Luiz Eduardo Soares
A sociedade brasileira atravessa turbulências originais. Depois do deslocamento de placas tectônicas em 2013, com a emergência massiva de novos protagonismos, muita água passou por baixo da ponte, e também por cima dela, com o ímpeto de um tsunami que ameça levá-la na enxurrada –a ela e a todas as demais pontes, não só retóricas. O ódio tomou o poder e reina, soberano.
Na falta de projetos alternativos, a insurreição sublimada faz tremer os pilares da sociabilidade e das instituições. Em síntese, eis o que, a meu juízo, ocorreu: Dilma foi reeleita negando a crise e prometendo dar continuidade à era de prosperidade e redução das desigualdades –é inegável que os dois mandatos de Lula constituíram um marco histórico, nesse sentido (os dados são eloquentes), graças ao casamento feliz entre a virtude (a visão, a ousadia e a habilidade do presidente) e a fortuna (o contexto internacional tão favorável).
Entretanto, a crise impôs-se, em toda a sua extensão, e a presidente trocou seu programa por uma política ortodoxa de austeridade, convocando Joaquim Levy para pilotar cortes drásticos, nas mais diversas áreas, comprimindo ainda mais os investimentos. A despeito do cavalo de pau na economia, Dilma não reconheceu a gravidade de seus erros e não abordou com franqueza as razões para a mudança de rumo. Assim como seu partido, o PT, não fez qualquer auto-crítica no que diz respeito a envolvimentos de seus membros em corrupção.
A tentativa de Dilma era óbvia: buscar uma repactuação com as elites econômicas –acenando com austeridade e juros altos (leia-se: elevados retornos aos rentistas), sob o comando de um técnico “confiável”– e preservar, no Congresso, as alianças com as forças conservadoras e fisiológicas que a reelegeram. Com essa finalidade franqueou a arca de Noé de seu ministério a cobras e lagartos. A presidente sabia que a única verdadeira garantia de estabilidade política, isto é, de manutenção das alianças forjadas desde a era Lula e, naquela conjuntura pós-eleitoral, reafirmadas e ampliadas, lhe seria dada por três fatores interligados: os resultados econômicos, em especial o comportamento do emprego; o apoio das elites, refletida na postura da grande mídia; e a sustentação popular.
Havia, entretanto, uma variável cuja relevância estratégica lhe escapou e que estava destinada a inviabilizar qualquer cálculo racional, no plano político –cálculo tradicionalmente fundado nas expectativas de movimentos futuros orientados para a maximização de capital político, no mercado de votos. Refiro-me à operação Lava-Jato e seus efeitos imprevisíveis. As investigações introduziram incerteza em elevada potência, tornando inviáveis as prospecções relativas ao futuro das carreiras dos atores envolvidos no jogo da política. Como as decisões do presente dependem de expectativas (onde e como ganho mais com menos riscos para me reeleger ou alçar voos mais altos?) e as previsões desmancham no ar, o controle cognitivo sobre a probabilidade dos comportamentos alheios é neutralizado. Como esse controle –que é sempre relativo, mas, em geral, altamente provável– é a bússola das próprias decisões, o governo perde o rumo (o norte, a bússola, o domínio sobre o campo das expectativas, que lhe permite jogar e atrair aliados).
Um pacto seguro com as elites e a mídia poderia ter sido feito, entregando-se o ministério da fazenda a alguém como Henrique Meireles, e o Banco Central a um representante do sistema financeiro. A presidente ficou no meio do caminho, com Levy sob rédeas curtas, cerceado pela manutenção de Tombini no BC. A sinalização, portanto, não foi consistente e não convenceu as elites. Além disso, a economia desandando, celeremente, o desemprego aumentando, a tendência de redução das desigualdades e de ampliação da renda das camadas populares sendo revertida, todo esse quadro negativo corroeu a credibilidade do governo nas bases da sociedade. A classe média sofreu intensamente os efeitos da crise. E o discurso de fundo ou a trilha sonora do desastre era a lava-jato, recuperando crédito para a Justiça mas injetando descrédito na política e em sua institucionalidade.
Dilma por um fio, só lhe restava uma saída: abrir fogo cerrado contra a operação Lava-Jato, o que teria sido possível fazer, desde que se contasse com uma pactuação que envolvesse a mídia, o que, por sua vez, só seria viável se o pacto saciasse a demanda das elites pelas reformas trabalhista e previdenciária, e implicasse a entrega do leme da economia a seus representantes diretos.
O pacto envolveria o Congresso, ansioso pelo fim da Lava-Jato. Para as esquerdas e as camadas médias, vender-se-ia a justificativa garantista (aliás, legítima), e eméritos garantistas de esquerda seriam convocados a pronunciar-se contra os abusos e as violações (muitos deles reais). Enquanto isso, o Congresso gestaria medidas para neutralizar a operação Lava-Jato: (a) a proibição de delações de quem estiver preso; (b) o fim da prisão após julgamento em segunda instância; (c) anistia para Caixa 2; (d) promulgação de leis coibindo o abuso de autoridade, cujo sentido seria ampliado a ponto de incluir acusações por parte do MP que não se convertessem em condenação, em juízo –talvez não fosse preciso ir tão longe, uma vez que essa lei, na prática, destituiria o MP de sua função constitucional precípua. Paralelamente, o Ministério da Justiça promoveria sutis e cirúrgicas transferências de policiais federais.
Meireles, Ilan Goldfajn, reformas conservadoras, acordão no Congresso, unindo todos os potenciais acusados na Lava-Jato, eis aí os ingredientes do grande pacto que Dilma poderia ter liderado para salvar o mandato, com o apoio das elites, do “mercado” e da grande mídia. Claro que ela sabia disso e, por esse motivo, será, um dia, reconhecida como meritória e memorável sua decisão de sacrificar-se, sacrificar seu mandato, recusando-se a conduzir um processo tão degradado e degradante, que consagraria a corrupção no Brasil e determinaria o rompimento definitivo das instituições com a sociedade.
Dilma negou-se a caminhar na direção do pacto sinistro, mas Temer estava a postos, pronto para liderá-lo, apoiado por seus correligionários Eduardo Cunha, Jucá, Sarney, Geddel, Moreira Franco, Padilha, Renan e Lobão, entre outros. O pacto ao qual Dilma resistiu é o acordo que, hoje, nos governa. Sua execução está em curso. Todos os que aprovaram o impeachment de Dilma são responsáveis por sua implementação. O discurso de que, primeiro alvejaríamos Dilma e o PT, depois Temer e os demais, era ingênuo ou manipulador, e sempre cúmplice. O histerismo anti-petista que generaliza acusações cumpre o papel de mascarar o fato de que o núcleo duro da corrupção política no Brasil organiza-se há décadas, fora do PT. O pecado de segmentos do partido dos trabalhadores foi associar-se aos profissionais do fisiologismo.
Talvez o mais dramático seja o comportamento de boa parte das esquerdas, que teima em opor-se à Lava-Jato –paradoxalmente, aliando-se a Temer e seus parceiros–, definindo-a como manobra anti-petista, violadora de direitos. As violações houve, certamente, mas não a resumem, ainda que maculem alguns de seus movimentos. Ocorre que, se o pacto sinistro vingar e a Lava-Jato vier a ser efetivamente esvaziada, as acusações desses setores, relativas ao bias da Lava-Jato, acabarão sendo justificadas, a posteriori, na prática, uma vez que a operação teria sido obstruída antes de identificar os tentáculos da corrupção no PSDB e nos demais partidos adversários do PT. A profecia se auto-cumpriria.
Por outro lado, é patético que as camadas médias que foram às ruas contra Dilma e o PT, e em defesa da Lava-Jato, agora aquietem-se, pusilânimes, ainda que as ameaças à continuidade da operação nunca tenham sido tão graves e poderosas. Esse fato parece confirmar a tese de que o amor das camadas médias da sociedade e da mídia conservadora pelas investigações era grande quando declará-lo significava acuar o governo Dilma. Ou seja, o amor foi fugaz e instrumental. Mas talvez seja mais justo com os que foram às ruas dizer que eles e elas não instrumentalizaram, mas, isso sim, foram instrumentalizados. Os movimentos da direita que incendiaram paixões e mobilizaram multidões, graças ao apoio despudorado da mídia tradicional, demonstram, com seu recolhimento pusilânime, que têm tanto compromisso com a verdade e a Justiça quanto seus representantes no Congresso. Em nossa República acaju, triunfou o cinismo.
Luiz Eduardo Soares é antropólogo, escritor, dramaturgo e professor de filosofia política da UERJ. Foi secretário nacional de segurança pública. Seu livro mais recente é “Rio de Janeiro; histórias de vida e morte” (Companhia das Letras, 2015).
Justificando
A sociedade brasileira atravessa turbulências originais. Depois do deslocamento de placas tectônicas em 2013, com a emergência massiva de novos protagonismos, muita água passou por baixo da ponte, e também por cima dela, com o ímpeto de um tsunami que ameça levá-la na enxurrada –a ela e a todas as demais pontes, não só retóricas. O ódio tomou o poder e reina, soberano.
Na falta de projetos alternativos, a insurreição sublimada faz tremer os pilares da sociabilidade e das instituições. Em síntese, eis o que, a meu juízo, ocorreu: Dilma foi reeleita negando a crise e prometendo dar continuidade à era de prosperidade e redução das desigualdades –é inegável que os dois mandatos de Lula constituíram um marco histórico, nesse sentido (os dados são eloquentes), graças ao casamento feliz entre a virtude (a visão, a ousadia e a habilidade do presidente) e a fortuna (o contexto internacional tão favorável).
Entretanto, a crise impôs-se, em toda a sua extensão, e a presidente trocou seu programa por uma política ortodoxa de austeridade, convocando Joaquim Levy para pilotar cortes drásticos, nas mais diversas áreas, comprimindo ainda mais os investimentos. A despeito do cavalo de pau na economia, Dilma não reconheceu a gravidade de seus erros e não abordou com franqueza as razões para a mudança de rumo. Assim como seu partido, o PT, não fez qualquer auto-crítica no que diz respeito a envolvimentos de seus membros em corrupção.
A tentativa de Dilma era óbvia: buscar uma repactuação com as elites econômicas –acenando com austeridade e juros altos (leia-se: elevados retornos aos rentistas), sob o comando de um técnico “confiável”– e preservar, no Congresso, as alianças com as forças conservadoras e fisiológicas que a reelegeram. Com essa finalidade franqueou a arca de Noé de seu ministério a cobras e lagartos. A presidente sabia que a única verdadeira garantia de estabilidade política, isto é, de manutenção das alianças forjadas desde a era Lula e, naquela conjuntura pós-eleitoral, reafirmadas e ampliadas, lhe seria dada por três fatores interligados: os resultados econômicos, em especial o comportamento do emprego; o apoio das elites, refletida na postura da grande mídia; e a sustentação popular.
Havia, entretanto, uma variável cuja relevância estratégica lhe escapou e que estava destinada a inviabilizar qualquer cálculo racional, no plano político –cálculo tradicionalmente fundado nas expectativas de movimentos futuros orientados para a maximização de capital político, no mercado de votos. Refiro-me à operação Lava-Jato e seus efeitos imprevisíveis. As investigações introduziram incerteza em elevada potência, tornando inviáveis as prospecções relativas ao futuro das carreiras dos atores envolvidos no jogo da política. Como as decisões do presente dependem de expectativas (onde e como ganho mais com menos riscos para me reeleger ou alçar voos mais altos?) e as previsões desmancham no ar, o controle cognitivo sobre a probabilidade dos comportamentos alheios é neutralizado. Como esse controle –que é sempre relativo, mas, em geral, altamente provável– é a bússola das próprias decisões, o governo perde o rumo (o norte, a bússola, o domínio sobre o campo das expectativas, que lhe permite jogar e atrair aliados).
Um pacto seguro com as elites e a mídia poderia ter sido feito, entregando-se o ministério da fazenda a alguém como Henrique Meireles, e o Banco Central a um representante do sistema financeiro. A presidente ficou no meio do caminho, com Levy sob rédeas curtas, cerceado pela manutenção de Tombini no BC. A sinalização, portanto, não foi consistente e não convenceu as elites. Além disso, a economia desandando, celeremente, o desemprego aumentando, a tendência de redução das desigualdades e de ampliação da renda das camadas populares sendo revertida, todo esse quadro negativo corroeu a credibilidade do governo nas bases da sociedade. A classe média sofreu intensamente os efeitos da crise. E o discurso de fundo ou a trilha sonora do desastre era a lava-jato, recuperando crédito para a Justiça mas injetando descrédito na política e em sua institucionalidade.
Dilma por um fio, só lhe restava uma saída: abrir fogo cerrado contra a operação Lava-Jato, o que teria sido possível fazer, desde que se contasse com uma pactuação que envolvesse a mídia, o que, por sua vez, só seria viável se o pacto saciasse a demanda das elites pelas reformas trabalhista e previdenciária, e implicasse a entrega do leme da economia a seus representantes diretos.
O pacto envolveria o Congresso, ansioso pelo fim da Lava-Jato. Para as esquerdas e as camadas médias, vender-se-ia a justificativa garantista (aliás, legítima), e eméritos garantistas de esquerda seriam convocados a pronunciar-se contra os abusos e as violações (muitos deles reais). Enquanto isso, o Congresso gestaria medidas para neutralizar a operação Lava-Jato: (a) a proibição de delações de quem estiver preso; (b) o fim da prisão após julgamento em segunda instância; (c) anistia para Caixa 2; (d) promulgação de leis coibindo o abuso de autoridade, cujo sentido seria ampliado a ponto de incluir acusações por parte do MP que não se convertessem em condenação, em juízo –talvez não fosse preciso ir tão longe, uma vez que essa lei, na prática, destituiria o MP de sua função constitucional precípua. Paralelamente, o Ministério da Justiça promoveria sutis e cirúrgicas transferências de policiais federais.
Meireles, Ilan Goldfajn, reformas conservadoras, acordão no Congresso, unindo todos os potenciais acusados na Lava-Jato, eis aí os ingredientes do grande pacto que Dilma poderia ter liderado para salvar o mandato, com o apoio das elites, do “mercado” e da grande mídia. Claro que ela sabia disso e, por esse motivo, será, um dia, reconhecida como meritória e memorável sua decisão de sacrificar-se, sacrificar seu mandato, recusando-se a conduzir um processo tão degradado e degradante, que consagraria a corrupção no Brasil e determinaria o rompimento definitivo das instituições com a sociedade.
Dilma negou-se a caminhar na direção do pacto sinistro, mas Temer estava a postos, pronto para liderá-lo, apoiado por seus correligionários Eduardo Cunha, Jucá, Sarney, Geddel, Moreira Franco, Padilha, Renan e Lobão, entre outros. O pacto ao qual Dilma resistiu é o acordo que, hoje, nos governa. Sua execução está em curso. Todos os que aprovaram o impeachment de Dilma são responsáveis por sua implementação. O discurso de que, primeiro alvejaríamos Dilma e o PT, depois Temer e os demais, era ingênuo ou manipulador, e sempre cúmplice. O histerismo anti-petista que generaliza acusações cumpre o papel de mascarar o fato de que o núcleo duro da corrupção política no Brasil organiza-se há décadas, fora do PT. O pecado de segmentos do partido dos trabalhadores foi associar-se aos profissionais do fisiologismo.
Talvez o mais dramático seja o comportamento de boa parte das esquerdas, que teima em opor-se à Lava-Jato –paradoxalmente, aliando-se a Temer e seus parceiros–, definindo-a como manobra anti-petista, violadora de direitos. As violações houve, certamente, mas não a resumem, ainda que maculem alguns de seus movimentos. Ocorre que, se o pacto sinistro vingar e a Lava-Jato vier a ser efetivamente esvaziada, as acusações desses setores, relativas ao bias da Lava-Jato, acabarão sendo justificadas, a posteriori, na prática, uma vez que a operação teria sido obstruída antes de identificar os tentáculos da corrupção no PSDB e nos demais partidos adversários do PT. A profecia se auto-cumpriria.
Por outro lado, é patético que as camadas médias que foram às ruas contra Dilma e o PT, e em defesa da Lava-Jato, agora aquietem-se, pusilânimes, ainda que as ameaças à continuidade da operação nunca tenham sido tão graves e poderosas. Esse fato parece confirmar a tese de que o amor das camadas médias da sociedade e da mídia conservadora pelas investigações era grande quando declará-lo significava acuar o governo Dilma. Ou seja, o amor foi fugaz e instrumental. Mas talvez seja mais justo com os que foram às ruas dizer que eles e elas não instrumentalizaram, mas, isso sim, foram instrumentalizados. Os movimentos da direita que incendiaram paixões e mobilizaram multidões, graças ao apoio despudorado da mídia tradicional, demonstram, com seu recolhimento pusilânime, que têm tanto compromisso com a verdade e a Justiça quanto seus representantes no Congresso. Em nossa República acaju, triunfou o cinismo.
Luiz Eduardo Soares é antropólogo, escritor, dramaturgo e professor de filosofia política da UERJ. Foi secretário nacional de segurança pública. Seu livro mais recente é “Rio de Janeiro; histórias de vida e morte” (Companhia das Letras, 2015).
Justificando
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