Carlos Heitor Cony
De todas as violências e ilegalidades postas em prática pela quartelada de 1º de abril, a mais repugnante, a mais abjeta é a oficialização e santificação da delação. Não acreditei como totalmente verídica, no primeiro momento, a notícia de que o Ministro da Educação teria institucionalizado tal crime em sua repartição. Mas era verdade, E não só verdade para o Ministério da Educação, como verdade para todo o aparelho político –militar que sufoca o País. No governo da Guanabara, em outros governos, no IAPC, nos demais institutos, na cidade e no País a delação foi guindada a mérito, com direito a recompensa.
Perde-se assim, a sensibilidade moral. Delatar um colega de trabalho, aponta-lo aos algozes de hoje porque ele pensa diferente de nós _ não é ato digno de um homem, e muito menos de um democrata. A oficialização da delação é arma predileta e inseparável dos regimes de força. Quem melhor se utilizou dela foram nomes recentes para o nosso repúdio: Hitler, Mussolini, Stalin.
O leitor que me lê talvez tenha em mão um questionário com a pergunta: “conhece alguém com ideias subversivas ?” Sabemos do clima reinante nas repartições do Estado e da União, cada qual temeroso de ser acusado pelo outro. É o Terror.
Mas é preciso que haja resistência. Os inquisidores irão embora, a inquisição passará. Mas ninguém esquecerá o delator, ninguém perdoará a delação. Lembro o símbolo universal da Traição: Judas.
Judas, esse que a tradição nos ensina a malhar todos os anos, foi o dedo-duro que delatou seu Mestre e Redentor. Judas é bem o padroeiro de todos os dedos-duros que estão funcionando por aí. Há senhoras piedosas que consideram essa quartelada um movimento cristão. Mas um movimento feito sob o patrocínio de Judas não pode ser cristão. É anticristão. Não tem as bênçãos do Mestre. Tem a baba do Traidor.
Na União Soviética houve um crime que horrorizou o Ocidente: o filho que delatou o pai. O filho virou estátua. Pois aqui mesmo neste Brasil cristão tivemos um caso análogo: a “Mãe do Ano” escolhida por um jornal foi uma senhora que, diante dos filhos, delatou vizinhos e amigos. No Estado do Rio houve um caso mais bárbaro: o pai delatou o filho.
Não podemos consentir que meia dúzia de fanáticos, que uma dúzia de histéricos, que duas dúzias de boçais deformem e violentem a Nação e o caráter de nosso povo. Que ninguém delate ninguém. Afinal, sábado de aleluia vem inexoravelmente todos os anos. E há postes bastantes para se pendurar os Judas.
14-5-1964.
O Ato e o Fato
Crônicas Políticas
Carlos Heitor Cony
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