A imprensa noticiou uma forte reação de setores do agronegócio contra o enredo sobre os povos do Xingu que a Imperatriz Leopoldinense vai apresentar no carnaval 2017. Um ponto em especial provocou a ira dos ruralistas: a descrição dos indígenas como defensores do meio ambiente em oposição a fazendeiros, ao uso de agrotóxicos e aos efeitos devastadores ao meio ambiente causados por Belo Monte. Além de notas de repúdio, foi prometida uma CPI para apurar o financiamento da escola.
O episódio é muito mais do que uma aparente insatisfação com aspectos da sinopse do enredo. Trata-se de um sintoma do atual estágio do processo de violação de direitos dos povos indígenas no país, sentido em todas as esferas do Estado brasileiro. Há uma ofensiva para esvaziar as conquistas da Constituição de 1988, mesmo que isso implique o etnocídio de grupos que se insurgem contra isso.
O Congresso tem sido uma avenida em que o projeto de Estatuto das Sociedades Indígenas está parado na concentração há décadas e por onde só evoluem projetos que tratem da criminalização de práticas socioculturais, da exploração de recursos minerais e hídricos em terras indígenas e da revisão dos processos de demarcação. No Executivo, o enfraquecimento da Funai, que já vinha ocorrendo paulatinamente, parece agora ser um projeto de governo, a ser executado por adversários da causa indígena. E o sistema de Justiça continua fechado ao respeito aos modos de vida dos índios, como demonstra a fixação de um marco temporal para limitar o direito à terra, segundo o qual só fazem jus ao território quem nele estava em 5 de outubro de 1988, época em que ainda eram vistos como seres inferiores.
Enquanto isso, a violência contra os povos indígenas vem aumentando, tendo o número de mortes por assassinato saltado de 92, em 2007, para 138, em 2014, conforme dados do Conselho Indigenista Missionário. Após visita ao país em 2016, a relatora da ONU sobre direitos indígenas apontou preocupação com o cenário e destacou que os povos indígenas enfrentam hoje riscos mais graves do que em qualquer outra época nesta Nova República.
Submetidos a violências não apenas reais, mas também simbólicas, os povos indígenas e as suas manifestações sempre foram silenciados ou tratados como não existentes, salvo quando lhes cabia uma posição folclorizada, subalternizada, idealizada ou distanciada, como aquela que retrata as chegadas das caravelas, a naturalização da inferioridade e o triunfo da mestiçagem. A “novidade” dos últimos tempos está na ofensiva a qualquer preço para silenciar qualquer discurso que exija o cumprimento da Constituição. Um exemplo é a CPI da Funai, que, sem fato determinado a apurar, investiga antropólogos e põe em xeque as demarcações.
O incômodo com parte do enredo se deu porque ele mostra os povos do Xingu como vítimas do presente, e não de um passado longínquo. São rejeitados por um projeto excludente de país, que não respeita a natureza e nem seus modos de vida, situação também vivenciada por muitos outros povos tradicionais. É inspirador, portanto, ver o carnaval, cultura popular por excelência, deixar de veicular acriticamente a versão do colonizador e dar voz aos indígenas eternamente silenciados. Se descolonizar é preciso, como diz o samba, o meu sonho de ser feliz vem de lá de Ramos.
Julio José Araujo Junior é procurador da República, coordenador do Grupo de Trabalho Povos Indígenas e Regime Militar, da 6ª Câmara do MPF
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