quarta-feira, 16 de maio de 2012
Repensando as ditaduras: Resistências, resistências
O acesso aos novos arquivos - na Rússia, na Alemanha, por exemplo - e o ressurgimento do fascismo enquanto movimento de massas, aceleraram as pesquisas sobre as ditaduras europeias contemporâneas e ampliaram as perguntas dos historiadores.
Francisco Carlos Teixeira
As grandes transformações havidas no cenário político internacional - o fim da Guerra Fria, a Derrubada do Muro de Berlin (1989) e o fim da URSS (1991) e, nos nossos dias, a crise global do capitalismo – permitiram a emergência, por quase toda a Europa, de novos(?) grupos (neo)fascistas. Na Noruega, Grécia, Irlanda, Alemanha até, culminando, na expressiva votação do Front Nationale, na França. Um claro caso de um partido que nega a existência do Holocausto ou defende a validade do uso extenso da tortura pelo exército francês na Guerra da Argélia.
Tais fatos, incontestáveis em si mesmos, implicam no reconhecimento – duro, difícil e resistíamos a fazer – que a extrema direita, em especial em épocas de crise ( como no final dos anos de 1920 e agora ) possuem um amplo auditório ( quase 19% do eleitorado francês ou 7% na Grécia ). O pior de tudo é que não estamos nos referindo a velhinhos decrépitos lembrando seus tempos passados nas SS ou na Juventude Hitlerista. São, no momento, jovens como o terrorista norueguês ou a massa que acompanha o partido “Aurora Dourada”.
Repensar as ditaduras
Esta presença, com apoio popular, da extrema direita, ditatorial e violadora de todos os direitos, civis ou humanos, da sociedade moderna, nos obrigada a rever teses clássicas sobre os fascismos e as ditaduras do século XX. Em especial, nos obriga a pensar se, de fato, os fascistas de então ( na Europa ) ou os militares dos anos de 1960 ( na América Latina ) eram, de fato, uma minoria. Seria bom, apaziguador, pensar que apenas uma minoria apoiou as ditaduras. Contudo, uma análise de jornais de época – como já foi exposto aqui na Carta Maior – de documentos de empresários, sindicatos, manifestos de professores e das Igrejas mostram que uma parcela não desprezível da sociedade deu seu apoio aos regimes ditatoriais.
Em alguns casos, e não foram poucos, membros da sociedade civil, profissionais estabelecidos, como no caso da Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil, hoje UFRJ, delataram, intrigaram, mentiram para incriminar colegas, organizando e fornecendo aos órgão de repressão listas de colegas de trabalho. Este foi, também, o caso da FIOCRUZ, o chamado “Massacre de Manguinhos”.
E então? Serão só os militares a serem chamados? Serão eles os únicos culpados? Esqueceremos os médicos-legistas, os psiquiatras, os enfermeiros que acompanhavam as torturas para que as vítimas não morressem antes da hora? E os políticos, alguns em cargos de direção da República, ontem e (pasmem!) hoje, e que sabiam das torturas e usaram seus mandatos para defender os torturadores?
Resistências?
Tais questões provocaram mudanças substantivas nas análises das ditaduras européias contemporâneas. O acesso aos novos arquivos - na Rússia, na Alemanha, por exemplo - e o ressurgimento do fascismo enquanto movimento de massas, aceleraram as pesquisas sobre o tema e ampliaram as perguntas dos historiadores.
Assim, a natureza policial das ditaduras contemporâneas - a própria imagem do Estado SS ou do complexo policial no fascismo - veio à tona. O surgimento na cena histórica das resistências internas e das oposições passivas abriu caminho para o questionamento de várias análises clássicas sobre a coesão e a amplitude da aceitação das ditaduras contemporâneas [1].
O traço comum no conjunto destes trabalhos - seja no Brasil, seja na Europa - é a irrupção de novos personagens na cena histórica, para além das determinações estruturais de caráter econômico que marcaram por mais de quarenta anos a maioria dos trabalhos sobre o tema (como as teses sobre relação onipresente entre Vargas e a industrialização ou fascismo e grande capital) ou de caráter político (as teses sobre Estado Novo e o atrelamento da classe operária e atrelamento dos trabalhadores) [2]. Assim, ora a multidão anônima, ora os indivíduos e as formas alternativas de participação e resistência, são chamados para contar sua história, o dia a dia frente à violência e o poder de “sedução” – expresso em ganhos materiais, no afastamento de rivais ou no afã de prestar serviços ao poder - das ditaduras modernas. No caso dos fascismos desempenhou importante papel nesta reinterpretação os trabalhos dos historiadores voltados para a chamada “Alltagsgeschichte” e, para a história das ditaduras sul-americanas, trabalhos de historiadores como Maria Helena Capelato, Denilse Rollemberg, Samantha Quadrat e Jorge Ferreira.
No quadro do estudo dos fascismos a irrupção de uma história cotidiana sob a ditadura – a chamada “Alltagsgeschichte” – trouxe à luz os pequenos atos, a resistência passiva, a desobediência como formas de agir político, mesmo quando não resultando numa clara opção pela rebeldia. Entretanto, os historiadores não são acordes quanto ao uso, e o conteúdo, dos conceitos em questão, em especial na definição do que seria “resistência”. Para alguns, chamados de “fundamentalistas”, só poderíamos falar em “resistência” ( “Widerstand”, em alemão ) quando se tratava de ações organizadas de superação do regime. Neste sentido, restritivo, “resistência” teria sido um fenômeno histórico de muito menor alcance no Terceiro Reich ( e em praticamente todas as ditaduras ). Outros, chamados de “tendência societal”, identificam como “resistência” todo fenômeno de dissidência ou dissentir ( no sentido de “dissent in everyday life”) praticado sob uma ditadura. Para Martin Broszat, importante historiador alemão, por exemplo, deveríamos distinguir, numa escala crescente entre “dissidência”, “oposição” e “resistência” ( “Resistenz” ) em vista de um melhor entendimento da capacidade de convencimento, ou repressão, das próprias ditaduras [3].
No caso italiano desempenhou um papel extremamente relevante o trabalho de Vitoria di Grazia ao relacionar convencimento, resistência e as organizações de lazer do fascismo italiano[4].
Resistência e colaboração
Entre nós um grupo importante de pesquisadores da UFF, com Daniel Aarão Reis, Samantha Viz Quadrat, Denise Rollemberg após revisar minuciosamente as temáticas da relação ditadura versus resistência, passaram a colocar maior ênfase no fenômeno da colaboração/aceitação pela sociedade civil dos regimes ditatoriais e, dessa forma, abriram novas perspectivas para o debate das relações entre sociedade civil e estado, em especial na América latina.
No caso brasileiro, o debate sobre a autonomia da “comunidade de informações”, as disputas no interior da burocracia de Estado – a percepção, por funcionários públicos e arrivistas de todos os tipos, de que as ditaduras representavam a “hora do acerto de contas” para velhas disputas de poder local ou institucional ( que antecediam a própria ditadura ) ou mesmo um atalho para a promoção e o sucesso na carreira – como foi o caso na UFRJ -, eliminando rivais mais habilitados –, o recurso a delação como forma de resolver litígios não-políticos ou ideológicos, e mesmo uma forma de premiação, seria um dado importante para estudar a colaboração nos regimes ditatoriais.
O problema aqui seria superar tradições arraigadas neste tipo de estudo: de um lado, a insistência de heroicizar o conjunto da sociedade como vítima do Estado – enquanto boa parte da sociedade, como a grande mídia, em verdade apoiaram e celebraram o golpe - e nivelar todos como “heróis da resistência”.
Logo após a derrubada ou colapso das ditaduras, e uma quase regra histórica, dá-se uma imensa corrida para perfilar o maior número de pessoas como “resistentes”. É comum, mesmo, que o próprio poder emergente se recuse a distinguir entre resistentes e colaboradores, na tentativa de evitar “novas divisões”, criar uma ampla frente de “unidade nacional”, recobrindo a história com uma pátina de chumbo.
Muitos, desavergonhadamente, ainda bradam contra o “revanchismo”.
Foi assim na Europa: a curta desnazificação alemã ou o limitado recurso a julgamentos dos “collabos” na França ou a total ausência de desfascistização na Itália, ou o “esquecimento” buscado pelas elites alemães e a resistência dos tribunais espanhóis em reconhecer os crimes do franquismo – emergindo daí a visão do conjunto da “nação, vítima e combatente” [5].
Os resultados são terríveis: a re-emergência dos fascismos, as acusações contra as vítimas, a busca de encobrimentos e, no limite, a justificação da tortura e de genocídios ( do tipo “era uma guerra” ). Da mesma forma, é inadimissivel que um conhecimento “pré-pronto” ( do tipo “foram os militares” encubra a delação e a colaboração de segmentos importantes da sociedade civil). Assim, nós, vamos acusar tão somente os protagonistas? Enquanto, aqueles que lucraram, ganharam e participaram ativamente das ditaduras como delatores e “fabricantes de dossiês” ficaram, ainda uma vez no anonimato?
NOTAS
[1] Além do já citado texto de Ayçoberry poderíamos destacar, nesta nova perspectiva, os seguintes trabalhos: SANDVOb, Hans-Rainer. Widerstand in einem Arbeiterbezirk (Resistência em um bairro operário). Berlin, Gedenkstätte Deustscher Widerstand, 1987; BUSCHAK, Willy. Arbeit in kleinsten Zirkel ( Trabalho em Pequenos Círculos ). Hamburg, Ergebnisse Verlag, 1993; AYAb, Wolfgang. Asoziale im Nationalsozialismus ( Marginais sob o Nacional-socialismo ). Stuttgart, Klett-Cotta, 1995; REICHEL, Peter. La fascination du nazisme. Paris, Jacob Editions, 1993 e HAASE, Norbert. Das Reichskriegsgericht u. der Widerstand gegen die Nationalsozialistische Herrschaft. Berlin, G. D. W., 1993.
[2] Na historiografia sobre o fascismo esta discussão foi travada em torno da superação das teses, na maioria marxistas, de “Primazia da Economia” na explicação do fascismo ( leia-se, as interpretações que afirmavam ser os fascismos mera ferramenta do grande capital ).
[3] Ver DEFRASNE, Jean. Histoire de La Colaboration. Paris, P.U.F., 1982.
[4] DE GRAZIA, Victoria de. Consenso e cultura di massa nell'Italia fascista. Roma/Bari, Laterza, 1981.
[5] Tais visões da “nação resistentes” e “vítima” foram popularizadas no pós-Segunda Guerra Mundial por grandes produções de cinema que popularizaram o “heroís00mo” coletivo e a “unidade” contra o inimigo. Esta é a versão, por exemplo, do mito gaulista em “Paris está em chamas?” ( Paris brûle-a-til?), de René Clement, 1966 ou da Itália vitimada pelos nazistas e fascistas em “Roma, cidade aberta” ( Roma, città aperta), de Roberto Rosselini, 1945.
(*) Professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Carta Maior
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