terça-feira, 13 de setembro de 2016

Governo põe o trabalho no banco dos réus

Marcus Ianoni

O neoliberalismo é a fase do capitalismo global de vitória das cigarras sobre as formigas e sobre as políticas keynesianas e de bem-estar social do Estado. Como a dominação neoliberal é grávida de contradições e instável, a subordinação das segundas depende de contínuos esforços e lutas das primeiras.


As cigarras são o reino da financeirização, da especulação com instrumentos financeiros, como ações, títulos públicos e privados, mercados futuros de commodities, moedas, juros, índices de preços etc. Os insetos que gostam de cantar, ou seja, da vida boa segundo a fábula de Esopo, são os jogadores do cassino global, sistema econômico que institucionaliza a aposta em lucros financeiros meramente através de movimentos de preços, com pouco lastro nos investimentos na economia real e, portanto, na acumulação de capital fixo produtivo.


As formigas são o reino da produção, basicamente o capital produtivo e o trabalho assalariado. Se pensarmos em um modelo econômico e social simplificado, a hierarquia da pirâmide da sociedade neoliberal é a seguinte: rentistas (investidores em instrumentos financeiros) e financistas (intermediários financeiros, sobretudo bancos), depois a grande indústria e a produção agrícola em larga escala e, por fim, os trabalhadores. Além do Estado, na condição de provedor de direitos sociais, o trabalho, pelo direito a ele vinculado, mesmo ocupando a posição mais desfavorável no sistema de classes, é o novo denunciado posto no banco dos réus. Acusação: causador da crise econômica.


O governo Temer, que, no plano da concepção de Estado, retoma a ofensiva contra-reformista do minimalismo neoliberal, orquestra politicamente essa hierarquia na qual os trabalhadores são as classes dominadas e os especuladores e o grande capital produtivo, a classe dominante. Como diante da crise as frações produtivas dos capitalistas resolveram aliar-se ao reino das cigarras, na condição de sócias menores da financeirização, pois, por falta de estímulo macroeconômico e microeconômico à produção, são também induzidas à jogatina no reino do cassino, resta-lhes a adesão ao programa neoliberal de reforma trabalhista, como estratégia de alavancagem de suas atividades produtivas debilitadas nos mercados interno e externo.


Os empresários precisam de mercado e preço competitivo para investir. Para tentar conseguir isso, em contexto de globalização, ao invés das elites políticas e econômicas apostarem no círculo virtuoso de busca do fortalecimento da nação, dos direitos de cidadania e do sistema produtivo, sobretudo da indústria, da ampliação do emprego, da renda salarial e do mercado interno, mas também do externo, por meio de desvalorização do câmbio, baixa dos juros e política fiscal de estímulo da demanda, a opção do novo bloco no poder é viciosa, pró-cíclica, recessiva, visa cortar salários e aumentar o desemprego, para reduzir os custos do trabalho sem alterar a política macroeconômica promotora da estagnação e sem sequer compensar a produção manufatureira com política industrial etc. Trata-se de uma opção socialmente excludente, concentradora de renda e riqueza, a serviço de um hipotético protagonismo das forças de mercado (leia-se especulação e multinacionais), na verdade ilusório, pois essa via de política econômica tem falhado no mundo todo enquanto estratégia de crescimento e de melhoria do bem-estar. Enfim, busca-se ampliar mercados e diminuir os preços dos bens e serviços com o aumento da exploração do trabalho, justamente em um país onde há uma imensa disparidade entre o custa de vida e a renda ou o poder aquisitivo de grande parte dos trabalhadores. A ONU calcula que em 2020, ou seja, daqui há menos de quatro anos, 25% da população ou 55 milhões de brasileiros viverão em favelas.


Mas além da recessão, do elevado desemprego, da financeirização (que prejudica a produção e corrói a renda das famílias endividadas) e da desvalorização interna (redução dos salários reais para compensar a opção pela manutenção da taxa de câmbio nominal), a ofensiva contra o trabalho quer a reforma da legislação trabalhista.


A Constituição de 1988 estabelece o seguinte: “duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho”. No entanto, o ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, afirmou que o governo pretende ampliar a jornada de trabalho para 12 horas e a semana de trabalho para 48 horas, incluindo as horas extras. Nogueira recuou, mas é público que a questão está na agenda governamental. O regime de contratação atual é por jornada de trabalho. A reforma pretende incluir duas novas modalidades de contrato, por produtividade e por horas trabalhadas. No primeiro caso, o profissional seria contratado para executar uma atividade específica. No segundo caso, o contrato seria conforme a quantidade de horas necessárias para uma determinada atividade.


No ano passado, por iniciativa de Eduardo Cunha (cuja cassação os democratas exigem), a Câmara dos Deputados aprovou o PL 4330, da terceirização, que está agora no Senado. O governo apóia essa matéria, que pretende terceirizar não só a atividade-meio, mas também a atividade-fim, precarizando ainda mais o trabalho no país. Além disso, para dar maior estabilidade jurídico-institucional ao almejado ambiente de eliminação dos direitos trabalhistas do mercado de trabalho, o governo e os empresários defendem a primazia do negociado sobre o legislado. O que é isso? Significa que a negociação direta entre capital e trabalho passa a ser mais forte juridicamente que os direitos trabalhistas. E o que isso visa? Visa facilitar que os contratos de trabalho, nas categorias profissionais menos organizadas, com sindicatos fracos, seja mais favorável aos empregadores, que poderiam, por exemplo, modificar os sistemas de compensação de jornada de trabalho, os turnos de revezamento, os abonos e compensações, a Participação nos Lucros e Resultados (PLR), os horários de refeição, o usufruto do período de férias, as férias coletivas e assim por diante. O primeiro objetivo é desmontar a Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT, a legislação infraconstitucional. Nesse caminho, o próximo passo precisaria ser a retirada dos direitos trabalhistas da Constituição (Art. 7º).


Isso está na contramão do que a Organização Internacional do Trabalho (OIT) define como trabalho decente. “O Trabalho Decente é o ponto de convergência dos quatro objetivos estratégicos da OIT: o respeito aos direitos no trabalho [...]: (i) liberdade sindical e reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva; (ii) eliminação de todas as formas de trabalho forçado; (iii) abolição efetiva do trabalho infantil; (iv) eliminação de todas as formas de discriminação em matéria de emprego e ocupação), a promoção do emprego produtivo e de qualidade, a extensão da proteção social e o fortalecimento do diálogo social”.


Além da eliminação de direitos sociais (PEC 241/2016) e trabalhistas, Temer quer reformar a Previdência Social retirar direitos previdenciários de ativos e inativos. Parece que o governo e seus aliados no mundo dos negócios querem empurrar o país para a instabilidade política de longo prazo, revertendo a trajetória rumo a uma maior unidade nacional observada de 2003 a 2013. As medidas em curso são uma escolha política, não um imperativo objetivo. As centrais sindicais vão realizar um Dia Nacional de Paralisação em 22 de setembro contra toda essa retirada de direitos.


* Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador das relações entre Política e Economia.


Jornal do Brasil


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