Sociólogo, do Ibase
Como entender o protagonismo do Judiciário nesta encruzilhada brasileira? Afinal, dos três poderes da institucionalidade democrática, o Judiciário deveria ser um poder passivo, chamado para interpretar e aplicar a lei, com independência e imparcialidade, mas nunca para ter um protagonismo político como o que está acontecendo entre nós. Foi o golpe do impeachment, realizado com a conivência política do judiciário, que acabou colocando-o no centro. O impeachment destituiu uma presidente eleita pela maioria, ou seja, contra a vontade da cidadania, o único poder instituinte e constituinte nas democracias. O Judiciário fez vista grossa a tal agressão e se valeu da ocasião para, na prática, assumir ele mesmo o papel de instituinte e constituinte.
Não sou jurista, apenas um pensador ativista que afirma em alto e bom som que a institucionalidade democrática, em qualquer democracia, depende do poder instituinte e constituinte da cidadania. Qualquer outra forma de intervir na institucionalidade é usurpação e golpe. Concordo com Boaventura Souza Santos que, diante dos ataques que vêm sofrendo as democracias no Brasil, na região e mundo afora, estamos entrando numa esdrúxula situação de sugar a substância da democracia mantendo a sua aparente forma, uma espécie de fascismo de novo tipo. Tudo para manter privilégios de classes dominantes e impedir a emergência de diferentes sujeitos clamando por igualdade de direitos na diversidade do que somos.
Faz-se um enorme esforço midiático para obscurecer este quadro de fundo e para nos fazer crer que, finalmente, com o Judiciário, seus juízes, procuradores, e com o apoio da Polícia Federal, estamos enfrentando as grandes mazelas do Brasil. O espetáculo da operação Lava-Jato é emblemático, mas não é o único. Os Moros e as operações se multiplicam, sempre em grande estilo de filme policial de baixa qualidade. E tudo isso vai avançando no interior do Judiciário. Chegou ao templo, sim o “templo sacralizado” do STF e seus discursos ocos de detentores da verdade jurídica escondida em suas togas. E a grande mídia martelando todo tempo, mostrando um Brasil e uma política totalmente judicializada. Trata-se, sem dúvida, de um esforço de passar que estamos no caminho do combate da corrupção e da criminalidade e que, finalmente, a justiça está sendo feita. Será? Por que ela é tão seletiva nos seus alvos políticos e na aplicação da lei? E as cadeias abarrotadas de pobres e negros, sem julgamento, não são o maior indício da iniquidade do Poder Judiciário?
Tenho tentado levantar hipóteses sobre como opera a judicialização da política e porque a mídia com o discurso favorável a tal protagonismo consegue penetrar em alguns círculos populares, exatamente os que mais sofrem pela inequidade da atuação do Judiciário. Afinal, o acesso à justiça pela maioria de população que sofre as mais diversas segregações – social, racial, institucional e territorial – é, de longe, a mais escandalosa violação do direito de igualdade da cidadania entre nós. Temos entranhado no DNA da sociedade brasileira o racismo e o patriarcalismo. O Judiciário é parte de tal mazela estruturante da sociedade, da economia e do poder entre nós. Com a democratização e a Constituição de 1988 demos alguns pequenos passos na direção de apontar caminhos de emancipação social, cultural e política, mas esbarramos com este governo golpista e sua desconstrução sistemática de direitos e de conquistas mínimas.
O que está havendo de novo não é um Judiciário diferente, mais eficiente, mais justo, mais democrático. Este sempre foi e continua sendo o poder mais oligárquico da nossa república. Trata-se de uma casta do funcionalismo, que tende a se reproduzir de pai para filho, protegida por escandalosos privilégios que aumentam exponencialmente o valor dos salários já exorbitantes recebidos pela categoria. Tudo pago pela gente, pela extremamente injusta estrutura tributária brasileira. O novo nesta conjuntura é o ativismo explícito para facilitar a mudança de correlação de forças políticas em favor do bloco de interesses dominantes, voltados à promoção do livre mercado sem grande regulação estatal e a uma aliança subordinada ao capital globalizado. Por isto, o Judiciário passou a ser uma espécie de legitimador do golpe do impeachment e apoio “respeitável” ao esforço dos grupos dominantes, amplos setores das classes médias endinheiradas e da grande mídia para consolidar uma hegemonia favorável ao grande negócio privado. A maior novidade é a própria visibilidade dada aos juízes de várias instâncias, aos promotores e policiais, sempre que suas ações sirvam para a disputa de hegemonia em curso, criminalizando quem pode ser ameaça e instaurando um clima de ódio e intolerância com todas e todos que defendem direitos iguais e respeito à diversidade.
Como é possível tal visibilidade do Judiciário, que invade o espaço público da comunicação e tudo mais? Estamos diante de um discurso obscuro, opaco, que se esconde atrás de um linguajar que pode ser técnico, mas que, na verdade, é feito para não ser entendido pelo comum dos mortais. São discursos de horas, sessões que entram noite adentro, com aquele ridículo tratamento entre si de “Sua Excelência”, mesmo quando, como humanos iguais a todos, acabam perdendo as estribeiras. “Suas Excelências” são especialistas em blá-blá-blá, com um ego daqueles maiores que a sala do Judiciário. Mas este seu falar obscurantista e cerimonioso cumpre uma função muito importante: dá uma aura sagrada ao “templo” que zela pela verdade. A única coisa semelhante ao ritual fantasmagórico do pleno do Judiciário, seus discursos e tudo o que o cerca é a missa em latim da minha infância. A gente nada entendia, mas prestava atenção e reverência sem igual ao cerimonial, acreditava. Era isto que importava. Talvez esteja aí o impacto que a difusão disto pela mídia, especialmente a televisão, está tendo no meio popular. O problema é que a maioria da cidadania é formada pelas camadas populares brasileiras. A intencionalidade que está por trás, ao dar tanta visibilidade ao Judiciário com aura de sagrado, de juízes ungidos, que sabem e não erram, precisa ser enfrentada por ser uma forma de judicialização da linguagem e do modo de pensar, para além da notícia e da política em si. E temos eleição pela frente…, logo aí em outubro.
Ao pensar nesta minha crônica semanal andei fazendo anotações sobre palavras e conceitos usados nos processos judiciais e destacados pela grande mídia. A lista ficou grande demais e, pensando bem, nada essencial para a minha reflexão. Todo mundo deve ter suas listas de palavras e expressões jurídicas tornadas fonte até de piadas. O fato é que o Judiciário vem crescendo em visibilidade, mas não tem fôlego para substituir a disputa política real. É fumaça, que qualquer sopro mais forte de democracia empurra para longe, para o seu lugar na institucionalidade e dele vai cobrar justiça baseada na igualdade.
Rio, 14/05/2018
Faz-se um enorme esforço midiático para obscurecer este quadro de fundo e para nos fazer crer que, finalmente, com o Judiciário, seus juízes, procuradores, e com o apoio da Polícia Federal, estamos enfrentando as grandes mazelas do Brasil. O espetáculo da operação Lava-Jato é emblemático, mas não é o único. Os Moros e as operações se multiplicam, sempre em grande estilo de filme policial de baixa qualidade. E tudo isso vai avançando no interior do Judiciário. Chegou ao templo, sim o “templo sacralizado” do STF e seus discursos ocos de detentores da verdade jurídica escondida em suas togas. E a grande mídia martelando todo tempo, mostrando um Brasil e uma política totalmente judicializada. Trata-se, sem dúvida, de um esforço de passar que estamos no caminho do combate da corrupção e da criminalidade e que, finalmente, a justiça está sendo feita. Será? Por que ela é tão seletiva nos seus alvos políticos e na aplicação da lei? E as cadeias abarrotadas de pobres e negros, sem julgamento, não são o maior indício da iniquidade do Poder Judiciário?
Tenho tentado levantar hipóteses sobre como opera a judicialização da política e porque a mídia com o discurso favorável a tal protagonismo consegue penetrar em alguns círculos populares, exatamente os que mais sofrem pela inequidade da atuação do Judiciário. Afinal, o acesso à justiça pela maioria de população que sofre as mais diversas segregações – social, racial, institucional e territorial – é, de longe, a mais escandalosa violação do direito de igualdade da cidadania entre nós. Temos entranhado no DNA da sociedade brasileira o racismo e o patriarcalismo. O Judiciário é parte de tal mazela estruturante da sociedade, da economia e do poder entre nós. Com a democratização e a Constituição de 1988 demos alguns pequenos passos na direção de apontar caminhos de emancipação social, cultural e política, mas esbarramos com este governo golpista e sua desconstrução sistemática de direitos e de conquistas mínimas.
O que está havendo de novo não é um Judiciário diferente, mais eficiente, mais justo, mais democrático. Este sempre foi e continua sendo o poder mais oligárquico da nossa república. Trata-se de uma casta do funcionalismo, que tende a se reproduzir de pai para filho, protegida por escandalosos privilégios que aumentam exponencialmente o valor dos salários já exorbitantes recebidos pela categoria. Tudo pago pela gente, pela extremamente injusta estrutura tributária brasileira. O novo nesta conjuntura é o ativismo explícito para facilitar a mudança de correlação de forças políticas em favor do bloco de interesses dominantes, voltados à promoção do livre mercado sem grande regulação estatal e a uma aliança subordinada ao capital globalizado. Por isto, o Judiciário passou a ser uma espécie de legitimador do golpe do impeachment e apoio “respeitável” ao esforço dos grupos dominantes, amplos setores das classes médias endinheiradas e da grande mídia para consolidar uma hegemonia favorável ao grande negócio privado. A maior novidade é a própria visibilidade dada aos juízes de várias instâncias, aos promotores e policiais, sempre que suas ações sirvam para a disputa de hegemonia em curso, criminalizando quem pode ser ameaça e instaurando um clima de ódio e intolerância com todas e todos que defendem direitos iguais e respeito à diversidade.
Como é possível tal visibilidade do Judiciário, que invade o espaço público da comunicação e tudo mais? Estamos diante de um discurso obscuro, opaco, que se esconde atrás de um linguajar que pode ser técnico, mas que, na verdade, é feito para não ser entendido pelo comum dos mortais. São discursos de horas, sessões que entram noite adentro, com aquele ridículo tratamento entre si de “Sua Excelência”, mesmo quando, como humanos iguais a todos, acabam perdendo as estribeiras. “Suas Excelências” são especialistas em blá-blá-blá, com um ego daqueles maiores que a sala do Judiciário. Mas este seu falar obscurantista e cerimonioso cumpre uma função muito importante: dá uma aura sagrada ao “templo” que zela pela verdade. A única coisa semelhante ao ritual fantasmagórico do pleno do Judiciário, seus discursos e tudo o que o cerca é a missa em latim da minha infância. A gente nada entendia, mas prestava atenção e reverência sem igual ao cerimonial, acreditava. Era isto que importava. Talvez esteja aí o impacto que a difusão disto pela mídia, especialmente a televisão, está tendo no meio popular. O problema é que a maioria da cidadania é formada pelas camadas populares brasileiras. A intencionalidade que está por trás, ao dar tanta visibilidade ao Judiciário com aura de sagrado, de juízes ungidos, que sabem e não erram, precisa ser enfrentada por ser uma forma de judicialização da linguagem e do modo de pensar, para além da notícia e da política em si. E temos eleição pela frente…, logo aí em outubro.
Ao pensar nesta minha crônica semanal andei fazendo anotações sobre palavras e conceitos usados nos processos judiciais e destacados pela grande mídia. A lista ficou grande demais e, pensando bem, nada essencial para a minha reflexão. Todo mundo deve ter suas listas de palavras e expressões jurídicas tornadas fonte até de piadas. O fato é que o Judiciário vem crescendo em visibilidade, mas não tem fôlego para substituir a disputa política real. É fumaça, que qualquer sopro mais forte de democracia empurra para longe, para o seu lugar na institucionalidade e dele vai cobrar justiça baseada na igualdade.
Rio, 14/05/2018
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