quarta-feira, 2 de março de 2016

As Veredas do Mínimo Sertão: "Outros Cantos", de Maria Valéria Rezande


Alfredo Monte

“Nem pensei em voltar para a passagem no muro. Deus atirou-me para dentro de seu samburá de estreita boca, já não me debato. Soube logo que subiria, mas não por qual caminho, até que vi, pouco mais adiante, numa parede suja daquele mesmo beco, a marca do menino magro, fresca e brilhante, um fio de vermelho líquido ainda escorrendo. O único sinal que eu, vagamente, podia interpretar, neste mundo estranho onde nunca antes sequer imaginei penetrar. Meti-me pela viela que, alguns metros adiante, ao topar com uma parede de zinco e madeira carcomida, quebrava-se para a esquerda. Ninguém. Tive a impressão de que já não havia mais ninguém nesse labirinto, só eu e o menino pichador, porque pouco antes de que o caminho se bifurcasse, mais acima, vi outra vez a rubra assinatura. Sem outro fio senão aquele para guiar-me, eu o segui. Hesitei na bifurcação, mas ela estava lá outra vez, a marca, dizendo-me que lado escolher, direção que tomei sem mais duvidar, entranhando-me na armadilha das ruelas intrincadas”. (Trecho de O Muro, de Maria Valéria Rezende)

“… por estar mais familiarizado com o procedimento que consiste em negar tudo—para depois ver se em seguida se pode reafirmar alguma coisa—e, em desfazer tudo—para ver depois tudo se refazer em outro plano ou de outra forma…” (Trecho de A Obra em Negro, de Marguerite Yourcenar)

(Uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 1° de março de 2016)

“Havia que aprender tudo para poder ensinar. Não havia fórmula já testada nem material a seguir. Inventar fazendo, era o jeito”. Depois de ganhar o Jabuti de livro do ano, com Quarenta Dias, Maria Valéria Rezende lança um novo romance em meio à nostalgia do período autoritário que assola o país: Outros Cantos, onde registra as transformações sofridas pela sociedade brasileira nas últimas décadas.

Trata-se de uma narrativa-palimpsesto: Maria, a narradora, empreende uma viagem de ônibus pelo sertão pós-2002, impactada pelo seu desenvolvimento, inclusive nos piores aspectos (consumismo, uniformização, diluição da cultura popular autentica), e numa longa noite entre vigília e sonolência, raspa camadas da memória de sua primeira experiência sertaneja em plena ditadura, quando se esconde num finalzinho de mundo chamado Olho d’Água, como militante subversiva ao regime militar, com a missão de preparar a futura—mas incerta—vinda de outros revolucionários. O tempo passa, sem notícias do exterior; sem orientação e objetivos a longo prazo, ela descobre “um mundo ao rés do chão”, “o território das coisas mínimas”, a opressão da materialidade do existir, da necessidade de não desperdiçar nada, que rege o cotidiano de um lugar onde a miséria é soberana. Contrariando estereótipos consagrados pela literatura e pela indústria cultural, também descobre a vitalidade, o humor e a alegria desse povo, apesar do fatalismo de suas crenças e relações e da meta (ainda utópica, infelizmente) de emancipá-lo: “Pareciam todos ter nascido já sabendo o que fazer, o que cantar, dançar, recitar, eles, a face festiva, o contraponto da natureza hostil ao seu redor”.

Além da sobreposição de tempos diversos do sertão, Outros Cantos, também aproxima instancias espaciais diversas: temos cidades “desenvolvidas” do vasto mundo, como Paris e Rio de Janeiro, até outros rincões de penúria e populações explorada por onde a viajada Maria teve experiências que colorem ainda mais os fios do tear de sua permanência em Olho d’Água – o deserto argelino, o México. Não falta sequer uma misteriosa e multiforme figura masculina a desassossegá-la em todos os momentos, originando uma coleção de objetos-talismãs.

Portanto, são muitas as viagens que o leitor poderá percorrer nas páginas – porventura as mais belas que a grande escritora santista já produziu, em especial as 50 primeiras. Em sua memória, contudo, será impossível de raspar alguns trechos extraordinários do sertão-palimpsesto: a tortura e a beleza do trabalho com o tear e suas tinturas, a projeção cinematográfica em Olho d’Água, as festas que marcam o final de ano e da lida (cujo material é escondido do Dono – pois há um latifundiário – e seus jagunços). A precisão do texto e as formulações definitivas sobre as “lições de coisas” (para usar um título de Drummond) e seres fazem com que essa veterana de muitas veredas da luta ao lado do povo se aproxime de uma antípoda (no espectro político, não no talento), também apaixonada por viagens e obrigada a uma vida imóvel e vertiginosa em suas descobertas: a conservadora Marguerite Yourcenar (1903-1986), em obras como Memórias de Adriano e A Obra em Negro. Findo o livro, temos a forte impressão que as aventuras de Maria jamais terão um desfecho.


TRECHO SELECIONADO:

”Trabalhava-se ali tanto quanto nunca pensei que se pudesse trabalhar. O caminhão chegava aos sábados, carregado de fio de algodão cru. Aos domingos, todos, menos os poucos vaqueiros, permaneciam escondidos em suas casas, por respeito estrito à lei divina do repouso semanal ou pela exaustão feita lei, e a rua se despovoava como as cidades sagradas do M’Zab às sextas-feiras. Mas na madrugada do dia seguinte, neste outro vale, de areia entre paredes brancas, recomeçava-se um ciclo eterno: velhas banheiras de ágate rachado e salpicado de ferrugem, sobre suas patas de animais estrangeiros, resgatadas de algum ferro-velho de antiga vida urbana, serviam como cubas para tingir o fio que devia ferver por horas, em água salobra e anilinas corrosivas, sobre fogueiras alimentadas sem cessar pela lenha pobre, rapidamente consumida, exigindo um constante vaivém de meninos, fileira de formigas bípedes.

Mexer, sem parar, o fio e a tinta borbulhante, retirar com longas varas as meadas coloridas, fumegantes, e pô-las a secar sobre uma sucessão de cavaletes rústicos, desenlear o fio, já seco, e enrolá-lo em grandes bolas para depois urdir os liços, entremeando as cores em longas listras, transformar o povoado naquele espantoso arco-íris desencontrado, era trabalho de macho. Começava ao primeiro anúncio de luz do dia, no meio da única rua, e prosseguia até que eles já não pudessem mais ver as próprias mãos e o som do aboio viesse rendê-los, interrompendo-se apenas com o sol a pino, quando desapareciam todos por cerca de duas horas, prostrados pela fome e pelo calor. Em uma semana estava pronta a urdidura para transformar o fio bruto nas redes que me haviam embalado a infância e cuja doçura em nada denunciava o esforço sobre-humano e a dor que custavam.

Às mulheres cabia a estranha dança para mover os enormes teares, prodígios de marcenaria, encaixes perfeitos, sem uma única peça de metal, apenas suportes, traves, cunhas, pentes e liços, chavetas e cavilhas de jacarandá, madeira tanto mais preciosa quanto de mais longe vinha, os pés saltando de um para outro dos quatro pedais que levantavam alternadamente os liços, os braços a lançar as navetas e a puxar o fio, estendendo faixas de cor, a fazer surgir o xadrez das redes que eu tão bem conhecia, feitas berços no alpendre de meu avô, feitas mercadoria nas estreitas ilhas de verdura no meio das avenidas da metrópole, braços tão rápidos que pareciam ser muito mais de dois, transfigurando aquelas sertanejas em deusas indianas.

A cadência para seu trabalho e para o trabalho dos outros vinha do baque ritmado dos liços e dos pés, do assobio das lançadeiras e do rascar dos pentes, que escapava pelas portas e janelas dos quartos de tear que constituíam quase toda a casa de cada família. A melodia, quando havia, era a da cantilena das velhas e das meninas, assentadas em tocos de troncos tortos, à pobre sombra das algarobas, a trançar varandas e punhos para as redes.

Era das mulheres também a tarefa infindável de buscar água potável na única fonte a escorrer, preguiçosa, em oásis com coqueiral, mancha verde à meia encosta da colina que se elevava sozinha na paisagem, assim como a obrigação de controlar o movimento do burro a mover a nora para fazer subirem os alcatruzes de barro do fundo de um poço estreito, trazendo a água salobra, único bem que lhes dava fielmente aquele fundo de mar há milênios esvaziado. O canto sob as algarobas era sinal de que já estavam os potes cheios, as cabras amarradas a algum esqueleto de arbusto, o fogo aceso sob os telheiros entre as casas e os currais, moído o milho e consumido o cuscuz da madrugada, o feijão a ferver nos caldeirões de barro enegrecido, ou sinal de que já se haviam esvaziado os pratos de sua parca mistura de feijão com farinha, talvez enriquecida por laivos de sabor da carne de um preá ou de uma rolinha, saídos do bisaco de algum vaqueiro. Aquelas tarefas também eu tinha de aprender a cumprir”.

Monte de Leituras
Blog do Alfredo Monte 


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