Rubens Casara*
A fragilização dos direitos fundamentais e do sistema de garantias típicos do Estado Democrático de Direito só pode ser compreendida a luz da constatação de que esses fenômenos estão ligados à razão neoliberal. Ao tornar-se hegemônica, a razão neoliberal levou ao abandono da noção de Estado Democrático de Direito, que ainda sobrevive no campo retórico, mas que se tornou um produto, sem conteúdo, ultrapassado pela realidade histórica. É esse conjunto de representações, símbolos, imagens, visões de mundo e práticas, que elevam a mercadoria e o capital financeiro aos únicos valores que realmente importam, que explica a naturalização com que a população brasileira aceitou a principal característica do Estado Pós-Democrático: a ausência de limites ao exercício do poder.
Essa ausência de limites se torna possível diante da desconstitucionalização tanto do sistema político quanto das esferas social e cultural, mas sobretudo, o que se revelou fatal para o paradigma do Estado Democrático de Direito, do sistema de justiça. Essa desconstitucionalização, inerente ao marco pós-democrático, significa o abandono do sistema de vínculos legais impostos a qualquer poder, inclusive ao próprio poder jurisdicional. Pelos mais variados motivos, que não cabem aqui desenvolver, instaurou-se uma espécie de “vale tudo” argumentativo e utilitarista, no qual os fins afirmados pelos atores jurídicos – ainda que distantes da realidade – justificam a violação dos meios estabelecidos na própria Constituição da República, bem como das formas e das substâncias que eram relevantes no Estado Democrático de Direito.
Em linhas gerais, pode-se afirmar que no Estado Pós-Democrático ficou constatada a progressiva desconsideração, ou mesmo a eliminação, dos valores constitucionais das consciências de grande parcela do povo brasileiro, inclusive dos atores jurídicos. Abriu-se as portas para os chamados “poderes selvagens” (Ferrajoli), poderes sem limites ou controles. Abandonou-se o paradigma do Estado Democrático de Direito (democracia constitucional), no qual existem limites intransponíveis tanto ao exercício concreto do poder quanto à onipotência das maiorias de ocasião.
As maiorias, no Estado Democrático de Direito, seja a maioria parlamentar, seja a maioria da população, também estavam submetidos a limites e vínculos substanciais, em especial aos conteúdos previstos na Constituição da República. Isso significa que no modelo democrático existiam coisas que as agências estatais (legislativo, executivo e judiciário) e o cidadão estavam proibidos de fazer e outras que eles estavam obrigados a fazer, independentemente dos beneficiários e dos prejudicados com essas ações e omissões ditadas pela Constituição da República.
Ao lado da desconstitucionalização, o Brasil assistiu ao empobrecimento subjetivo, inerente à razão neoliberal, que se revele, para citar alguns exemplos, tanto no modelo de pensamento bélico-binário, que ignora a complexidade dos fenômenos e divide as pessoas entre “amigos” e “inimigos”, quanto no incentivo à ausência de reflexão, não raro gerada pelos meios de comunicação de massa que apresentam “verdades” que não admitem problematizações. Diante desse quadro, deu-se uma espécie de regressão pré-moderna e, com ela, o fortalecimento de fenômenos como o “messianismo” e a “demonização”.
Se a crise política brasileira de 2015/2016 que culminou com o pedido de impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, por um lado, revelou tanto a descrença na democracia representativa quanto a tradição autoritária em que a sociedade está lançada, que se revela também na desconfiança da população, incentivada pelos meios de comunicação de massa, em relação aos direitos e garantias fundamentais, vistos como obstáculos aos desejos da maioria, por outro, escancarou a receptibilidade de novos messias ou salvadores da pátria, em especial dentre aquela parcela da população que apoia a queda do governo democraticamente eleito. Manifestações populares pró impeachment deixaram claro que grande parcela da população brasileira deseja identificar entre os diversos atores sociais aqueles que encarnem a vontade popular (na verdade, a vontade e a visão de mundo dessa parcela da sociedade), mesmo que para isso tenham que atuar sem limites jurídicos ou éticos.
O Messias age em nome do povo sem mediações políticas ou jurídicas. Como percebeu Marcia Tiburi, “quem se apresenta como Messias não precisa mais de padres e nem de seguir o evangelho”. Esse “salvador da pátria” pode ser um juiz midiático (“messianismo jurídico”, para utilizar a expressão da cientista política espanhola Esther Solano) ou um militar saudosista dos regimes de exceção (“messianismo bélico”). Não importa: entre pessoas autoritárias, os heróis sempre serão autoritários. Correlato à identificação de um messias, está a demonização daqueles que pensam diferente ou que não possuem valor dentro da lógica que se extrai da razão neoliberal.
Quadros como esse, em que parcela considerável da população aposta em um Messias para liderar a luta/guerra contra o mal, são propícios à eliminação das regras e princípios que pautavam o jogo democrático, pois apontam para a possibilidade de um “governo de pessoas” (de um governo submetido a um “Messias”) em detrimento do modelo de um governo submetido a leis adequadas ao projeto constitucional. Como os “Messias” agem sem mediações ou limites, não há mais espaço para as estratégicas de “separação de poderes”, contenção do arbítrio ou para o respeito aos “direitos fundamentais”. Na pós-democracia abre-se espaço para lideranças carismáticas e pouco democráticas, em especial em sociedades como a brasileira, fortemente inserida em uma tradição autoritária.
O Estado Pós-Democrático implica em um governo no qual o poder político e o poder econômico se identificam. Assim, muda-se também a relação entre a esfera pública e a esfera privada. Com isso desaparece a própria ideia de conflito de interesses entre os projetos do poder político e os interesses privados dos detentores do poder econômico. O poder político torna-se subordinado, sem mediações, ao poder econômico: o poder econômico tornar-se o poder político. Pode-se, ainda, afirmar que essa aproximação, quase identidade, entre o poder político e o poder econômico (um complexo de interesses econômicos, financeiros, midiáticos, etc.) produz o aumento da corrupção, mas dificulta sua identificação, isso porque “muda o paradigma do próprio sistema de corrupção” (Ferrajoli), bem como desaparecem ou são drasticamente reduzidos os mecanismos de controle dos atos do governo. Antes, o corruptor (geralmente, o detentor do poder econômico) “comprava” o corrupto (detentor de parcela do poder político) para alcançar um objetivo distinto daquele que se daria no exercício legítimo do poder político. Havia, então, uma relação disfarçada entre política e economia. Agora, quando o detentor do poder econômico assume diretamente o poder político, desaparece qualquer distinção entre o poder político e o poder econômico, os interesses privados passam a ser tratados, sem qualquer mediação como “interesses públicos”. Assim, o recurso à “corrupção vulgar”, a “compra” de parlamentares ou administradores, torna-se desnecessária. Tudo isso em corrupção do sistema econômico, do princípio da livre concorrência, do sistema de proteção trabalhista e dos demais direitos sociais, do sistema de direitos e garantias liberais, da liberdade de informação, da efetiva liberdade de imprensa, etc.
O Estado Pós-Democrático é um modelo tendencialmente omisso no campo do bem-estar social, mas necessariamente forte na contenção dos indesejáveis, sejam eles a camada da população incapaz de produzir ou consumir, ou os inimigos políticos daqueles que detém o poder político e/ou econômico.
A utilização do poder penal para excluir e neutralizar os “inimigos” não é um fenômeno novo, mas se costuma apontar a experiência norte-americana nas últimas quatro décadas como o principal e mais influente exemplo da gestão penal de pessoas. Desde meados dos anos 1970, os Estados Unidos da América são os principais disseminadores de um projeto político que busca submeter todas as atividades humanas à lógica do mercado, para tanto tornou-se indispensável o incremento do Estado Penal. O crescimento do recurso ao poder penal, correlato à diminuição das políticas inclusivas, assistencialistas e de redução da desigualdade, revela-se funcional à razão neoliberal. Com isso, pode-se atribuir aos EUA, após as experiências latino-americanas que serviram de ensaio, o advento do uso neoliberal do poder penal, adequado a uma sociedade consumista, sem limites e submetida tanto ao mercado quanto ao individualismo narcísico e moralizante.
A opção política norte-americana de livrar o Estado de preocupações com a redução da desigualdade, a inclusão das minorias e o funcionamento da economia, somada à tolerância com um elevado nível de pobreza, a concentração da riqueza em poucas mãos, a decomposição do proletariado (vítima das revoluções tecnológicas levadas a cabo sem preocupações sociais) e a desregulamentação do trabalho, só é sustentável pelo agigantamento do Estado Penal. Isso pode ser comprovado nos EUA através da análise da correlação entre o nível dos auxílios sociais e a taxa de encarceramento nos estados: quanto mais são reduzidos os auxílios sociais, mais cresce o número de pessoas presas[1]. Ou seja, a razão neoliberal leva a um regime complexo que é liberal em relação aos detentores do poder político e econômico, público para o qual vigora o laissez-faire, e, ao mesmo tempo, busca anestesiar ampla parcela da população com promessas de consumo, enquanto, para os indesejáveis, os indivíduos ou grupos que não prestam segundo a razão neoliberal, reserva medidas penais de controle e exclusão, em uma espécie de paternalismo punitivo.
Dentre as funções clássicas do Estado (elaboração de leis, defesa de agressões externas, etc.), a razão neoliberal prioriza as funções ligadas à polícia e à justiça, isso porque os fins do mercado e a busca do lucro não podem encontrar obstáculos, o que faz com que o Estado precise atuar no controle e na exclusão de indivíduos ou grupos “perigosos”. A “segurança” é essencial ao consumo e à circulação de mercadorias e capitais. Mas, a “segurança” não é só um meio de assegurar o mercado e a fruição de direitos primários (vida, integridade física, patrimônio, etc.), a razão neoliberal transformou-a em mercadoria.
Ainda na linha de tratar a “segurança” como uma mercadoria valiosa a ser “vendida” tanto por agentes do Estado quanto por sociedades empresárias, a manipulação da sensação de insegurança adquire peso político no Estado Pós-Democrático. O Medo é um motor para o consumo, para o controle da população e até para golpes de Estado. É essa “sensação” de medo, de insegurança, que justifica toda a propaganda relacionada às políticas repressivas, as campanhas que visam a supressão dos direitos e garantias dos “inimigos” e também o crescimento da chamada Indústria da Segurança (venda de armas, carros blindados, câmeras de vigilância, serviços privados de segurança, etc.).
Note-se que insegurança não se confunde com sensação de insegurança, o que explica, por exemplo, o fato das pessoas que residem em áreas nobres no Rio de Janeiro, em que quase não ocorrem crimes, sentirem-se mais inseguras do que a população residente em áreas com alto índice de criminalidade, mais acostumada com a violência subjetiva e também com a violência estrutural, que é aquela inerente ao funcionamento normal das instituições na sociedade capitalista. Trocas de tiros diárias que são naturalizadas nas favelas cariocas, por exemplo, são impensáveis em Ipanema ou no Leblon.
Para dar uma resposta simbólica aos pleitos por segurança e, ao mesmo tempo, atender aos fins do mercado, dá-se o endurecimento das políticas policiais, penitenciárias e judiciárias. A retração dos investimentos sociais, que poderia ser fonte de conflitos, é compensada pela expansão das medidas penais, aplicadas cada vez com maior intensidade em resposta às mutações do campo do trabalho, ao crescente desemprego, ao desmantelamento do proletariado, à mutação da correlação de forças entre as classes, dentre outros fenômenos que se dão sob a bandeira do neoliberalismo e que estão ligados à reconfiguração do poder politico de acordo com os interesses materiais e simbólicos dos detentores do poder econômico.
Com a substituição tanto da lógica do trabalho assalariado fordista (que, em apertada síntese, funcionava, ainda que involuntariamente, como um fator de solidariedade, a partir da divisão de funções no processo de trabalho) quanto do Keynesianismo (modelo que se abria à preocupação de proteger as populações mais vulneráveis e reduzir as desigualdades) pela lógica da competição, eliminação dos concorrentes e da responsabilidade individual irrestrita, restou ao Estado a função de manter a ordem (o que significa: viabilizar o mercado).
Dos EUA para a Europa e a América Latina, instaurou-se a crença na necessidade da “guerra ao crime”, expressão que na realidade esconde um processo de exclusão ou extermínio da população indesejada e despossuída (indesejada, em regra, por ser despossuída) que se dá nos locais em que essas pessoas ocupam nas cidades. No Brasil, que adotou o modelo bélico estadunidense de reação às condutas (e pessoas) problemáticas à luz da razão neoliberal, as favelas e periferias tornaram-se o cenário em que ocorrem espetáculos promovidos pelos agentes estatais responsáveis pela “ordem pública” (leia-se: conjunto de medidas que permitem o gozo da propriedade e a manutenção da lógica do mercado), tais como as exibições do poderio bélico estatal, a troca de tiros com pessoas apontadas como criminosas e as “pacificações” (na verdade, ocupações militares seguidas da instauração, em maior ou menos grau, de regimes de exceção). Desses novos guetos, o sistema de justiça seleciona a maioria das pessoas que vai figurar como ré e acabar condenada. Nesses guetos, a “vida” é uma mercadoria de valor nem reduzido.
A gestão pelo Sistema de Justiça Criminal dessas pessoas que não interessam ao projeto neoliberal é, como percebeu Loïc Wacquant, uma “gestão pornográfica”, isto é, concebida e executada não com a finalidade de atender aos fins declarados (ou seja, de prevenir novos delitos, punir e recuperar criminosos, pacificar a sociedade, dentre outros), mas com o objetivo de ser exibida, de se tornar um espetáculo. Um espetáculo que se desenvolve tanto em sede policial quanto nos tribunais pelo Brasil a fora. Por isso, os chavões que atendem e satisfazem à natureza autoritária da sociedade brasileira, as cenas de persecução penal exageradas e dramatizadas. Repetições de roteiros e práticas, por vezes acrobáticas ou inverossímeis, que agradaram a população e os meios de comunicação de massa, mas que não passam de “um espelho que deforma a realidade até o grotesco”, por isso, “o manejo da lei-e-ordem está para a criminalidade assim como a pornografia está para as relações amorosas” (Wacquant).
No Brasil, a pornografia penal chega a índices altíssimos. Como é da essência do Estado Pós-Democrático, aposta-se na exclusão dos indivíduos indesejados. Com a redução dos direitos trabalhistas, o desmonte da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), as privatizações e a comercialização do cotidiano, resta ao poder político recorrer ao poder penal. A “mão invisível do mercado” que assegura a “sobrevivência dos mais aptos”, como se todos estivessem na mesma condição de concorrer por direitos e vantagens, encontra seu prolongamento ideológico nas campanhas por mais encarceramentos e nas premissas do Estado Penal voltado aos que recebem a etiqueta de underclass. A exclusão ou o controle daqueles que demonstram “falhas de caráter”, “deficiências comportamentais”, “preguiça para o trabalho”, “rebeldia” ou qualquer outra etiqueta neoliberal revelam-se necessários à luz da razão neoliberal.
A exclusão de parcela da população se dá através da penalização, em particular com o encarceramento (em 2015, o Brasil ostentava a quarta maior população carcerária do planeta) e também com o extermínio promovido tanto por agentes estatais (há estatísticas de que a polícia brasileira é a que mais mata em serviço e também a que mais morre) quanto por particulares, grupos paramilitares (“milícias”) e os chamados “esquadrões da morte”. Registre-se, por oportuno, que durante os governos Lula e Dilma, que alguns cientistas políticos apontam como uma “era pós-neoliberal” (Emir Sader), se deu uma transformação da regulação da população pobre no Brasil, com a conjugação de políticas inclusivas/assistencialistas (que são típicas do Welfare State) e repressivas[2].
Os indesejados para os detentores do poder econômico, porém, não se resumem àqueles incapazes de produzir ou consumir mercadorias. Existem também os inimigos políticos que representam, ou ao menos simbolizam, uma ameaça ao controle político do Estado. O recurso ao Sistema de Justiça para afastar esses obstáculos materiais e simbólicos também é um sintoma do Estado Pós-Democrático, no qual o Poder Judiciário deixa de reconhecer limites ao exercício do poder para funcionar em sentido contrário, mais precisamente como um instrumento voltado à eliminação dos obstáculos aos interesses repressivos do Estado ou do mercado. Isso se dá porque a razão neoliberal passou a condicionar a atuação dos atores jurídicos que, ainda que inconscientemente, abandonam a pretensão de servirem como garantidores dos direitos fundamentais.
*Rubens Casara é Doutor em Direito, Mestre em Ciências Penais, Juiz de Direito do TJ/RJ, Coordenador de Processo Penal da EMERJ e escreve a Coluna ContraCorrentes, aos sábados, com Giane Alvares, Marcelo Semer, Marcio Sotelo Felippe e Patrick Mariano.
[1] Ver BECKETT, Katherine; WESTERN, Bruce. Governing Social Marginality: Welfare, Incarceration and the transformation os State Policy, in Punishment e Society 3, n 1, Janeiro/2001, pp. 43-59.
[2] Inegável que os governos Lula e Dilma aderiram ao populismo penal, o que levou à aposta em respostas penais simbólicas para vários problemas sociais, com destaque a questão da corrupção.
Justificando
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