança em razão do liberalismo (LOSURDO, 2005, p. 47).
Indo com desenvoltura dos textos para a história e da história para os textos, citando em profusão os próprios liberais (uma das marcas de seus textos), mostra como a defesa do direito de propriedade, fundamento primeiro e último de todo liberalismo, resulta na coisificação e na animalização dos trabalhadores, servos e escravos.
Essas reflexões têm desdobramento em outra obra sua: A linguagem do império: léxico da ideologia estadunidense, obra em que o autor destacará a influência dos Estados Unidos liberal sobre a África do Sul segregacionista e sobre a Alemanha nazista. Diz ele:
“a legislação segregacionista da África do Sul teve ampla inspiração no regime white supremacy que se afirmou no sul dos Estados Unidos depois do fim da Guerra de Secessão e da escravidão propriamente dita” (LOSURDO, 2010, p 104).
Quanto aos nazistas, lembra que
Já na década de 1920, entre a Ku Klux Klan e os círculos alemãs de extrema direita estabelecem-se relações de troca e colaboração com base no racismo antinegro e antijudaico (LOSURDO, 2010, p 103).
E mais. Colhe de Mein Kampf de Hitler passagens onde vasa o apreço pelos EUA como modelo a ser seguido:
“A América do Norte, cuja população é formada em grande maioria por elementos germânicos, os quais só muito raramente se misturam com povos inferiores e de cor, mostra uma humanidade e uma civilização bem diferente daquela das América Central e do Sul, onde os imigrantes em grande parte latinos muitas vezes se fundiram com os habitantes originais” (HITLER apud LOSURDO, 2010, p. 105).
Em obra outra, sobre o mesmo assunto, o autor acrescenta:
“Hitler visa não a um expansionismo colonial genérico, mas a construção de um império continental, por meio da anexação e germinização dos territórios do Leste imediatamente contíguos ao Reich. A Alemanha é chamada a se expandir pela Europa Oriental como uma espécie de Far West (Oeste Longínquo, em inglês no original), tratando os “indígenas” pelo gabarito dos ‘peles-vermelhas’ e sem jamais perder de vista o modelo americano, do qual o Führer celebra a ‘inaudita força’” (LOSURDO, 2006, p. 140) (destaques do autor).
Por essas e outras, o filósofo italiano explicita quão frágil é o entendimento segundo o qual os EUA, país bastião do capitalismo e do liberalismo, seriam o farol da liberdade. Em verdade, estão mais para o farol da escravidão e do genocídio. Por este prisma, não há negação entre nazismo e liberalismo, mas uma aprofunda afinidade. O primeiro desenvolveu, a sua maneira, aspectos do segundo.
Tomando por interlocutores autores que vão de Locke, Mandeville, Tocqueville e Stuart Mill a Hayek, Popper, Mises e Bobbio, o autor centra fogo no liberalismo, aquela corrente de pensamento mais usada para desacreditar o comunismo e sacralizar o capitalismo. Portanto, ele não escolhe um adversário qualquer nem orienta sua escolha por motivos puramente acadêmicos.
Pensemos na obra e na reputação de Norberto Bobbio, filósofo e italiano, como Losurdo. Também autor de vasta e instigante obra, Bobbio serviu e serve de base para uma defesa liberal do capitalismo e para uma negação do comunismo. Este alimenta, pelo menos em sua fase de maturidade, os mitos combatidos por Losurdo. Falamos do mito da complementaridade e interdependência entre liberalismo e democracia. Conforme suas palavras em O futuro da democracia:
“O Estado liberal é o pressuposto não só histórico, mas jurídico do Estado democrático. Estado liberal e Estado democrático são interdependentes em dois modos: na direção que vai do liberalismo à democracia, no sentido de que são necessárias certas liberdades para o exercício correto do poder democrático, e na direção oposta que vai da democracia ao liberalismo, no sentido de que é necessário o poder democrático para garantir a existência e a persistência das liberdades fundamentais (…). A prova histórica desta interdependência está no fato de que Estado liberal e Estado democrático, quando caem, caem juntos” (BOBBIO, 2000, p 32-33).
Eis aqui um caso clássico em que o brilho da lógica ofusca a realidade ou, para usar as expressões de Marx, aqui “as coisas da lógica” tomam o lugar da “lógica das coisas”.
Losurdo – em cuja obra sempre percebemos um diálogo crítico, por vezes, direto e sutil, por vezes, indireto e subterrâneo, com Bobbio – mostra a contento que o “Estado democrático” se constrói não com, mas contra o liberalismo. Sua obra vem, em larga medida, para desfazer e combater essa mistificação e atribuir à tradição iluminista revolucionária e ao comunismo a responsabilidade pelo florescimento da democracia.
Em Liberalismo. Entre civilização e barbárie, fica claro como o autor conjuga, no mesmo processo, a crítica ao liberalismo com a defesa do socialismo. Com inteligência e convicção, a tradição socialista é retomada e contraposta ao liberalismo. Para ele,
“A ideologia neoliberal hoje dominante pretendia eliminar o movimento que partia de Marx, ou que se inspirou nele, como se fosse uma gigantesca e ruinosa derrapagem antidemocrática. Na realidade, o advento da democracia contemporânea pressupõe a superação de três grandes discriminações: censitária, racial e sexual, que por tanto tempo excluíram do gozo dos direitos políticos os não-proprietários, as “raças inferiores” e as mulheres. Nesses três casos, o movimento comunista desenvolveu um papel relevante. O primeiro grande país a estender o sufrágio às mulheres foi a Rússia oriunda da revolução de fevereiro, na qual já eram bastante ativos os “bolchevistas” que, mais tarde, seriam os protagonistas da Revolução de Outubro” (LOSURDO, 2006, p. 123).
Em outra oportunidade, afirma que
“Se hoje, quando se fala de direito do homem, se entende, ao menos por parte da cultura política mais avançada, o homem na sua universalidade, o homem como tal, não se pode ignorar a grande contribuição, para este resultado, da tradição política que vai de Robespierre (foi o primeiro que contestou as limitações censitárias do direito de voto e aboliu a escravidão nas colônias) a Lênin (a Revolução de Outubro deu um impulso decisivo ao processo de descolonizar e reconhecer o direito de autodeterminação também aos povos em certo tempo considerados bárbaros) (LOSURDO, 2006, p. 110).”
Contudo, tenha-se claro que a defesa que Losurdo faz do comunismo é apaixonada, mas não cega. Ao contrário. Ela se faz acompanhar de duras autocríticas, reputando-as como necessárias, tal como Marx sugeriu2:
“É claro que a constatação deste fato histórico não deve ser um obstáculo para um balanço crítico, sem indulgências, desta tradição revolucionária. No que se refere mais especificamente ao marxismo, a ilusão que o penetra profundamente, quanto à breve fase de transição para um comunismo utopicamente transfigurado, produziu consequência claramente nefastas: esta ilusão levou a negligenciar, ou pior, a considerar puramente “formal”, o problema das garantias democráticas, ou o velho problema liberal dos limites do poder, qualquer que seja” (LOSURDO, 2006, p. 110).
Ciente de que a autocrítica poderia servir oportunisticamente aos adversários do movimento comunista, o autor trata de diferenciá-la da autofobia, fenômeno que expressa adesão dos vencidos à visão e aos valores dos vencedores, autoflagelando-se, negando-se.
“Em seu rigor, e até mesmo em seu radicalismo, a autocrítica exprime a consciência da necedade de acertar as contas com a própria história; a autofobia é a fuga vil desta história e da realidade da luta ideológica e cultural que sob ela ainda arde. Se a autocrítica é o pressuposto da reconstrução da identidade comunista, a autofobia é sinônimo de capitulação e de renúncia a uma identidade autônoma” (LOAURDO, 2009, p. 14-15).
Em sua crítica ao liberalismo, Losurdo combate e desmoraliza um dos trunfos mais brandidos pelos adversários do comunismo, apontando a falsidade de sua autoconsciência apologética. Com isso, procura mostrar ao movimento comunista como encarar temas espinhosos e constrangedores de forma proveitosa, sem fazer de sua autocrítica capitulação ante ao adversário.
Por isso, não surpreende que a revolução esteja entre os temas que constam em suas obras. Em Fuga da história? A Revolução e a Revolução Chinesa vistas de hoje, analisa criticamente – do ponto de vista dos oprimidos e explorados, e não do ponto de vista dos opressores e exploradores – estas revoluções, destacando sua importância para os processos de emancipação. Em Guerra e revolução: o mundo um século após Outubro de 1917, mostra como as classes dominantes e seus ideólogos procuram desacreditar a revolução em geral, tratando-a como uma espécie de patologia a ser evitada. Pés fincados no chão da história, Losurdo desmascara o fundo apologético classista e imperialista disso tudo.
Em sua última obra publicada no Brasil pela Editora Boitempo (O marxismo ocidental: como nasceu, como morreu, como pode renascer), o autor empreende uma reflexão autocrítica sobre o marxismo e os descaminhos deste em relação à revolução. Tudo isso prova a inabalável crença no movimento comunista e na revolução, uma crença que Losurdo nutriu até o fim de sua vida.
Por isso é impossível ir a suas páginas sem se sentir enriquecido com sua erudição e perspicácia. Impossível ir a suas páginas sem se sentir revigorado, animado por suas coragem e convicção revolucionárias. Intelectualmente sóbrio, politicamente apaixonado. Conjugando sempre o pessimismo da razão e o otimismo da vontade. Assim foi o valoroso camarada que acabamos de perder.
Foi sua estatura moral e intelectual que me fez lembrar da obra de Suassuna, de onde extraí a epígrafe (3) do presente texto. Somente a morte mesmo, esta força inexorável e imperturbável, para dobrar um gigante como Losurdo e levá-lo consigo.
Em que pese a perda, entendamos que ele forjou ideias que já, agora, se transformaram em sementes. Cuidemos delas. Espalhemo-las pelos mais diversos campos. A primavera que esperamos, ele anteviu e preparou-lhe terreno.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
LOSURDO, Domenico. Democracia ou bonapartismo: triunfo e decadência do sufrágio universal. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; São Paulo: Editora Unesp, 2004.
LOSURDO, Domenico. Fuga da história? A Revolução Russa e a Revolução Chinesa vistas de hoje. Rio de Janeiro: Revan, 2004.
LOSURDO, Domenico. Contra-história do liberalismo. São Paulo: Ideias & Letras, 2006.
LOSURDO, Domenico. Liberalismo. Entre civilização e barbárie. São Paulo: Anita Garibaldi, 2006.
LOSURDO, Domenico. A linguagem do império: léxico da ideologia estadunidense. São Paulo: Boitempo, 2010.
LOSURDO, Domenico. A luta de classes: uma história política e filosófica. São Paulo: Boitempo, 2015.
LOSURDO, Domenico. Guerra e revolução: o mundo um século após Outubro de 1917. São Paulo: Boitempo, 2017.
LOSURDO, Domenico. O marxismo ocidental: como nasceu, como morreu, como pode renascer. São Paulo: Boitempo, 2018.
MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo, Boitempo, 2011.
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: MEDIAfaschion, 2008.
NOTAS
1 No que surpreendemos uma preciosa indicação metodológica de Marx, em O 18 Brumário: “E assim como na vida privada se diferencia o que um homem pensa e diz de si mesmo do que ele é e realmente faz, nas lutas históricas deve-se distinguir ainda mais as frases e as fantasias dos partidos de sua formação real e de seus interesses reais, o conceito que fazem de si do que são na realidade” (MARX, 1997, p. 52).
2 “as revoluções proletárias como as do século XIX encontram-se em constante autocrítica, interrompem continuamente a sua própria marcha, retornam ao que aparentemente conseguiram realizar para começar tudo de novo, zombam de modo cruel e minucioso de todas as meias medidas, das debilidades e dos aspectos deploráveis das suas primeiras tentativas, parecem jogar o seu adversário por terra somente para que ele sugue dela novas forças e se reerga diante delas em proporçõ es ainda mais gigantescas, recuam repetidamente ante a enormidade ainda difusa dos seus próprios objetivos até que se produza a situação que inviabiliza qualquer retorno e em que as próprias condições gritam: Hic Rhodus, hic salta! [Aqui é Rodes, salta aqui mesmo!] // Hier ist die Rose, hier tanze! [Aqui está a rosa, dança agora!] (Marx, O 18 de brumário de Luís Bonaparte, p. 30)
3“(…). Cumpriu sua sentença e encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca de nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo morre.”
Ariano Suassuna.
Embora trate de revoluções proletárias do século XIX, estas indicações de Marx valem para outros tempos e revoluções, bem como para a produção teórica destinada a analisar o movimento comunista.
Boitempo
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