domingo, 27 de agosto de 2017

De um Gilmar para outro: o tema é a soberba


Francisco Paes de Barros

Em meus tempos de garoto, em 1951, fui ao Estádio do Pacaembu numa tarde chuvosa, 25 de novembro. Gilmar fazia um dos seus primeiros jogos como titular, contra a Portuguesa de Desportos. Tomou sete gols, na derrota por 7 a 3! Mas não se perturbou nem perdeu a esperança. O tempo passou, ele voltou à equipe, foi várias vezes campeão paulista no Corinthians e, depois, no Santos, onde ganhou dois títulos mundiais de clubes. Brilhou na seleção brasileira, campeão mundial em 1958 e 1962.

Gilmar se relacionava bem com a imprensa e com os torcedores, convivendo num clima de cordialidade e espontaneidade. Era avesso à publicidade, preservava a sua vida particular, a esposa e os dois filhos. Repudiava o exibicionismo. Tinha presença constante na mídia graças às suas atuações espetaculares. Discreto, não fazia comentários públicos a respeito da atuação de seus colegas, adversários, técnicos, médicos e dirigentes. Ele os respeitava e promovia o fair play.

O grande goleiro era admirado pelos torcedores também por sua simplicidade e modéstia. Tinha um carinho especial pelos mais pobres e, por isso mesmo, abominava a ostentação. Tinha horror ao narcisismo. Jamais desmereceu seus adversários, e há de se ressaltar que jogou em times quase invencíveis – o Santos e a seleção brasileira, que, entre outros notáveis craques, tinham Pelé.

Devido às suas qualidades pessoais e profissionais, Gilmar foi muitas vezes homenageado pelos torcedores brasileiros. Nos anos 1950 e 1960, inúmeras crianças receberam o seu nome na pia batismal. Acredito que, hoje, há muitos Gilmar espalhados pelo Brasil, atuando nas mais variadas atividades, que dão um testemunho de conduta semelhante ao do magnífico craque.

Mas, evidentemente, há exceções, vitimas da soberba.

Aliás, o mundo moderno corre o risco de se tornar sensacionalista com o surgimento das redes sociais. Abre-se espaço enorme para o soberbo.

Preocupa-me a possibilidade de o soberbo se transformar em um paradigma para os jovens. E isso seria a deformação da comunicação, que tem como missão aproximar as pessoas e promover o bem comum de todas elas.

Pior ainda quando o soberbo vem a ocupar cargos de relevância num dos três Poderes da República. O soberbo não tem espírito público, se julga muito poderoso, acima da lei e de Deus, vaidade que destrói e se autodestrói.

O espírito público e a soberba são antagônicos. O soberbo é apaixonado perdidamente por si mesmo. “Os soberbos, por essa hipertrofia do seu amor-próprio, se colocam para lá do bem e do mal...”, escreveu o grande pensador Alceu Amoroso Lima.

Em seu livro “Tudo é Mistério” (Editora Vozes), lançado em 1983, ano de seu falecimento, ele disse que “a soberba é a consciência do orgulho e da vaidade: “A soberba não é apenas um traje de luxo do orgulho ou da vaidade, mas a consciência de uma superioridade intrínseca que nos coloca no direito ou mesmo no dever da onipotência...A soberba é a autodivinização do ser humano.”

Não consigo imaginar um juiz de direito soberbo. Rui Barbosa sustentava que “a magistratura é a mais eminente das profissões a que um homem se pode entregar neste mundo”.

A história do nosso saudoso Gilmar e o perigo que representa para a sociedade um juiz soberbo me fizeram imaginar uma situação inspirada em passagem bíblica, “O fariseu e o cobrador de impostos” (Lucas, 18, 9-14). Numa igreja, se encontravam duas pessoas, rezando. De um lado, um juiz de direito soberbo, rezava de pé, sem demonstrar nenhum arrependimento pelos seus erros, neste provável desfile de frases: “Ó Deus, eu te agradeço porque sou diferente dos meus colegas. Sou muito inteligente, culto e orador renomado. Fisicamente bem afeiçoado, a mídia não se cansa de me procurar para dar entrevistas. E quando ela não me procura, crio fatos para ir ao encontro dela. Meu Deus, obrigado por ter-me feito perfeito.” Do outro lado da igreja, o campeão Gilmar, rezando ajoelhado, humildemente, com a cabeça baixa: “Meu Deus, tende piedade de mim, me ajude a ser um cristão melhor em todas as circunstâncias da minha vida. Meu Deus, tende piedade de mim, sou um pobre pecador.

Na saída da igreja o campeão Gilmar cruzou com o jovem juiz soberbo que lhe perguntou em tom de gozação como ele se sentia naquele dia depois de ter perdido o jogo que quase marcou o fim da sua carreira. O campeão Gilmar humildemente pediu ao juiz que jamais esquecesse as palavras de Confúcio: “Nossa maior glória não está em jamais cair, mas em levantar a cada queda. A honra não consiste em não cair nunca, mas levantar cada vez que se cai.”

O campeão Gilmar, missionário do bem, faleceu em 2013, aos 89 anos. Espalhados pelo Brasil, muitos Gilmar tentam ser como ele. Um ou outro opta pela soberba.

Francisco Paes de Barros é radialista


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