A própria história do estado de São Paulo deveria nos ensinar ao menos uma coisa: cidades e regiões inteiras nasceram à margem das ferrovias.
Como no passado, eles poderiam semear estações, vilas, cidades – desafogando metrópoles. Mas patinam, submetidos à lógica interesseira da “rentabilidade”
Por Rogério Centofanti
A exemplo de quase tudo que aparentemente pode ser resolvido no “atacado”, transporte, trânsito e mobilidade tornaram-se assuntos de interesse tipicamente quantitativo.
Bem verdade que em São Paulo os números são sempre hiperbólicos – o que parece explicar certa adoração por eles – mas o reducionismo não se justifica.
É um festival de números. Pela prática usual de um usuário por automóvel, calcula-se quantos metros quadrados de área pública são utilizados por automóvel/pessoa nas ruas e avenidas. A partir desse número, calcula-se a mesma relação área pública/ônibus/pessoa, etc.
Por aí vai. Número de pessoas por metro quadrado nos ônibus, trens e metrô. Relação entre tempo e distância nos mais diversos trajetos, e por modal. Número de acidentes pelo número de veículos, etc. sem contar as famosas pesquisas origem-destino.
O interessante, em toda essa monomania dos cálculos, é que os números parecem apontar para alguma outra coisa que não seja o exercício mesmo de calcular, e de servir de alimento concomitante para a monomania da informação, ainda que completamente inútil, pois nada de significativo tem acontecido na vida das pessoas, apesar das incontáveis sopinhas de algarismos.
Qual não foi a minha surpresa, na linha da cultura inútil, ao saber que o meio de transporte mais utilizado em São Paulo é o elevador. Que a grande metrópole é verticalizada, parece evidente. Não sabia, porém, que se transitava tanto verticalmente.
De qualquer modo, gostamos mesmo de números. Eles emprestam um ar de solenidade com aura de pesquisa, de ciência, e sempre impressionam as platéias. Eles parecem ser de vital importância, ao menos em princípio, para alimentar as decisões dos reformadores urbanos, e aparentemente fundamentais para o pressuposto de que as coisas se resolvem por planejamento.
Não é isso, porém, o que a vida urbana tem nos ensinado, e sem a necessidade de tantos números. O bairro operário de hoje, com suas casinhas e pequenos jardins, transforma-se amanhã em um conglomerado de edifícios de apartamentos colados uns aos outros. Planejamento? Não. Dinâmica social, e principalmente econômica, da história urbana da cidade. Não é diferente com os jardins e suas elegantes residências, mais tarde tomadas por comércios e serviços de luxo, e ainda mais tarde ocupadas por comércios e serviços populares. Também nesse caso, nada explicado por planejamentos, mas pelo movimento de determinantes em boa medida geradas pelo acaso. Tais fenômenos podem ser explicados a posteriori, mas não rascunhados a priori com a presunção de que as coisas aconteçam conforme o previsto.
A cidade é viva.
A própria história do estado de São Paulo deveria nos ensinar ao menos uma coisa: cidades e regiões inteiras nasceram à margem das ferrovias. Não foi diferente, em boa medida, com bairros da capital e cidades da denominada Grande São Paulo. Os trens movimentavam cargas e pessoas – nessa ordem – e em cada estação formavam núcleos, que mais tarde se transformavam em grandes aglomerados.
A procura cada dia crescente por trens e metrô demonstra a importância dos trilhos na solução do binômio transporte/trânsito. Como são escassos, ficaram rapidamente saturados. Agora é uma corrida – ao menos discursiva – para a expansão, mas que encontra um terrível obstáculo: poucos são os espaços livres disponíveis para eles, exceto por baixo ou por cima das casas, prédios, ruas e avenidas. Dois espaços caríssimos pelas dificuldades de ocupação.
Os trens metropolitanos têm muito para onde crescer, expandir, mas não mais nas áreas adensadas. Cresceriam nas direções hoje menos povoadas e, nessa medida, exerceriam o papel “civilizador” que desempenharam no passado: trilhos, estações, povoados, vilas e cidades.
Tal pensamento, porém, passa longe das pranchetas dos reformadores, pois norteados por dois conceitos estranhos em mentes que deveriam estar a serviço do interesse público, social: demanda e rentabilidade. Nada fazem pensando no futuro, e menos ainda no que não esteja a serviço do lucro imediato, principalmente para os “parceiros” do Estado.
No passado, as pessoas iam para onde estava o transporte; agora, estamos todos diante da grita para saber como levar transporte para onde estão as pessoas, e ilhadas. Recentemente “descobriram” que imóveis próximos a estações são muito valorizados. Que gênios…
Enquanto isso não se resolve – se é que se resolva – vamos colecionando outros números: número de horas/dia de existência literalmente perdidas no trânsito, horas de sono perdidas por levantar cedo e dormir tarde por conta das dificuldades de transporte, do percentual de nossos rendimentos que deixamos apenas nas operações de ir e vir, e por ai também vai.
No plano qualitativo, pouco se fala de conforto, segurança, beleza e civilidade nas relações de trânsito, e menos ainda nos meios de transporte. “Educação”, dizem, transferindo aos cidadãos a responsabilidade e a culpa pelos próprios sofrimentos. Os números não contemplam esses aspectos da vida denominada “subjetiva”, como se toda a calculeira não tivesse, como finalidade, atender as necessidades dos “sujeitos”. Afinal, elegância no viver deve ser apenas um luxo, bem acima das necessidades da maioria dos mortais.
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