sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Crianças desta terra




Miltom Hatoum

Do balcão do sobrado vi bolas e bonecas de plástico cobrindo a rua de pedras da minha infância. E quase ao mesmo tempo vi crianças da minha idade disputando esses dois brinquedos universais. Brinquedos de graça, que alegravam também as mães pobres da cidade.

Na manhã amarela ouvi pela primeira vez a palavra "eleições". Não sabia o significado exato dessa palavra; sabia que o candidato ao governo distribuía milhares de brinquedos às crianças, depois ele as abraçava, beijava mães, tias e avós, era uma festa colorida num novembro distante, que agora recordo sem nostalgia.

Depois o candidato continuou sua campanha festiva e caridosa em outros bairros...

Não o vi naquela manhã, apenas divisei, de relance, um bigode espesso, como se vê o desenho de um urubu minúsculo no canto de um mural colorido. Foi o primeiro bigode político que vi na infância, um bigode jovem, que já era um líder regional, quase tão onipresente quanto um pequeno deus, pois ouvíamos sua voz no rádio e víamos seu rosto em cartazes pregados em muros, fachadas e cercas.

Quatro anos depois vi de novo bolas e bonecas na carroceria de um caminhão, e outras crianças disputando esses brinquedos, e o mesmo bigode beijando e abraçando mães, tias, avós. Em 1964, um parente me disse que esse líder tinha sido cassado, embora não fosse de esquerda, nem de direita. Afirmar que era um homem de centro é apenas um culto à simetria. Outras vozes comentaram: foi cassado por corrupção. E mesmo aos 12 anos de idade, essas palavras ainda não tinham um significado claro para mim. O fato é que todos nós perdemos o bigode de vista. Não foi exilado, mas viveu no ostracismo, que é uma espécie de exílio na própria pátria.

Quando ele voltou à cidade, dizem que foi recebido com júbilo pelas crianças que agora eram filhos das crianças que eu tinha visto na minha infância. Não o vi depois desse retorno glorioso, porque eu já morava muito longe da cidade. Parece que era vingativo e cruel com inimigos, terrível com amigos que o traíam e com desconhecidos que flertavam com as mulheres de seu harém: as meninas que tinham recebido bonecas das mãos dele e agora eram moças feitas. Mas esse homem, que destruía seus inimigos, também erguia grandes obras. Construiu na floresta uma central elétrica movida a óleo diesel, um desastre ambiental e um fiasco energético; construiu maternidades onde as mães recebiam afagos e os recém-nascidos ganhavam bolas e bonecas com as quais brincariam nos próximos anos; construiu escolas e hospitais, pavimentou ruas, e cada obra pública inaugurada por ele recebia seu próprio nome, seguido de um algarismo romano, como se fosse um rei. E como fazia um dos reis de Shakespeare - que se disfarçava de soldado para conhecer de perto seu exército -, ele se disfarçava de enfermeiro, de professor, de carcereiro e andava por escolas, hospitais e presídios; depois advertia funcionários incompetentes, faltosos, levianos, e demitia os que falavam mal dele. Também demitia os líderes grevistas, os diretores de escolas que não o bajulavam, os funcionários que o desprezavam, todos ingratos, ele dizia. Por tudo isso, ele se considerava um democrata exemplar.

Mesmo de longe, eu acompanhava sua gloriosa ascensão política. Anos depois, ao visitar minha cidade, andei por bairros que desconhecia, onde vi casebres à margem de rios com cor de ferrugem, e crianças brincando com bolas e bonecas de plástico em imensas crateras de aspecto lunar; vi fileiras de casinhas de alvenaria construídas em áreas desmatadas, pareciam casas de boneca ou canis que brilhavam ao sol como buquês de fogo. Vi escolas mal ventiladas, sem biblioteca, cujas fachadas feias tinham sido apedrejadas por vândalos. Nenhuma creche. E mesmo assim, ele era reeleito e idolatrado...

Às vezes a passagem do tempo é imperceptível como uma distração. Quando me dei conta, tinham passado mais de 40 anos. E quando voltava à cidade, lá estavam os cartazes e outdoors com o rosto dele, e em qualquer estação de rádio a mesma voz com o tom assertivo e triunfante de um animal político que ignora a dúvida e o diálogo.

Durante quase meio século nunca vi o rosto dele, só via as imagens e me lembrava do bigode: o diminuto urubu acenando de algum mural do passado, que agora parecia um pesadelo da infância.

Há pouco tempo soube que ele estava num hospital de São Paulo, onde se internam os grandes líderes doentes da minha cidade. Foi um encontro breve, e talvez seja exagero dizer que foi um verdadeiro encontro. Parei na porta do quarto e divisei o homem deitado, olhando vagamente para a tela de um aparelho de tevê silencioso. Das quatro gerações de mulheres de seu harém, nenhuma estava ao lado dele. Vi, enfim, o rosto que não me viu nem podia me ver. Não usava mais bigode, e no olhar perdido na tela muda, não havia mais fulgor nem ambição nem ódio.

Dizem que foi enterrado com pompa na nossa cidade, e que em sua lápide está gravada esta frase singela: Nenhum outro homem público amou tanto as crianças desta terra.



Estado de São Paulo

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