sábado, 12 de agosto de 2017

O ódio irracional às garantias do processo, Salem e a “Santa Inquisição nas Minas”

"Garantias do processo, como a imparcialidade do juiz, a iniciativa acusatória distinta da tarefa de julgar, a publicidade da produção das provas e dos argumentos das partes, o contraditório, a adoção de critérios racionais de admissão e valoração dos elementos probatórios e, o mais importante, a presunção de inocência, em todos os tempos são obstáculos insuperáveis à condenação dos inimigos das pessoas de bem que esteja fundada na convicção prévia de que estes demônios, bandidos que atentam contra a nossa paz e tranquilidade, devem ser punidos independentemente da demonstração de sua responsabilidade penal caso a caso."

Geraldo Prado*

Jaime I da Inglaterra – Jaime IV da Escócia – governou em um tempo áureo da cultura inglesa, do final do século XVI ao início do século XVII, tendo sido contemporâneo das obras de Shakespeare e do pensamento fundamental de Francis Bacon.


A era de Jaime I foi a do advento do racionalismo, com Galileu Galilei (1564/1642) e René Descartes (1596/1650), e também dos primórdios do empirismo, sob alguma influência da ruptura provocada parcialmente pelo nominalismo.[1]



Naquele momento surgia no Ocidente a filosofia moderna, “tendo como questão central a epistemologia, a investigação sobre o conhecimento”.[2]



Considerado o contexto da Era de Ouro da literatura inglesa e da emergência do empirismo e do racionalismo, convém sublinhar que Jaime I gozava de boa reputação acadêmica e conduziu os destinos da Inglaterra e da Escócia com relativa segurança. Katherine Howe,[3] todavia, recupera em perspectiva crítica talvez a principal contribuição intelectual do monarca e a interpreta como necessária chave de leitura de uma época de instabilidade política na qual a definição do inimigo do bom governo cumpriria papel essencial no controle social: trata-se do livro “Demonologia”,[4] versão mais inspirada e dotada de refinamento teórico que seus equivalentes atuais, os manifestos contra os inimigos da ordem e da segurança e seus adoradores.



Em “Demonologia” Jaime I lança mão da estrutura dialética para opor suas convicções mágicas ao ceticismo racionalista quanto aos poderes nefastos do Diabo. A tese do Rei afirmava a influência demoníaca sobre mulheres, convertidas em bruxas e feiticeiras, e estava apoiada na interpretação das Sagradas Escrituras. Às objeções de Filomates sobre a credibilidade de algo como a “bruxaria”, o personagem Epistemon responde com a lógica fundada nas palavras da Bíblia, exercitando um tipo de raciocínio que controvertia com o materialismo a partir da ideia do transcendente como estrutura e função da consciência humana.[5]



Howe adverte para o fato de que a estratégia consciente ou não de Jaime I consistiu em transferir para o transcendental – no caso, o Diabo – as causas primeiras da desordem e da ingovernabilidade na Inglaterra histórica, elegendo primordialmente as mulheres como as escolhidas pelo demônio para representá-lo na terra, de modo tal a que Jaime I pudesse invocar, no âmbito da ordem jurídico-política, poderes extraordinários para governar os homens a partir da punição das bruxas e feiticeiras.[6]



O ódio irracional às bruxas e feiticeiras converteu-se em poderoso instrumento ou Razão de Estado para manejar o sistema de justiça criminal de maneira a provocar significativa adesão social a determinado projeto de governo, mesmo entre as mulheres.



Inevitável que o êxito de uma empreitada político-jurídica dessa natureza implicasse na prática em renegar – ou, simplesmente, ignorar – o regime de provas judiciais e os métodos de acertamento da verdade que por força do empirismo de John Locke vieram a influenciar decisivamente o processo penal anglo-americano.[7] A razão fora destronada em favor da superstição, que contava com adeptos cultos e conquistava as pessoas pela via da emoção.



Garantias do processo, como a imparcialidade do juiz, a iniciativa acusatória distinta da tarefa de julgar, a publicidade da produção das provas e dos argumentos das partes, o contraditório, a adoção de critérios racionais de admissão e valoração dos elementos probatórios e, o mais importante, a presunção de inocência, em todos os tempos são obstáculos insuperáveis à condenação dos inimigos das pessoas de bem que esteja fundada na convicção prévia de que estes demônios, bandidos que atentam contra a nossa paz e tranquilidade, devem ser punidos independentemente da demonstração de sua responsabilidade penal caso a caso.



“Demonologia” é um ancestral vistoso e mais sofisticado dos contemporâneos manifestos contra a ordem constitucional democrática e o Estado de Direito, ordem constitucional e Estado de Direito convertidos artificialmente em anteparos à indispensável punição dos inimigos da paz pública e da segurança.


Sua eficácia – da “Demonologia” – dependeu da capacidade de fazer as pessoas comuns acreditarem que os métodos probatórios e as garantias do processo eram indesejáveis práticas de arbitramento de responsabilidades manejadas por adoradores das bruxas para assegurar a impunidade das feiticeiras.



O ódio às garantias do processo e à racionalidade que sob este aspecto deve presidir a intervenção dos agentes do Estado configurou e ainda configura estratégia punitiva central para o êxito das investidas de incriminação em razão da pessoa a ser castigada e não do fato punível. Mobilizar a opinião pública contra as garantias – criação do Demônio visando deixar desprotegidas as pessoas de bem – é fundamental.



Ao refletir sobre os séculos XVI e XVII pode parecer estranho ao que vivemos hoje que formas tão antagônicas de sentir e interpretar o mundo hajam convivido e que essa convivência tenha operado em um lugar onde a rigor pareceria impossível: o processo criminal. Afinal, como preconceitos e superstições puderam coexistir com os conceitos de base da verificação da responsabilidade penal que são a sua negação peremptória?



Como a razão, instrumentalizada para delimitar os fatos e as provas, pode seguir seu curso teórico ao mesmo tempo em que chamados à punição impuseram-se unicamente sustentados no clamor popular do sacrifício das inimigas das pessoas de bem? Como, em determinados casos, a prática estribada em ódio irracional às garantias, prevaleceu com tamanha facilidade sobre o pensamento ilustrado que se difundia?



Este mesmo sentimento de perplexidade pode ser percebido entre os que se surpreendem com as novas manifestações demiológicas, mais claramente apontadas contra as regras jurídicas que o Pós-Segunda Guerra Mundial buscou espalhar pelo mundo por meio da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e do Pacto de Direitos Civis e Políticos de 1966.



Manifestos contra as garantias do processo são publicados e a defesa das garantias do processo são equiparadas à adoração das bruxas e feiticeiras contemporâneas, identificadas em acusados de tráfico de drogas, de roubos, corrupção etc. Como referido, estes manifestos são a versão rejuvenescida da “Demonologia” de Jaime I.



Penso que uma explicação possível deriva do olhar histórico. Lembra Giuliano Milani, ao tratar da condenação política pela via do processo criminal, ou do uso dos tribunais criminais como arma política, tomando como exemplo os processos e sentenças criminais de 1268-1269 e 1302 de Florença, que a história do direito, ao ser separada do “plano dogmático dos ordenamentos imutáveis e incluída no contexto da história política e institucional”, nos oferece uma visão realista das instituições jurídicas e uma percepção mais clara dos “sistemas de definição de poder”.[8]



O poder de fazer incidir as garantias processuais ou de suspender a sua aplicação nos casos concretos resulta de decisões políticas conexas a interesses políticos e econômicos reais, ainda que o discurso público de sua atuação apele a elementos emocionais e aparentemente resista à análise racional.



Com efeito, no emblemático exemplo anglo-americano da oposição dicotômica entra a racionalidade do método processual e a aparente irracionalidade da perseguição às inimigas do povo, no caso as chamadas Bruxas de Salem, basta fixar que dezenove mulheres inocentes foram condenadas e mortas em um processo criminal realizado em fins do século XVII (1692), no Condado de Essex, em um âmbito de acusação criminal que, operando com a categoria da conspiração, chegou a envolver como suspeitas cento e cinquenta pessoas.



Isso ocorreu na proximidade temporal do advento da obra de John Locke, “Ensaio sobre o Entendimento Humano” (1689), e quase simultaneamente com o conhecimento do trabalho de Baron Gilbert, discípulo de Locke, autor de “Law of Evidence” (1720). “Law of Evidence”, explicitamente baseada na filosofia de Locke e na noção da melhor regra probatória, destacou-se pela sistematicidade e seguiu a tendência da produção dogmática de juristas práticos dirigida à análise do direito probatório na Inglaterra, direito aplicado na Colônia do norte da América.[9]



Não aplicar as regras processuais de cunho racional e fundar a convicção condenatória em crenças mágicas acerca de uma pseudo influência do Demônio sobre as mulheres acusadas de bruxaria, em Salem, no entanto, foi fundamental para encobrir o embate genocida que os colonos travavam com as populações indígenas “do outro lado da fronteira do Maine”, não por outro motivo coincidindo as descrições das manifestações do Demônio com as usualmente empregadas para caracterizar as mencionadas populações indígenas.[10]



Salienta Howe que “Os vizinhos de Salem eram um ‘povo de Deus afincado em territórios que antigamente haviam pertencido ao Diabo’, e as tensões pessoais, políticas e psicológicas em uma comunidade tão caracterizada pela violência e incerteza unicamente podiam encontrar sua expressão, naquela cultura e naquele momento, em um processo por bruxaria”.[11]



A forma jurídica do julgamento em Salem, com depoimentos de testemunhas, etc., contrastou com o que se compreendia mesmo à época como processo racional de determinação da responsabilidade criminal. Com os riscos implícitos em toda tradução do passado para o presente – já se disse que o passado é um país estrangeiro – o fato é que o êxito das condenações dependeu de algo que nos dias atuais é definido como suspensão da aplicação das garantias do processo. A acusação posterior de irracionalidade do procedimento não teria como alterar a trajetória histórica, ressuscitar pessoas e reputações, e a realidade é que o genocídio indígena viabilizou a expansão da colonização nos territórios do norte da América.



Esta é a questão principal encoberta pelos manifestos contra as garantias do processo: a tensão entre métodos racionais-legais de arbitramento de responsabilidade criminal e os julgamentos conforme juízos a priori não envolve mera opção por processos de melhor ou pior qualidade em termos de decisão. Ainda que alguns dos protagonistas do debate não se deem conta, a disputa é antes e fundamentalmente política no sentido de decidir quem está em condições de definir o futuro alheio e controlar o conjunto da sociedade.



Como acentuou Giuliano Milani, o deslocamento do olhar do “plano dogmático dos ordenamentos imutáveis” para o do “contexto da história política e institucional”, nos oferece uma visão realista das instituições jurídicas e uma percepção mais clara dos “sistemas de definição de poder”.[12] Trata-se de compreender a própria facticidade social do Direito, algo que dificilmente se alcança sem que se recorra ao contexto de sua aplicação.



A compreensão da facticidade social do direito é o que permite rastrear em estatutos jurídicos como “Demonologia”, por exemplo, os ancestrais do discurso de manifestos voltados ao deslocamento da responsabilização criminal dos fatos para as pessoas e das estratégias jurídico-políticas consistentes no abandono provisório das garantias processuais do direito, o que denomino de ódio às garantias.



Evidente que não é necessário recorrer ao estatuto inglês para perceber o fio condutor da retórica de repúdio às garantias do processo no Brasil.



O que se exprime na atualidade como ódio às garantias ecoa a experiência inquisitorial brasileira pelo menos desde as primeiras visitações do Santo Ofício, interessando a perseguição criminal às camadas populares em meados do século XVIII, na capitania das Minas, sob o rótulo de repressão às feitiçarias e práticas mágicas.



Como em Salem, a persecução às feitiçarias costurou interesses e culturas bastante distintos na capitania das Minas. Se em Essex, os colonos estavam entre a cultura cosmopolita do porto e a resistência da população indígena na fronteira, e o processo por bruxaria, com acusação de conspiração, revelou-se funcional à expansão do poder e a dominação dos subalternos, o fato é que no apogeu do ciclo do ouro no Brasil “quase 50% da população da capitania era composta por escravos e dois terços dos cativos eram negros africanos”.[13]



O controle social da população escrava foi levado a cabo por meio da incriminação de blasfêmias, desacatos e feitiçarias e não apenas pelo Tribunal da Inquisição. Como sublinha Corby, “a feitiçaria nas Minas era considerada crime de foro misto”.[14]



O que importa a presente análise é que tanto em Salem como em Mariana os interesses políticos e econômicos que justificaram a repressão criminal fora dos marcos da racionalidade que hipoteticamente presidiria os procedimentos penais encontraram fortíssimo eco nas pessoas comuns.



Foram elas que incentivaram, testemunharam e levaram à morte dezenove mulheres inocentes em Salem. Também foram as pessoas comuns, na condição de agentes do Santo Ofício – Os Familiares do Santo Ofício – que puseram a funcionar as engrenagens que, baseadas em delações, aprisionaram e puniram centenas de inocentes, além de terem, pessoalmente, participado dos inquéritos, auxiliado o Tribunal, efetuado prisões e policiado consciências.[15]



Quando são aproximadas experiências históricas tão distintas – Jaime I e sua “Demonologia”, o Regimento Inquisitorial de 1640 e a repressão às feitiçarias no Brasil, e suas respectivas aplicações – não há como esconder algo que aos investigadores das práticas punitivas desde há muito é incontroverso: as práticas penais são exercício de poder político e de dominação; a grande maioria das pessoas acredita emocionalmente nas virtudes da punição como meio de estabelecimento de um estado de segurança pessoal e prega a exacerbação do castigo como forma de alcançar este objetivo, ainda que contra todos os dados que a razão possa lhes opor.



Este é em minha opinião o pano de fundo histórico que ajuda a entender o ódio irracional às garantias e o discurso que subverte o sentido das próprias garantias, convertidas retoricamente em ode às bruxas e feiticeiras de todos os tempos, incluindo o amplo tempo presente.



Geraldo Prado é Professor de Direito Processual Penal na Universidade Federal do Rio de Janeiro.



Ps. Tempo não por acaso de contração da economia, precarização do trabalho, vilipêndio jurídico das garantias sociais e eliminação acelerada do pacto social… encontro marcado entre política, economia e sistema penal.



[1] VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo: Martins Fontes. 2005. P. 229.



[2] MARCONDES, Danilo. Filosofia analítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p. 9-10.



[3] HOWE, Katherine (ed.) El libro de las brujas: Casos de brujería en Inglaterra y en las colonias norteamericanas (1582-1813). Tradução de Catalina Martinez Muñoz. Barcelona: Alba Clásica, 2016. p. 68.



[4] Daemonologie: https://archive.org/details/daemonologie25929gut Consultado em 05 de agosto de 2017.



[5] A tese da oposição do transcendente ao materialismo emergente no século XVII é de Hans Ulrich Gumbrecht. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Nosso amplo presente. Tradução Ana Isabel Soares. São Paulo: UNESP, 2015. p. 13.



[6] HOWE, Katherine (ed.) El libro de las brujas: Casos de brujería en Inglaterra y en las colonias norteamericanas (1582-1813). Tradução de Catalina Martinez Muñoz. Barcelona: Alba Clásica, 2016. p. 68.



[7]Sobre a influência de John Locke: TWINING, William. Theories of Evidence: Bentham & Wigmore. Stanford: Stanford University Press, 1985. p. 2-5.



[8] MILANI, Giuliano. Crímenes y procesos políticos en las comunas italianas. In: CONTE, Emanuele; MADERO, Marta (eds.) Procesos, inquisiciones, pruebas. Buenos Aires: Manatial, 2009. p. 186.



[9] TWINING, William. Theories of Evidence: Bentham & Wigmore. Stanford: Stanford University Press, 1985. p. 3-4.



[10] HOWE, Katherine (ed.) El libro de las brujas: Casos de brujería en Inglaterra y en las colonias norteamericanas (1582-1813). Tradução de Catalina Martinez Muñoz. Barcelona: Alba Clásica, 2016. p. 207.



[11] Idem.



[12] MILANI, Giuliano. Crímenes y procesos políticos en las comunas italianas. In: CONTE, Emanuele; MADERO, Marta (eds.) Procesos, inquisiciones, pruebas. Buenos Aires: Manatial, 2009. p. 186.



[13] CORBY. Isabela de Andrade Pena Miranda. A Santa Inquisição nas Minas: Heterodoxias, blasfêmias, desacatos e feitiçarias. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017. p. 246.



[14] CORBY. Isabela de Andrade Pena Miranda. A Santa Inquisição nas Minas: Heterodoxias, blasfêmias, desacatos e feitiçarias. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017. p. 244.



[15] CORBY. Isabela de Andrade Pena Miranda. A Santa Inquisição nas Minas: Heterodoxias, blasfêmias, desacatos e feitiçarias. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017. p. 84.


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Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro 

Justificando

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