Antonio Prata
Por ser escritor, vira e mexe dou entrevistas e participo de conversas com leitores. Em 20 anos de bate-papos, raríssimas vezes não me perguntaram como eu lidava com "a ditadura do politicamente correto" ou se não concordava que, por conta da "patrulha das minorias", o mundo estaria ficando cada vez mais chato.
Costumo responder que sim. O mundo tá ficando chato há séculos, desde que o iluminismo veio desaguar nessa xaropada de "liberdade, igualdade e fraternidade". Bom mesmo era na época de Genghis Khan: você podia sair galopando pelas vastidões asiáticas sem dar justificativa de nada a ninguém, empalando livremente seus inimigos, pilhando seus vilarejos, raptando suas filhas e esposas! Bons tempos! Mas aí o pessoal começou com: ah, não pode mais matar! Ah, não pode mais pilhar! Ah, não pode mais raptar! Toda essa chatice chamada civilização.
Deu no que deu: no século 21 não dá mais pra fazer uma piada com negro, zoar um gay e o pessoal já chia. Tá chato, mesmo. (Geralmente, paro por aí -e, caso ainda reste alguma dúvida, explico que estava sendo irônico, que empalar os inimigos, embora possa parecer divertido para muitos, não é um programa que eu subscreva.)
Não faço uso da ironia por achar, de forma alguma, que a liberdade de expressão seja assunto irrelevante. Um mundo em que qualquer parte ofendida por uma piada, uma ideia, uma manifestação artística pudesse calar o ofensor seria terrível. Mas o que nós vivemos no Brasil é exatamente o contrário.
Assista a meia hora de comédia stand-up nacional no YouTube, assista às propagandas de cerveja na televisão ou ouça quase qualquer propaganda de rádio (a mulher é uma idiota com um problema, o homem aparece com a solução) e fica claro que quem está em risco aqui não é a liberdade de expressão, mas as minorias. No entanto, em 20 anos conversando com jornalistas e leitores, nunca me perguntaram: "O que você acha das piadas racistas ou machistas ainda terem tanto espaço no humor brasileiro?"
Percebo essa mesma inversão na escala das preocupações ao comparar o peso da cobertura dos "black blocs" na imprensa à quase brandura das denúncias contra o vandalismo policial.
É evidente que o quebra-quebra dos mascarados e a agressão a policiais, jornalistas ou quem quer que seja devem ser divulgados e repudiados, mas achar que os inimigos mais perigosos da democracia, no momento, são 20 cretinos mascarados é mais ou menos como acreditar que os maiores culpados pela evasão fiscal no Brasil são os vendedores de maricas de bambu e Durepoxi na frente do Espaço Itaú de Cinema.
Em 2014, num protesto no Rio de Janeiro, um rojão lançado por dois manifestantes matou um cinegrafista. Naquele mesmo ano a polícia brasileira matou 3.022 pessoas. Só nos três primeiros meses de 2015 a PM paulista, então chefiada pelo secretário da Segurança Alexandre de Moraes, matou 185 pessoas, promovendo o trimestre mais sangrento em 12 anos.
Os responsáveis pelo rojão passaram 13 meses presos e, felizmente, estão sendo julgados. Já Alexandre de Moraes foi promovido a ministro da Justiça. É importante que a imprensa acompanhe os desdobramentos do primeiro caso. É incompreensível que a imprensa não se escandalize com o segundo.
Folha SP
Por ser escritor, vira e mexe dou entrevistas e participo de conversas com leitores. Em 20 anos de bate-papos, raríssimas vezes não me perguntaram como eu lidava com "a ditadura do politicamente correto" ou se não concordava que, por conta da "patrulha das minorias", o mundo estaria ficando cada vez mais chato.
Costumo responder que sim. O mundo tá ficando chato há séculos, desde que o iluminismo veio desaguar nessa xaropada de "liberdade, igualdade e fraternidade". Bom mesmo era na época de Genghis Khan: você podia sair galopando pelas vastidões asiáticas sem dar justificativa de nada a ninguém, empalando livremente seus inimigos, pilhando seus vilarejos, raptando suas filhas e esposas! Bons tempos! Mas aí o pessoal começou com: ah, não pode mais matar! Ah, não pode mais pilhar! Ah, não pode mais raptar! Toda essa chatice chamada civilização.
Deu no que deu: no século 21 não dá mais pra fazer uma piada com negro, zoar um gay e o pessoal já chia. Tá chato, mesmo. (Geralmente, paro por aí -e, caso ainda reste alguma dúvida, explico que estava sendo irônico, que empalar os inimigos, embora possa parecer divertido para muitos, não é um programa que eu subscreva.)
Não faço uso da ironia por achar, de forma alguma, que a liberdade de expressão seja assunto irrelevante. Um mundo em que qualquer parte ofendida por uma piada, uma ideia, uma manifestação artística pudesse calar o ofensor seria terrível. Mas o que nós vivemos no Brasil é exatamente o contrário.
Assista a meia hora de comédia stand-up nacional no YouTube, assista às propagandas de cerveja na televisão ou ouça quase qualquer propaganda de rádio (a mulher é uma idiota com um problema, o homem aparece com a solução) e fica claro que quem está em risco aqui não é a liberdade de expressão, mas as minorias. No entanto, em 20 anos conversando com jornalistas e leitores, nunca me perguntaram: "O que você acha das piadas racistas ou machistas ainda terem tanto espaço no humor brasileiro?"
Percebo essa mesma inversão na escala das preocupações ao comparar o peso da cobertura dos "black blocs" na imprensa à quase brandura das denúncias contra o vandalismo policial.
É evidente que o quebra-quebra dos mascarados e a agressão a policiais, jornalistas ou quem quer que seja devem ser divulgados e repudiados, mas achar que os inimigos mais perigosos da democracia, no momento, são 20 cretinos mascarados é mais ou menos como acreditar que os maiores culpados pela evasão fiscal no Brasil são os vendedores de maricas de bambu e Durepoxi na frente do Espaço Itaú de Cinema.
Em 2014, num protesto no Rio de Janeiro, um rojão lançado por dois manifestantes matou um cinegrafista. Naquele mesmo ano a polícia brasileira matou 3.022 pessoas. Só nos três primeiros meses de 2015 a PM paulista, então chefiada pelo secretário da Segurança Alexandre de Moraes, matou 185 pessoas, promovendo o trimestre mais sangrento em 12 anos.
Os responsáveis pelo rojão passaram 13 meses presos e, felizmente, estão sendo julgados. Já Alexandre de Moraes foi promovido a ministro da Justiça. É importante que a imprensa acompanhe os desdobramentos do primeiro caso. É incompreensível que a imprensa não se escandalize com o segundo.
Folha SP
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