Por Pedro Veríssimo.
Tudo parece ir bem quando estamos num condomínio. Os jardins impecáveis anunciam as casas ou prédios bem conservados. O asfalto sempre novo, as calçadas sem buracos e as ruas vazias. Tudo sinalizado. Limpo. A polícia presente dá o clima de segurança. Para entrar você será fichado e filmado. Está no sistema. Essa é a lógica do condomínio de Christian Dunker. Toda ordem depende do síndico e, se por acaso a felicidade não vier, é porque tem alguém “furtando nosso gozo”.
Em Violência: seis reflexões laterais, Žižek falará que no capitalismo o que possibilita nosso convívio (supostamente) harmonioso é o pressuposto de que ele “não é justo”. Pois só assim, justificando nosso fracasso ao acaso, conseguiremos manter nossa vivência. Diz ele:
“A exigência de justiça é assim, em última análise, a exigência de que o gozo excessivo do Outro seja limitado, de maneira que toda a gente tenha acesso a uma jouissance igual. […] Uma vez que não é possível uma jouissance igual, o que é imposto, em vez de uma igual partilha, é a proibição”. (Violência, p.79)
O síndico, no nosso caso, é aquele que normaliza o gozo, que gere a vida. O problema é que a política foi reduzida à mesma “lógica do condomínio”, elegemos cada vez mais síndicos e menos políticos. A tal da “governabilidade”, dos governos de conciliação, refletem justamente esse esvaziamento. Segundo Dunker:
“Quando a forma como se deve controlar a distribuição da renda mínima torna-se mais importante que a própria renda mínima, ou quando decisões técnico-regulativas, tais como a taxa referencial de juros torna-se o termômetro ideológico da economia, ou ainda quando o programa de transformação social aparece, prioritariamente, como um programa de reformas legais e constitucionais, e ademais quando a vida política do país parece depender de Comissões Parlamentares de Inquérito, não deveríamos perguntar se não estamos esperando demasiado de nossas ilusões normativas, e se afinal estas não seriam um efeito de nossa aderência, inconsciente, à lógica do condomínio?”
Acontece que a lógica capitalista é a de incorporação permanente. Não há espaço para a crítica. Maurizio Lazzarato dirá a respeito da sociedade disciplinar, que “a docilização dos corpos tem a função de impedir qualquer bifurcação, roubando dos atos, das condutas, dos comportamentos qualquer possibilidade de variação, toda a sua imprevisibilidade” (p.69), e mais a frente que “a sensação de impotência e de aborrecimento que todo capitalismo contemporâneo nos causa foi criada pelo afastamento da dinâmica do acontecimento” (p.102). Aqui podemos entender como acontecimento aquilo que rompe uma narrativa e cria um novo processo de verdade. Em Para uma nova teoria do sujeito, Alain Badiou falará em interrupção de uma repetição e citará como exemplo “a aparição, com Ésquilo, da tragédia teatral; o surgimento, com Galileu, da física matemática; um encontro amoroso que transforma toda uma vida; ou a Revolução Francesa” (p.45). É cada dia mais difícil encontrar algo que fuja da “gestão especializada” do capitalismo e interrompa sua lógica.
Em sua caracterização da “hegemonia às avessas”, Francisco de Oliveira dirá, a respeito da gestão especializada, que é preciso tratar da despolitização do combate à pobreza e à desigualdade no governo Lula. Para ele, “[Lula] as transforma em problemas de administração, derrota o suposto representante das burguesias – o PSDB, o que é inteiramente falso – e funcionaliza a pobreza. A pobreza, assim, poderia ser trabalhada no capitalismo contemporâneo como uma questão administrativa.”
Por isso, dentro da lógica neoliberal, é constante a tentativa de reduzir qualquer problema político, sistêmico, a problemas de gestão. É o apelo à tal “classe especializada”que fala Chomsky.*
Ou seja, problemas que sempre foram tratados dentro da lógica da grande política passam a ser incorporados na lógica neoliberal e encarados como um mero (e simples) problema de gestão. Se há pobreza é porque o “síndico” não é competente o suficiente, nunca o sistema que põe em pé o condomínio é questionado. Esvazia-se a política e só fala-se em gestão. É a “política como arte da administração especializada” que fala Žižek. Pois se hoje já falamos de café sem cafeína, de cerveja sem álcool ou sexo sem contato, por que não falar em política sem políticos?
A corrupção, por exemplo e sobretudo em tempos incertos como o nosso, parece ser problema recente que apareceu depois que tal gestor assumiu a sala do síndico. Não há discussão, salvo raras exceções, da corrupção a nível macro, dentro da lógica da grande política. Tudo parece ser problema de política de gabinete, do partido x ou y, dele ou daquele político, ou seja, parece ser problema restrito, e por isso corrigido, dentro da pequena política.
O debate sobre financiamento público de campanha, tão importante no combate à corrupção, é algo que felizmente começa a entrar de forma mais concisa no cenário político. Resta saber até onde haverá pressão dos condôminos e se essa será suficiente para elevar o debate para além do nível da “gestão especializada”.
Por isso, tratar a corrupção como um problema desse ou daquele partido ou político é seguir trocando as gramas do jardim sem se dar conta de que o problema, na verdade, é o próprio condomínio. Aqui vale lembrar a metáfora de Žižek de que às vezes não adianta jogar a água fora, pois pode ser que “toda sujeira que está nela veio do bebê” (Em defesa das causas perdidas, p.25).
Blog da Boitempo
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