sábado, 30 de outubro de 2010

É possível ter uma democracia com políticos medíocres”

Publicado no suplemento EU&Fim de Semana do jornal Valor Econômico

Embora tenha seus 14 livros publicados em 22 idiomas, apenas dois títulos do historiador e cientista político francês Pierre Rosanvallon estão traduzidos no Brasil. Na última semana, ele esteve pela terceira vez no país, dessa vez para o lançamento de Por uma história do político (Alameda Casa Editorial, tradução de Christian Edward Cyril Lynch), em que reflete sobre a democracia examinando as contradições e as tensões organizadoras da vida democrática.

Observador dos regimes democráticos nos países emergentes, ele se refere ao Brasil como o país em que “incontestavelmente a democracia é mais viva”, recusando, assim, a percepção de que se esteja experimentando um surto populista no país ou na América Latina. Ele considera uma tensão dos regimes democráticos as diferenças entre o momento eleitoral – de sedução – e a hora de governar. “As qualidades de um bom candidato não são as mesmas de bom governante, o que está na raiz do desencantamento democrático. Mas é possível ter uma boa democracia com políticos medíocres”, defende.

Palestrante de abertura do 34º. Congresso da Anpocs, que terminou na última sexta-feira, 29, em Caxambu (MG), Rosanvallon esteve em São Paulo – onde se espantou com o trânsito de helicópteros – e no Rio de Janeiro para falar sobre o que chama de “concepção experimental da democracia”. Professor do Collège de France, ele nasceu em 1948 e, como a geração de intelectuais do pós-guerra, dedicou-se a pensar sobre as condições de desigualdade das sociedades contemporâneas, sobre as quais ele fala nessa entrevista.

O Brasil é uma jovem democracia em processo de consolidação. Existe um caminho político adequado para a consolidação democrática?

A democracia não é um modelo que está perfeitamente definido, mas sempre uma experiência, um ideal que considera a contradição de saber como melhor representar a sociedade através do voto, da representação social, da opinião. A democracia é sempre experimental, por isso não há como distinguir entre antigas democracias estabilizadas e novas democracias ainda em busca de uma boa fórmula. Nos países europeus as democracias também são experimentais, não existe uma democracia já alcançada. Por definição, as democracias são inalcançáveis. A democracia brasileira tem seus problemas, assim como as democracias européias. A democracia é um regime da vontade de todos, mas é um problema definir o que é a vontade de todos. Por fim, a democracia não é apenas um regime político, mas também uma forma de sociedade que organiza a vida comum, a partir da definição de quais são as desigualdades inadmissíveis e quais são as diferenças justificáveis. Em todas as sociedades há um debate permanente entre a relação.

São legítimas as ações governamentais que têm como objetivo obter bons resultados eleitorais? Essa seria uma característica inevitável de uma democracia popular? Refiro-me, no contexto brasileiro, às críticas aos programas de distribuição de renda que teriam uso eleitoral.

Em todas as democracias e cada vez mais há uma contradição entre o momento eleitoral e o momento de governar. O momento eleitoral enfatiza o possível e a proximidade entre o candidato e o eleitor. Esse é um momento marcado, sobretudo, pela sedução. E a demagogia participa desse jogo de sedução. Já o governo é fundado não pelo possível, mas pelas restrições, pelos limites, pela necessidade de fazer escolhas.

Um dos problemas da democracia é que as qualidades necessárias para ser um bom candidato não são as mesmas para ser um bom governante, o que está na raiz do desencantamento democrático, presente em todas as sociedades. Os cidadãos que estavam satisfeitos no momento eleitoral ficam decepcionados no momento em que seus candidatos chegam ao governo. A grande questão é saber qual é a relação entre as proposições da campanha eleitoral e as políticas que serão implantadas. A democracia é um exercício de reflexão sobre a tensão entre o momento eleitoral e o governamental.

Existe uma boa democracia?

Uma política democrática é aquela que busca superar as desigualdades, de tal forma que não haja uma separação entre o mundo em que vivem os ricos e os que vivem os pobres. Em São Paulo, tive a impressão de que existe a sociedade aérea, que vive e se movimenta nos helicópteros, e a sociedade terrestre, que circula de ônibus. A democracia não é o igualitarismo, mas a possibilidade de viver juntos. Sei que o Brasil é conhecido por combinar as desigualdades com a cordialidade, o que me levaria a dizer que o Brasil é o país da desigualdade cordial, melhor que uma desigualdade não cordial, claro.

No Brasil, as eleições presidenciais têm sido marcadas por propostas eleitorais de centro-esquerda e de centro-direita, e os vitoriosos têm dependido das forças de centro. O senhor acredita que as experiências de consolidação democrática dependem do conservadorismo?

Eu não chamaria de conservadorismo, mas de racionalidade. A democracia é sempre a tensão entre a opinião e a razão, e é uma ilusão pensar que há a possibilidade de uma sociedade perfeitamente racional, ilusão que a França e o Brasil herdaram do positivismo. Acredito que haja mais uma tensão entre razão e opinião do que entre conservadores e progressistas. Poderíamos definir os conservadores como aqueles que enfatizam os limites, as restrições, e os progressistas como os que enfatizam as possibilidades.

A consolidação da democracia brasileira é relevante para o fortalecimento de experiências democráticas na AL e para a consolidação de uma comunidade latino-americana?

A consolidação da democracia brasileira é fundamental para a consolidação internacional da democracia, porque entre os países emergentes, o Brasil é incontestavelmente o país onde a democracia é mais viva. Que ela apresente muitas dificuldades, é razoável, já que é uma das maiores democracias do mundo. A situação brasileira é importante porque a América Latina foi o lugar em que o populismo criou a ilusão de que haveria uma relação possível entre um chefe e o conjunto da sociedade. O populismo é ao mesmo tempo uma ilusão sociológica, a de que há “o povo”, e a ilusão democrática de que há uma pessoa ou um grupo capaz de encanar a sociedade. A democracia nasce da resistência a essa dupla ilusão – de encarnação e de unidade –, ao dizer que ninguém é proprietário da representação política, que está sempre em disputa.

Existe algo que chame a atenção nas eleições brasileiras desse ano?

O peculiar nas eleições presidenciais brasileiras desse ano é que, em relação às precedentes, não há mais candidatos dotados de um carisma excepcional. São eleições disputadas por candidatos comuns. E pode-se considerar que a democracia vive normalmente com candidatos comuns e políticos medíocres. Pode-se dizer que a democracia vive excepcionalmente com grandes líderes e normalmente com políticos comuns, ordinários. É o que se vê também na Europa. Para ser um grande democrata é preciso considerar que a democracia pode ser feita com pessoas muito comuns.

O senhor acredita que o estado laico seja uma das condições para a democracia?

Sim, se a laicidade é definida como a possibilidade de fazer coexistir filosofias e religiões diferentes. A laicidade deve definir as condições de vida em comum, possíveis para além das diferenças, para além das ideologias e das religiões. A laicidade é mais ampla do que a questão da religião, é uma questão do conjunto de diferenças fundamentais. A laicidade foi em sua época uma resposta às guerras religiosas. Não se pode compreender a história dos estados na Europa sem reconhecer o papel das guerras religiosas. Atualmente se pode dizer que houve uma ameaça de uma nova guerra religiosa, e portanto é preciso refazer o caminho pelo qual se possa superar essa ameaça, com a definição das instituições públicas que estão fora da esfera religiosa e que devem organizar a coexistência entre estado e religião.

Organizar essa coexistência é sempre difícil porque a definição do que é público e do que é privado não é a mesma para todos. Se pode defender o direito à diferença no campo privado e a redução da diferença no espaço público, mas não há uma mesma percepção do que é público e o que é privado.

Os jovens franceses estão nas ruas e as greves tomaram a França. Que importância o senhor atribui a essas manifestações?

As sociedades européias foram marcadas pelo afastamento dos eleitores das urnas, mas embora haja nas democracias européias cada vez menos pessoas que votam, há cada vez mais pessoas que se manifestam nas ruas, que se expressam na internet, que discutem. De tal forma que há uma democracia cotidiana, uma expressão cotidiana da democracia, mais viva do que a democracia eleitoral. Há menos democracia intermitente, essa que experimentamos apenas nos anos de eleição, e mais democracia permanente. Na França, o grande erro do governo atual é achar que a democracia pode se expressar inteiramente na democracia política e que as aposentadorias podem ser discutidas exclusivamente no espaço parlamentar. Quanto aos jovens, há uma forma de socialização política em cada geração. Os jovens de 14, 15 e 16 anos, vão a manifestações como um tipo de rito social para entrar na vida adulta e na vida pública. É preciso compreendê-las, claro, como uma manifestação de insatisfação, mas principalmente como um rito social e político.

O senhor é um crítico de dois importantes formuladores de teorias políticas na Alemanha: Habermas e Carl Schmitt. Poderia situar qual é o seu principal ponto de desacordo com cada um desses dois autores tão em voga atualmente?

Meu ponto de desacordo com Habermas é em relação ao método de reflexão sobre a democracia. Ele pensa a democracia a partir de uma definição teórica a partir da qual ele define a democracia pelo seu procedimento deliberativo. Eu construí a minha teoria da democracia de maneira muito diferente: examinando quais são as contradições e as tensões organizadoras da vida democrática. Eu tentei determinar quais são os princípios gerais que podem dar sentido à resolução dessas tensões, que são da ordem da representação, do engajamento civil. Eu não dei definição do que seria uma “boa democracia”, mas eu penso a democracia como um problema a resolver.

Eu tenho uma concepção experimental da democracia, e não uma concepção normativa. Em relação a Schmitt não é uma diferença de método. Schmitt pensa que os regimes democráticos são falhos porque são regimes de discussão e não de decisão. Ele pensa que o sentido da política é a decisão soberana, que é contra a discussão. Ele tem uma visão anti-parlamentar, ao mesmo tempo em que é uma visão que enfatiza a unidade da sociedade. Numa interpretação suave para as ideias de Schmitt, haveria uma relação entre o líder e as massas. Ele sonhava com um regime político de aclamação, de fusão entre as massas sociais e o líder. O paradoxo é que o renascimento do pensamento de Schmitt é feito pela extrema esquerda porque ele faz uma crítica da democracia parlamentar e é também um crítico do liberalismo. Muitos revolucionários de extrema esquerda enfatizam a revolução como momento instituinte, constituinte, – uma fórmula de Schmitt – quer dizer o poder além das instituições, o poder da massa em erupção que encontra seu porta-voz.

Contemporânea

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