Não, meu amigo, não é hora de unir as esquerdas em torno de um partido, de um nome, um post de facebook, um projeto eleitoral ou qualquer outra quimera, principalmente se essa união significa abafar dissensos, forjar artificialmente uma unidade em um hegemonismo capenga, frágil. Além disso, unida, a esquerda ideológica brasileira de hoje, todas as vertentes partidárias somadas, é capaz, no máximo, de abrir um grupo de oração. Somos poucos, somos bem poucos, somos menores do que nos faz crer a bolha.
O uso da palavra “oração”, aqui, não é aleatório. Muitos de nós achamos ser possível alcançar uma mítica redenção por meio da recitação de um credo, da repetição de palavras de ordem, do comparecimento a procissões cívicas, ecumênicas, apascentadoras do espírito, mas que têm pouco efeito transformador na realidade material.
Ir às ruas, fechar o trânsito, tornar pública a nossa insatisfação com o atual estado de coisas é essencial, mas não basta. Pode ser um ensaio, pode ser a semente de alguma coisa, mas é preciso encarar a realidade: em curto prazo, conseguiremos, no máximo, pouco mais do que acuar ou criar alguma dificuldade para o governo ilegítimo, pois nossas insatisfações ainda são difusas demais ou têm apelo popular de menos. A construção de um campo de esquerda que efetivamente transforme a realidade para conferir à população conquistas emancipatórias é incompatível com a impaciência, com esse atabalhoado senso de urgência que o golpe parlamentar incutiu em nosso campo.
É preciso dizer, ainda, que a conjuntura nos tragou como um tsunami a um bando de banhistas bêbados. Muitos daqueles que carregam na lapela as dignas insígnias da esquerda estavam a defender, até anteontem, a inevitabilidade de uma série de ajustes impopulares levados a cabo por ninguém menos que a presidenta deposta. A confusão é claríssima: não foram poucas as medidas antipovo propostas pelo governo petista que, levadas ao parlamento no pós-golpe, surgiram nas redes sociais como provas irrefutáveis da maldade do governo Temer. Sim, são provas irrefutáveis do caráter impopular do governo Temer, pois ele as encaminhou, mas não podemos nos esquecer de que boa parte dessas provas também poderiam ser usadas contra o governo Dilma, que as formulou.
E o que dizer dos dignos companheiros que, saudosos, talvez, do tempo em que a conciliação de classes rendeu alguns frutos concretos, apostam suas fichas em um triunfal retorno do presidente Lula, após convocação de novas eleições ou em 2018? Lula, aquele que, ao ser nomeado ministro por Dilma, apostou que uma nomeação de Meirelles apascentaria o mercado e a base parlamentar do governo, ignorando o fato de que o superministro, no máximo, faria com que as pautas do ajuste deslizassem pelo parlamento com maior desenvoltura?
Se, por algum tempo, na época das vacas gordas, onde (em que) era possível agradar ao povo e ao mercado, o lulismo conseguiu angariar apoio de massas, o projeto petista acabou por afastar sua base popular quando, na crise, escolheu seu lado. A queda vertiginosa da popularidade de Dilma não se deveu somente às denúncias de corrupção e à Lava Jato, embora ambas as narrativas tenham conseguido conferir mais substância a uma indignação popular que já se encontrava presente. Lembrem-se: Lula se reelegeu em 2006 debaixo de uma saraivada de denúncias gravíssimas, mas sobreviveu porque a economia ia bem e o projeto de conciliação de classes caminhava a todo vapor. Corrupção não é razão bastante para derrubar governo algum quando existe apoio popular e Dilma, infelizmente, conseguiu consumir boa parte do apoio que a reconduziu à presidência da República em poucos meses de governo.
Se não é possível dizer que o povo saiu às ruas para pedir a deposição de Dilma, com suas panelas e camisas da seleção canarinho, tampouco é possível dizer que o povo saiu às ruas para defender o seu mandato. As manifestações contra Temer cresceram após o afastamento definitivo da presidenta, o que é, de alguma forma, sintomático, mas não ao (a) ponto de dizermos que “o povo hoje está nas ruas contra Temer”. O grosso da população, simplesmente, não se abalou para ir às ruas para defender ninguém. Antes de as esquerdas se unirem em torno de alguém ou de alguma coisa, é preciso descobrir o porquê desse fenômeno. As esquerdas sem povo não passam de um broche identitário, uma excentricidade sem substância.
Talvez os ajustes de Temer, aplicados, acabem por despertar a população por conta de sua gravidade e alcance, mas honestamente não sei se ela compraria a solução consubstanciada na volta de Dilma ou no redentor retorno de Lula da Silva, já que a discussão sobre a institucionalidade democrática e a soberania do voto passa longe dos rincões onde a democracia representa pouco mais do que um incômodo ao qual as pessoas devem se submeter de tempos em tempos.
Se não é hora de unir as esquerdas em torno das pautas institucionais que estão dadas, é hora de nos lembrarmos o que significa ser de esquerda e de dialogarmos entre nós e com a população. Ser de esquerda não é, ou não deveria ser, apenas lançar mão de uma série de símbolos que nos são caros, ou recitar determinadas palavras, ou adotar certa retórica.
Ser de esquerda é lutar pela emancipação da classe trabalhadora e combater retrocessos, redução de direitos e pautas antipopulares, venham de onde venham. Talvez o encastelamento daqueles que muitos denominaram “a esquerda possível” tenha feito com que, para muita gente, isso tenha se perdido em algum lugar, no meio do caminho. Fique o Temer até 2018, aconteçam ou não novas eleições, nossa construção está apenas (re)começando.
Enquanto profetas do apocalipse, dedo em riste, sobem em seus banquinhos nas redes sociais propondo soluções mágicas, de unidade e consenso fragilíssimos para este terrível enrosco, penso que, para nós, um bom começo seria tentar ouvir, humildemente, o que estão a sussurrar as ruas: é com elas, mais do que entre nós, que urge construir um consenso.
Correio da Cidadania
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