TRIBUNAIS DE EXCEÇÃO
por Luis Felipe Miguel
O papel do Judiciário na canalização das disputas e a crença disseminada de que os tribunais são capazes, em algum grau, de aplicar a lei tal como ela está formulada fazem nascer uma sensação de abandono quando deparamos com uma situação de arbitrariedade judicial indisfarçada. A quem vamos recorrer, quando até a Justiça é injusta?
O golpe de 2016 representou um duríssimo revés na percepção até então dominante de que a democracia brasileira, mesmo com todos os seus problemas e aos trancos e barrancos, caminhava para sua “consolidação”. Não foi apenas porque as classes dominantes abandonaram o respeito às regras do jogo e decidiram virar a mesa quando perceberam que, novamente, eram incapazes de impor seus preferidos por meio da eleição popular. O impeachment ilegal da presidenta Dilma Rousseff e o acelerado retrocesso em direitos e liberdades que se segue a ele mostram que as instituições não só não cumpriram seu papel de proteger a ordem constitucional e a democracia, como também participaram ativamente de sua subversão.
O que a onda global de desdemocratização e os golpes brandos ocorridos principalmente na América Latina vêm revelando é que o ordenamento político da democracia liberal pode ser usado para impedir o progresso social, bloquear as demandas por igualdade e, embora mantendo uma aparência de normalidade, despir os mecanismos democráticos de qualquer efetividade a que possam aspirar. No Brasil, chama atenção o protagonismo assumido pelo Poder Judiciário.
O papel do Judiciário na deflagração e convalidação do golpe político é perceptível para qualquer observador. Mas a ação cotidiana de juízes de todas as instâncias também corrobora o viés favorável aos grupos dominantes, como mostram as sentenças diferenciadas conforme a posição social dos acusados – por exemplo, a posse de uma pequena quantidade de droga ilegal pode levar a desenlaces completamente diferentes de acordo com a cor da pele e a classe social do portador. Em seu conjunto, o Poder Judiciário atua como avalista da desigualdade e das relações vigentes de dominação – o que corresponde, aliás, à posição do direito como “código da violência pública organizada”, como escreveu Poulantzas.
O que chama atenção do Brasil é que o Judiciário ocupa a posição de ponta de lança da luta de classes, cumprindo papel crucial na produção, aplicação e, em particular, legitimação das medidas que implicam retrocessos para a classe trabalhadora e outros grupos em posição subalterna. O que permitiu isso foram mudanças ocorridas nas últimas décadas e saudadas em geral como “avanços”.
Desde a promulgação da Constituição de 1988, observadores da política brasileira têm falado do crescente protagonismo do Poder Judiciário. A Carta constitucional garantiu prerrogativas estendidas e propiciou mudanças de comportamento dos agentes, levando aos fenômenos paralelos da “judicialização da política”, que faz as disputas passarem a ser resolvidas nos tribunais, e do “ativismo judiciário”, pelo qual o poder relativiza sua caracterização tradicional como “inerte”, avoca a si a iniciativa da ação e toma decisões que seriam do Legislativo ou do Executivo. Outra inovação da Constituição foi a enorme ampliação do âmbito de atuação do Ministério Público, órgão vinculado ao Poder Executivo, mas que cumpre funções judiciárias.
No período de ascensão democrática que se seguiu à promulgação da nova Constituição, esse alargamento dos poderes de juízes e procuradores foi, em geral, visto de forma positiva pelas correntes mais progressistas. A defesa de interesses coletivos e difusos, atribuída ao MP, prometia uma ampliação – necessária e urgente – da proteção a grupos oprimidos ou ao meio ambiente. As decisões tomadas no âmbito das cortes superiores podiam representar, por vezes, uma usurpação do poder de legislar, mas se mostravam mais avançadas do que aquelas advindas de um parlamento notoriamente corrompido e no qual era crescente a capacidade de chantagem de grupos fundamentalistas.
O Tribunal Superior Eleitoral introduziu regulações na disputa partidária (a chamada “verticalização” das coligações, depois revogada em 2002), no exercício parlamentar (a perda de mandato parlamentar por desfiliação, em 2007) e no funcionamento das cotas eleitorais para mulheres (com o entendimento de que o descumprimento da regra levaria à impugnação da lista partidária, em 2010) que se alinhavam ao ideal normativo da competição democrática compartilhado por liberais esclarecidos e por grande parte da esquerda brasileira. O Supremo Tribunal Federal estabeleceu direitos de minorias sexuais (reconhecimento da união civil homoafetiva, em 2011) e ampliou direitos reprodutivos (extensão do direito de aborto no caso de anencefalia fetal, em 2012), em sintonia com bandeiras progressistas. Sem discutir o mérito das decisões, elas com certeza extrapolam o que era a intenção original do legislador. Nenhuma delas teria passado no Poder Legislativo.
O desenvolvimento talvez mais surpreendente foi a aprovação em 2010, pelo próprio Congresso, de legislação que confere ao Judiciário um poder de veto na seleção de candidatos às eleições. A chamada Lei da Ficha Limpa, apresentada como iniciativa popular, apoiada pela quase unanimidade dos parlamentares e sancionada entusiasticamente pela Presidência da República, em meio a um verdadeiro clamor midiático, determinou a tutela do Judiciário sobre a soberania popular. Ainda assim, poucas vozes se ergueram contra ela.
Diante das dificuldades para elevar a educação política média dos brasileiros, a Ficha Limpa parecia um atalho seguro para a “moralização” do Estado. Trata-se de um elemento constante: o elogio da ação política do Poder Judiciário, no momento em que ela alavancava causas progressistas, é tingindo por uma percepção elitista (juristas capacitados podem decidir com mais competência) e pelo desânimo quanto à possibilidade de produzir uma opinião popular mais engajada e esclarecida.
Outra característica do Brasil é que o ativismo judiciário não é privilégio das cortes superiores. Até mesmo juízes de primeira instância podem tomar decisões de enorme repercussão coletiva – os casos de bloqueio de aplicativos de smartphones com milhões de usuários servem de exemplo. Na crise política brasileira, o juiz paranaense Sérgio Moro ocupou posição central ao liderar a Operação Lava Jato. Embora a justificativa para o impeachment nada tivesse a ver com a operação, apoiando-se em operações de crédito junto a bancos estatais (as chamadas “pedaladas fiscais”), ela foi instrumental para criar o clima de opinião que sustentou a derrubada do governo. Declaradamente inspirado na operação italiana Mãos Limpas, Moro julga que é importante dar grande visibilidade midiática e obter o “apoio da opinião pública” ao combate à corrupção.
A Lava Jato revelou parte da corrupção sistêmica da política brasileira por meio de operações espetaculares que, no entanto, atingiram de forma muito desproporcional o PT e seus aliados. Seu modus operandi privilegiado, a “delação premiada”, dá grande margem a que o agente da lei oriente o curso da investigação. Muitas vezes, seus resultados dependem da desobediência ao devido processo legal e de formas de intimidação contra testemunhas e suspeitos.
Não custa lembrar que Moro é o tradutor do artigo de um juiz norte-americano que ensina como coagir acusados para que denunciem seus cúmplices.1 Em vários momentos, sua atuação se mostrou claramente casada com o cronograma da derrubada da presidenta Dilma, culminando na divulgação do áudio de uma escuta telefônica ilegal, com uma conversa entre ela e Lula. Embora o juiz tenha sido obrigado a um envergonhado pedido de desculpas e ao reconhecimento de que a divulgação da conversa fora “equivocada”, ele continuou chefiando a operação. Atualmente, como se sabe, Moro e o tribunal de recursos ao qual sua vara está vinculada, o TRF-4, são instrumentais no impedimento à candidatura presidencial do ex-presidente Lula, que é outro importante passo no esvaziamento do que restava de esperança de respeito ao princípio básico da democracia liberal – a consulta ao povo para a escolha dos governantes.
Como um juiz de primeira instância foi capaz de acumular tamanho poder? A resposta se vincula tanto às peculiaridades da organização do Poder Judiciário no Brasil a partir da Constituição de 1988 quanto à bem-sucedida ofensiva do juiz Sérgio Moro junto à opinião pública, orquestrada com os meios de comunicação hegemônicos. Moro se tornou o emblema vivo do combate à corrupção e, portanto, intocável. As muitas arbitrariedades que cometeu ao longo do processo foram quase sempre abafadas após exposição mínima, e denúncias de graves irregularidades que o chamuscavam, como aquelas que transparecem no depoimento do advogado Rodrigo Tacla Duran, foram simplesmente deixadas de lado.
A pergunta mais importante, porém, é outra: por que as instâncias superiores do Judiciário não intervieram diante de abusos tão patentes nas investigações? Questão intrigante, sobretudo quando se lembra que, dos onze ministros do Supremo Tribunal Federal no período da derrubada de Dilma, oito tinham sido nomeados por ela ou por Lula. Qualquer explicação deve levar em conta que o STF não ficou imune ao clima de opinião formado a partir da Lava Jato – e a vulnerabilidade aumentada à pressão da “opinião pública” e da mídia é uma das características do Judiciário ativista. E também que os governos petistas não foram capazes de apresentar indicações para o Supremo que estivessem à margem do establishment jurídico e político. Pelo contrário, optaram quase sempre por demonstrar moderação, preferindo juristas conservadores e com trânsito nos partidos de direita. Também aqui a política de conciliação cobrou seu preço.
É preciso ponderar, porém, que se trata de uma situação difícil, não algo que se pudesse resolver por um mero ato de vontade do ocupante da Presidência da República. Por um lado, a indicação de juristas abertamente comprometidos com as causas populares seria encarada como rompimento do pacto que permitia a permanência do PT no poder e a implantação de políticas tímidas (mas mesmo assim importantes) de resgate da dívida social. A atuação do Supremo como avalista dos retrocessos é um indício, entre muitos outros, de que as condições de manutenção desse pacto foram erodidas. Essa é a ficha que falta cair para parcela da esquerda brasileira.
Por outro lado, o campo jurídico possui seus próprios filtros e mecanismos internos para forçar a adaptação às posições mais conformistas, mormente quando se alcançam funções de mais prestígio, poder e visibilidade. Como em outros campos (o jornalismo serve de exemplo), o conservadorismo transita como “imparcialidade”, mas visões críticas e comprometidas com a justiça social aparecem como sectárias, dificultando, portanto, a ascensão na carreira. Certamente há juízes progressistas, mas estão em situação parecida à de oficiais militares progressistas nos anos 1960. As iniciativas do Conselho Nacional de Justiça com vistas à perseguição de dissidentes ainda têm encontrado resistência, mas mostram que, na conjuntura aberta com o golpe, é possível que o Poder Judiciário se torne ainda menos arejado.
No início deste ano, dois eventos dissimilares apontaram para mudanças no cenário. Um deles foi a exposição, pela mídia hegemônica, de vantagens imorais auferidas por grande parte dos juízes, incluído aí o próprio Sérgio Moro, em particular um “auxílio-moradia” dado a quem evidentemente não precisa dele. Ao que parece, setores da coalizão golpista decidiram indicar ao Judiciário que ele não é intocável. O outro foi o anúncio, pelo ocupante da Presidência, da intervenção federal no Rio de Janeiro, que concede peso e visibilidade a um ator que, até agora, era mantido à sombra: as Forças Armadas.
Quaisquer que sejam as mudanças a que levem as disputas internas entre os grupos que deram o golpe em 2016, é ilusório pensar que o Judiciário pode ser um agente do retorno à democracia. Recursos ao STF, como ocorreram quando da deposição de Dilma e ocorrem agora com a condenação de Lula, cumprem muito mais um papel de denúncia, já que a corte demonstrou mais de uma vez seu desprezo pela legalidade fraturada.
É uma situação dramática porque, se a lei é um código da violência do Estado, como diz a citação de Poulantzas referida antes, ela também organiza, inibe e torna predizível essa violência. Sua imparcialidade ostensiva e os valores civilizatórios que ela tem de aparentar encarnar são concessões arrancadas pela luta dos grupos dominados. Também podem ser usados contra os dominantes e constrangem o exercício arbitrário do poder. O império da lei não é a garantia de uma sociedade justa, já que a lei reflete a correlação de forças dentro dessa sociedade. Mas a ruptura do sistema legal, que permite à dominação social se exibir em toda a sua nudez, retira dos mais frágeis as garantias que eles foram capazes de obter.
Quando a discricionariedade extralegal do sistema judicial, que nunca deixou de operar em prejuízo das populações mais pobres e periféricas, atinge o coração do sistema político, a democracia liberal entra em colapso. Significa que a ordem instituída não permite mais sequer que suas próprias promessas sejam mobilizadas para conter sua violência. Significa que a pressão dos dominados, que era aceita, desde que controlada, como parte do jogo, agora deve ser extirpada.
O papel do Judiciário na canalização das disputas e a crença disseminada de que os tribunais são capazes, em algum grau, de aplicar a lei tal como ela está formulada fazem nascer uma sensação de abandono quando deparamos com uma situação de arbitrariedade judicial indisfarçada. A quem vamos recorrer, quando até a Justiça é injusta? É a realidade de um país que passou de uma democracia formal, limitada, para uma democracia menos que formal, cujas instituições não se preocupam mais em disfarçar sua tendenciosidade em favor dos poderosos.
Como instituição política que é, o Poder Judiciário é sensível à correlação de forças na sociedade. É a resistência contra os retrocessos, o aumento na mobilização social, o protesto contra as arbitrariedades e a desobediência civil que podem restaurar o funcionamento mínimo de uma justiça burguesa que, ainda que sem perder o qualificativo “burguesa”, possa aspirar ao nome de “justiça”.
*Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília.
Le monde Diplomatique
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