Alckmin voltou atrás a respeito de sua declaração sobre Lula, suponho que após ter se dado conta da boçalidade
Boa parte das pessoas esclarecidas que eu conheço insiste em me dizer que Geraldo Alckmin será presidente, contra toda a verossimilhança e contra a minha tendência de esperar sempre o pior.
Eu estava tentando me convencer disso (e já tinha até cogitado o desgosto do voto útil no segundo turno, como barreira à eventual candidatura de algum fascista declarado) quando Alckmin disse, sobre o ônibus baleado na caravana de Lula, no Paraná, que o PT estava colhendo o que havia plantado.
É difícil imaginar que, num Estado de Direito, um político, qualquer que seja, faça por merecer ser recebido a tiros. Alguns, recorrendo à calúnia, chegaram a lançar mão desse argumento para justificar o assassinato de Marielle Franco.
Alckmin voltou atrás a respeito de sua declaração sobre Lula. Suponho que depois de ter se dado conta da boçalidade e da infelicidade da frase suicida. Desde então, tento imaginar que ideia ele faz de um Estado de Direito.
Estou cercado de gente que é incapaz de sair às ruas para manifestar seu repúdio ao assassinato de uma vereadora negra, mas que não perde a oportunidade de clamar pela prisão de Lula, supostamente em nome da lisura e da idoneidade. São pessoas que Alckmin representa ou quer representar.
Entre elas, há quem continue acreditando na herança de fazendas de café como prerrogativa para governar o país em nome da democracia. Se pudessem, como deixaram claro em acontecimentos recentes, aboliriam as eleições.
A autoimagem dessa gente é o esclarecimento. Embora muitos mal consigam terminar um livro, nunca deixaram de escarnecer do português de Lula e dos disparates de Dilma. A frase de Alckmin, entretanto, os expõe. Como é possível transigir com ela?
É claro que os nossos esclarecidos já ouviram falar de Guimarães Rosa, nem que seja apenas de nome.
No prefácio de um livro recente sobre ficção —"Les Bords de la Fiction" (as margens da ficção)—, no qual dedica um capítulo às "Primeiras Estórias", o filósofo francês Jacques Rancière escreve que vivemos "num tempo em que a medíocre ficção chamada 'informação' pretende saturar o campo da atualidade com suas crônicas surradas de pequenos arrivistas no assalto ao poder, sobre fundo de grandes relatos de atrocidades distantes".
Rancière não dá nomes. É possível que estivesse pensando em Sarkozy ou em Trump, mas, para um brasileiro, a ficção do impeachment é o que primeiro vem à cabeça —e com ela a voracidade dos nossos "pequenos arrivistas no assalto ao poder".
Por pequeno arrivista entenda-se aqui o oportunista que, em busca de votos, é capaz de assumir o discurso mais abjeto e sem-vergonha. E, no esforço de representar as mãos limpas, acaba emporcalhado.
Para os nossos esclarecidos, cujo esclarecimento se limita ao trânsito no mercado financeiro internacional, chegou a hora de entender que a política também lida com princípios —alguns deles inegociáveis, a menos que se queira viver na barbárie.
A barbárie são os irmãos Dagobé, quatro facínoras que, num conto célebre de Guimarães Rosa, aterrorizam o sertão. Eles impõem a própria lei a quem cruza seu caminho, até uma das vítimas potenciais matar o primogênito em legítima defesa.
Durante o velório, todo mundo espera a vingança dos irmãos sobreviventes. Na última hora, porém, confrontados com a presença do assassino no enterro e tendo tudo para encenar o roteiro esperado, os facínoras surpreendem com o imprevisível: reconhecem não a lei, mas o princípio da justiça. Admitem que o irmão "é que era um diabo danado" e deixam o rapaz ir embora.
A literatura, quando é para valer, trabalha contra a reprodução das convenções e do previsível. Para isso, elege princípios (nada a ver com bondade ou boas intenções).
Ela é o contrário do cinismo, mesmo quando se faz passar por cínica. Daí a indignação provocada pela impostura literária que se contenta com menos, por oportunismo, para se adequar aos tempos e ao que há.
"A literatura reafirma à sua maneira a capacidade de inventar, que pertence a cada um (...). Os que dizem que a literatura do escritor é vã, porque a gente do Sertão não a lerá, querem simplesmente dizer que ninguém deve contar histórias, que todos devem acreditar apenas no que há, aderir ao que existe", escreve Rancière sobre Guimarães Rosa.
Acreditar apenas no que há, aderir ao que existe, adequar-se ao que resta de mais arcaico no Brasil, qualquer que seja a desculpa, é de fato apostar no pior. Não é bom na literatura nem na política.
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Romancista, autor de "Nove Noites" e "Reprodução", já foi jornalista da Folha.
Folha SP
Boa parte das pessoas esclarecidas que eu conheço insiste em me dizer que Geraldo Alckmin será presidente, contra toda a verossimilhança e contra a minha tendência de esperar sempre o pior.
Eu estava tentando me convencer disso (e já tinha até cogitado o desgosto do voto útil no segundo turno, como barreira à eventual candidatura de algum fascista declarado) quando Alckmin disse, sobre o ônibus baleado na caravana de Lula, no Paraná, que o PT estava colhendo o que havia plantado.
É difícil imaginar que, num Estado de Direito, um político, qualquer que seja, faça por merecer ser recebido a tiros. Alguns, recorrendo à calúnia, chegaram a lançar mão desse argumento para justificar o assassinato de Marielle Franco.
Alckmin voltou atrás a respeito de sua declaração sobre Lula. Suponho que depois de ter se dado conta da boçalidade e da infelicidade da frase suicida. Desde então, tento imaginar que ideia ele faz de um Estado de Direito.
Estou cercado de gente que é incapaz de sair às ruas para manifestar seu repúdio ao assassinato de uma vereadora negra, mas que não perde a oportunidade de clamar pela prisão de Lula, supostamente em nome da lisura e da idoneidade. São pessoas que Alckmin representa ou quer representar.
Entre elas, há quem continue acreditando na herança de fazendas de café como prerrogativa para governar o país em nome da democracia. Se pudessem, como deixaram claro em acontecimentos recentes, aboliriam as eleições.
A autoimagem dessa gente é o esclarecimento. Embora muitos mal consigam terminar um livro, nunca deixaram de escarnecer do português de Lula e dos disparates de Dilma. A frase de Alckmin, entretanto, os expõe. Como é possível transigir com ela?
É claro que os nossos esclarecidos já ouviram falar de Guimarães Rosa, nem que seja apenas de nome.
No prefácio de um livro recente sobre ficção —"Les Bords de la Fiction" (as margens da ficção)—, no qual dedica um capítulo às "Primeiras Estórias", o filósofo francês Jacques Rancière escreve que vivemos "num tempo em que a medíocre ficção chamada 'informação' pretende saturar o campo da atualidade com suas crônicas surradas de pequenos arrivistas no assalto ao poder, sobre fundo de grandes relatos de atrocidades distantes".
Rancière não dá nomes. É possível que estivesse pensando em Sarkozy ou em Trump, mas, para um brasileiro, a ficção do impeachment é o que primeiro vem à cabeça —e com ela a voracidade dos nossos "pequenos arrivistas no assalto ao poder".
Por pequeno arrivista entenda-se aqui o oportunista que, em busca de votos, é capaz de assumir o discurso mais abjeto e sem-vergonha. E, no esforço de representar as mãos limpas, acaba emporcalhado.
Para os nossos esclarecidos, cujo esclarecimento se limita ao trânsito no mercado financeiro internacional, chegou a hora de entender que a política também lida com princípios —alguns deles inegociáveis, a menos que se queira viver na barbárie.
A barbárie são os irmãos Dagobé, quatro facínoras que, num conto célebre de Guimarães Rosa, aterrorizam o sertão. Eles impõem a própria lei a quem cruza seu caminho, até uma das vítimas potenciais matar o primogênito em legítima defesa.
Durante o velório, todo mundo espera a vingança dos irmãos sobreviventes. Na última hora, porém, confrontados com a presença do assassino no enterro e tendo tudo para encenar o roteiro esperado, os facínoras surpreendem com o imprevisível: reconhecem não a lei, mas o princípio da justiça. Admitem que o irmão "é que era um diabo danado" e deixam o rapaz ir embora.
A literatura, quando é para valer, trabalha contra a reprodução das convenções e do previsível. Para isso, elege princípios (nada a ver com bondade ou boas intenções).
Ela é o contrário do cinismo, mesmo quando se faz passar por cínica. Daí a indignação provocada pela impostura literária que se contenta com menos, por oportunismo, para se adequar aos tempos e ao que há.
"A literatura reafirma à sua maneira a capacidade de inventar, que pertence a cada um (...). Os que dizem que a literatura do escritor é vã, porque a gente do Sertão não a lerá, querem simplesmente dizer que ninguém deve contar histórias, que todos devem acreditar apenas no que há, aderir ao que existe", escreve Rancière sobre Guimarães Rosa.
Acreditar apenas no que há, aderir ao que existe, adequar-se ao que resta de mais arcaico no Brasil, qualquer que seja a desculpa, é de fato apostar no pior. Não é bom na literatura nem na política.
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Romancista, autor de "Nove Noites" e "Reprodução", já foi jornalista da Folha.
Folha SP
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